quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

O ABISMO DO TEMPO


http://www.germinaliteratura.com.br


"Somos todos mortais, com uma duração justa. Nunca maior ou menor. Alguns morrem logo que morrem, outros vivem um pouco, na memória dos que os viram e amaram; outros, ficam na memória da nação que os tem; alguns alcançam a memória da civilização que os possui; raros abrangem, de lado a lado, o lapso contrário de civilizações diferentes. Mas a todos cerca o abismo do tempo, que por fim os some, a todos come a fome do abismo (...)"

"O Livro do Desassossego" (Fernando Pessoa)


O escândalo duma consciência inútil, que só pode confrontar-se com o supérfluo do pensamento e o efémero da luz!

Quando se sobrevoa, como ali, a total falta de importância da fama, a nossa existência parece ainda mais gratuita e inexplicável.

Por isso, a tarefa mais urgente é a do sentido.


Vila Boa de Quires (José Ames)

O PIEDOSO OLIMPO


"Júpiter atacando os gigantes"

"A fasta experiência de que as relíquias dos santos valiam mais do que o ouro ou as pedras preciosas incitou o clero a multiplicar os tesouros da Igreja. Sem muita atenção à verdade ou à probabilidade, os padres inventaram nomes para esqueletos e acções para nomes. A fama dos apóstolos e dos santos que tinham imitado as suas virtudes foi ensombrada por ficções religiosas. À invencível legião de mártires genuínos e primitivos, acrescentaram-se miríades de heróis imaginários, que jamais tinham existido, salvo na imaginação de alguns legendários artificiosos ou crédulos;"

"Declínio e Queda do Império Romano" (Edward Gibbon)


"(...) os templos do mundo romano já estavam todos destruídos cerca de sessenta anos após a conversão de Constantino."

Mas o paganismo, vencido de vez com a proibição oficial dos seus ritos, regressa disfarçado no culto duma corte de santos que ultrapassa em muito a do Júpiter romano.

Onde se refugiou então o espírito do cristianismo, no meio deste avanço da superstição e quando tantos pastores mistificavam as suas ovelhas?

O espírito foi, talvez, preservado nos símbolos. E a Igreja que, ao longo dos séculos, tantas vezes se confundiu com o mundo, é o museu desses símbolos.

Pergunto-me se os ritos pagãos, que por uma lei do imperador tão facilmente foram convertidos, podiam alguma vez ter sido o essencial da religião. E se o nosso mundo profano e individualista não é, por detrás dos seus inúmeros cultos a tudo e a nada, afinal, supersticioso.

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

IAGO


Iago

"Para ele acreditar que ela mentia, uma suspeita prévia era uma condição necessária. Era também, aliás, uma condição suficiente."

"Du côté de chez Swann" (Marcel Proust)


Comparar esta contaminação de todo o processo mental pela suspeita com o mito da expulsão do Paraíso, que começa com uma falsa revelação da serpente sobre o motivo do interdito.

Ouvir é já conceber que Deus é capaz de mentir.

O que pode levar o amante ao desespero da suspeita senão Iago?


(José Ames)

CONHECER O QUÊ?


Heráclito de Éfeso (540/470 AC)


"O logos de Heráclito é um conhecimento de onde nascem, ao mesmo tempo, "a palavra e a acção". Se quisermos um exemplo deste tipo particular de conhecimento, não seria no pensamento para o qual o Ser nunca pode não ser que deveríamos procurá-lo, mas antes na visão profunda que se revela numa proposição como esta: O ethos é o dáimon do Homem.

(...) quer dizer, o conhecimento do Ser está em íntima dependência e conexão com a intelecção da ordem dos valores e orientação da vida;"

"Paidéia" (Werner Jaeger)


Por que é que isto não é evidente?

Heráclito, o Obscuro (Skoteinós), diz-nos que nem tudo o que conhecemos importa e nos "salva", assim, podemos continuar de olhos fechados e carregados de conhecimento.

Nietzsche haveria de beber nesta fonte embriagadora.

O verdadeiro conhecimento, a "salvação" (do erro, do sono?) dependem da ética, isto é, da justiça na relação com o outro e connosco próprios.

Mas poderia a ciência voltar sobre os seus próprios passos, renegando o seu espectacular crescimento e a sua maravilhosa eficácia?

Ou deveríamos separá-la do conhecimento e considerá-la a mais formidável das forças de produção?

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

O IMOBILISMO


François-Auguste Chateaubriand (1768/1848)

"A imobilidade política é impossível; é forçoso avançar com a inteligência humana."

Chateaubriand


Ficar parado é impossível porque tudo muda, na política e na vida.

Mas há um esforço da inteligência que procura manter um aspecto das coisas, que se perderia pela simples inércia.

Quanto da verdadeira política não é no sentido de se evitar a degradação natural! O mote do príncipe de Salinas (de que tudo deve mudar para ficar tudo na mesma) é, no fundo, o que prevalece.

E a maior revolução é, às vezes, a das mudanças insuficientes, que somam atraso sobre atraso na marcha duma nação.


Porto (José Ames)

A INTELIGÊNCIA DA SITUAÇÃO



"Quando o conde de Artois e a rainha, que queriam mandar representar o Fígaro, lhe leram a peça, ele apenas disse, como objecção sem resposta: "Então seria preciso suprimir a Bastilha!"

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Ele era Luís XVI, de quem "os cortesãos troçam amargamente da sua rudeza, das suas patadas".

Mas é no espírito desse homem que os símbolos contrários, de realidades aparentemente sem ligação entre si, produzem essa chispa de inteligência.

A espirituosa peça de Beaumarchais e a prisão mais célebre de Paris.

Maria Antonieta e o irmão do rei (o futuro Luís XVIII), levados pelo espírito da moda, nesse "flirt" com a "filosofia", desafiam a nobreza dos privilégios que fez deles o que são.

A situação da inteligência leva a melhor sobre a inteligência da situação.

No domínio da política, não há proporção que não possa facilmente tornar-se em desproporção e vice-versa.

Uma tirada no palco não se pode medir com as pedras e os ferros da Bastilha. E, no entanto...

domingo, 28 de janeiro de 2007


"Fábrica" (José Ames)

NEURASTENIA


Segismundo Freud (1856/1939)


O mal-estar do corpo, a imprudência no trabalho que faz seguir um gesto a galope chamam a tristeza. E é próprio do homem triste fazer pálido o sol e do passeio um beco sem saída. O pensamento não nos socorre com nenhuma ideia grata. É o corpo que elimina mal ou se desequilibra que nos pensa. E como aconselha Chartier, o melhor é mudar de posição e despedir a voz pretensiosa que nos condena. Nesse momento, a moratória pode salvar-nos.

Diz-se bem que não há problema que o tempo não resolva; mas para tal é preciso julgar sempre contra a tristeza. O homem caído não tem perspectivas. A ideia mais intolerável é a de termos cedido a uma força que não controlamos, mas que está à nossa guarda. O homem apaixonado tornará então o que é do corpo numa verdade metafísica. Ele obstina-se em permanecer no chão dizendo a si mesmo: fui eu quem o quis.

É verdade que não basta lutar contra essa tendência para espiritualizar o mal. Deixar passar a nuvem sombria pode ser superior às forças duma pessoa. Porque pressupõe que esse excesso de energia destruidora desapareça sem acção, nem mudança de objectivo. O trabalho desvia a atenção, mas a companheira trágica não se foi embora. Se não se abriu energicamente a cortina, a criatura da noite persegue-nos a todas as horas como num sonho.

A ideia de que o carrasco está em mim. E que o universo pelo contrário me deixa livre. Tudo é misterioso e no entanto claro, se nos decidirmos a viver a perfeição que nos é própria. É o erro que limita. Que nos fecha no túmulo sonoro da vaidade. Quem se abandona descobre que o perdão é fácil, e é sempre a si mesmo. Mas não é só o que o homem nos diz na sua falsa solidão que acalenta os pensamentos negros. Há outras formas subtis de fazer mal ao espírito; em nome do sacrifício ao dever e à causa dos outros, somos às vezes uma engrenagem que a máquina não pede. A todo o momento, a vigília do corpo ganha o seu repouso.

É verdadeiramente o templo da vida tornado metáfora da máquina, o corpo que perde o sentimento dos seus limites e da forma humana. O trabalho para mim não raro é uma queda na dimensão mecânica, donde saio destrambelhado e gasto. Tão diferente é esse esforço, que nos desapossa, da acção livre, sempre consciente da fronteira e do poder da decisão. Uma outra maneira de ceder à tristeza sob o título do dever cumprido. É então surpreendente o efeito produzido pela leitura dum texto denso que nos descobre pouco a pouco a luz, no que é talvez o movimento da alegria.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

AUTOMATISMOS



Hannah Arendt diz que pode conceber-se a ideia de que os processos automáticos que constituem a vida normal da sociedade, mesmo quando são tendencialmente auto-destrutivos, só serão interrompidos através da violência. Daí a guerra e as revoluções.

E o filósofo contrapõe a essa irrupção incontrolada da força a acção consciente que também poderá levar-nos a mudar de rumo.

Ao ver aquelas salas de espera da consulta de oftalmologia do hospital de S. João, onde dezenas e dezenas de pessoas se amontoam, grande parte sem lugar sequer para se sentar, sem saberem o número de ordem, nem quanto tempo terão de esperar pela via sacra dos exames e da dilatação da pupila, não posso deixar de ver aqui em pleno desenvolvimento um daqueles processos automáticos.

Os profissionais farão, sem dúvida o melhor que podem e, perante a avalanche humana, a desorganização e a falta de meios, procurarão antes de tudo não ficar esmagados.

Mas seguir o exemplo das lojas do cidadão não parece custar tanto como isso.

Será que alguém pensa que isto é um assunto da responsabilidade do ministro?


Gaia (José Ames)

MAIS SOBRE MENOS


http://www.volint.it/scuolevis

"Que a ciência, ainda que já não limitada pela finitude da Terra e a sua natureza, possa ser susceptível dum progresso sem fim não é de modo nenhum certo; que a pesquisa estritamente científica nas humanidades, a chamada Geisteswissenschaffe que se ocupa dos produtos do espírito humano, tenha que chegar a um fim é óbvio por definição. A incessante e sem sentido pesquisa académica num número de campos onde só a erudição é agora possível, levou à pura irrelevância, o famoso saber cada vez mais sobre cada vez menos, ou ao desenvolvimento dum pseudo conhecimento que na verdade destrói o seu objecto."

"On violence" (Hannah Arendt)


A ciência moderna parece ter aberto o campo do ilimitado. É já porventura do senso comum que tanto o imensamente grande como o infinitamente pequeno nos são dados progressivamente.

É mesmo impensável que se tenha de "tocar" um limite em qualquer das direcções.

Ora essa "eterna" procura pode, de facto, ser avara de revoluções copernicianas que ponham em causa os fundamentos da nossa concepção do mundo. A descoberta poderá ser ao mesmo tempo ilimitada e sem sentido, rotineira até para quem se habituou a uma certa velocidade na mudança.

Isso, de facto, não será possível nas chamadas ciências humanas que só são um mundo ilimitado para a nova escolástica e o comentário do comentário.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

VESPAS E LETRAS


Himenóptero

"E como esse himenóptero observado por Fabre, a vespa cavadora, que, para que as suas crias depois da sua morte tenham carne fresca para comer, chama em socorro da sua crueldade a anatomia e, tendo capturado gorgulhos e aranhas, perfura-lhes com maravilhoso saber e perícia o centro nervoso de que depende o movimento das patas, mas não as outras funções da vida, de modo que o insecto paralisado junto do qual ela deposita os seus ovos, fornece às larvas, quando eclodirem, uma presa dócil, inofensiva, incapaz de fuga ou de resistência (...)"

"Du côté de chez Swann" (Marcel Proust)


Um documentário do National Geographic daria a ver o requinte que parecerá cruel à nossa sensibilidade deste insecto, e que é apenas um caso entre muitos dos extraordinários recursos da natureza.

Mas o texto tem uma influência muito mais subtil em nós. A articulação da linguagem permite-nos não apenas ser impressionados, mas convocando toda a literatura e toda a palavra, segurar na pinça da descrição o maravilhoso e o horrível reescritos como um pensamento nosso.


"Hugging" (José Ames)

OS OUTROS DA ARCA


A Arca de Noé

"Com o aumento dos conhecimentos, os animais ficarão cada vez mais próximos dos homens. Quando ficarem tão próximos quanto nos antigos tempos mitológicos, então, quase não haverá animais."

"Le Territoire de l'Homme" (Elias Cannetti)

Belo pensamento.

O que de mais profundo o homem moderno consegue pensar dos animais é que, apesar dos matadouros, os devemos tratar com respeito e, no caso das espécies que levámos à beira da extinção, protegê-las, a bem da diversidade e do património genético da natureza.

O que se anuncia é que quanto mais soubermos sobre os animais, melhor perceberemos que o nosso orgulho de racionais não tem grande justificação.

Felizmente que entre o homem e a natureza não existe nenhum abismo metafísico, e são os animais que nos permitem sentir que a natureza é a nossa casa.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

TERRORES ESQUECIDOS


A Queda da Bastilha

"Que o terror revolucionário se livre de se comparar à Inquisição. Que nunca se gabe de ter pago ao velho sistema, nos seus dois ou três anos, o que ele nos fez durante seiscentos anos! Como a Inquisição teria o direito de rir! Que são os dezasseis mil guilhotinados duma, diante dos milhões de homens degolados, enforcados, desfeitos, essa piramidal fogueira, essas massas de carnes queimadas, que a outra ergueu até ao céu? Apenas a Inquisição de uma das províncias de Espanha estabeleceu, num monumento autêntico, que, em dezasseis anos, lançou à fogueira vinte mil homens... Mas para quê falar de Espanha e não dos albigenses, dos valdenses dos Alpes, dos beguinos da Flandres, dos protestantes da França, da pavorosa cruzada dos hussitas e de tantos povos, que o papa entregava à espada?"

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Michelet vê na Revolução Francesa o triunfo da Lei e do Direito sobre o império do arbitrário da religião, para a qual a "graça" e a vontade de Deus eram sinónimos duma sacralização do existente e do poder do mais forte.

É claro que esta comparação no uso da violência, tão desigual embora, mas não se compararmos com as revoluções modernas, se explica como um argumento da luta ideológica e política.

A guilhotina, como "máquina de abreviar a dor", é o símbolo duma justiça que se pretende racional, mas que hoje nos parece abominável.

Deus e a Razão (nos seus diversos avatares) foram, na realidade, insaciáveis consumidores de vítimas humanas, não vindo ao caso a mensagem do evangelho ou a filosofia com que se justificaram as mentes esquentadas ou loucas e frias.

É o fundamentalismo moderno que nos vem lembrar, hoje, esse facto.


Fontainhas (José Ames)

PESSIMISMO ILUMINADO



O filme de Mel Gibson não nos pode surpreender, depois de termos visto "A Paixão de Cristo".

A mesma demonstração nauseante da presença do mal, através da tortura e do massacre do corpo.

Continuamos no caminho ensanguentado para o Gólgota.

Desta vez, é o "bom selvagem" que é preso e "crucificado" pelos cruéis maias construtores das pirâmides, por cujas rampas são lançadas as cabeças das vítimas dos sacrifícios.

No final, a visão das caravelas na praia, que põe fim a uma perseguição que ocupa metade do filme, podia ler-se como uma réplica optimista do epílogo do "Planeta dos Macacos" (1968-Franklin Schaffner). Aqui, a estátua da Liberdade, meio enterrada na areia, era o que restava da civilização destruída pela loucura dos homens. Em "Apocalypto", os mosquetes espanhóis podiam trazer a razão a um mundo violento e em processo de auto-destruição.

Mas isso não nos é permitido pelo que conhecemos do pessimismo iluminado de Gibson.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

A HARMONIA TERRESTRE


Anaximandro (609/610 AC - 546 AC)


"É a partir do indeterminado que acontece o nascimento para as coisas; e a sua destruição acontece através de um regresso ao indeterminado, conforme a necessidade; porque sofrem um castigo e uma expiação umas por parte das outras, devido à sua injustiça, segundo a ordem do tempo."

Fragmento de Anaximandro, comentado por Simone Weil:


"Por outras palavras, a necessidade mecânica que determina a matéria, encerrando uma espécie de Nemésis pela compensação mútua das rupturas de equilíbrios, é uma imagem da justiça divina. Platão mantivera esse pensamento. A nossa ciência perdeu-o, cortando assim todos os laços com a vida espiritual."

"A Fonte Grega"


Simplesmente, esta ideia da justiça não decorre, segundo Werner Jaeger, por exemplo, da contemplação da Natureza, mas é a transposição da noção do direito e da justiça desenvolvida na experiência colectiva da pólis.

Parece, assim, que a ciência moderna, virando as costas a essa justiça demasiado humana, perdeu a medida que lhe permitia ainda manter um contacto com a "Terra" e com qualquer finalidade humana.

Mas Einstein ainda se inspirou nessa justiça na sua procura duma harmonia no universo.


"Fuga do Egipto" (José Ames)

A MALDADE SUBJECTIVA



Revi, num destes dias, um grande filme de Minnelli: "The bad and the beautiful" (1952).

Parece que a figura de Jonathan Shields (Kirk Douglas) se inspirou no produtor David Selznic.

Este homem tinha um grande mérito: era capaz de despertar o entusiasmo nos que com ele trabalhavam, mas no caso das outras três personagens principais, à custa do que parecia uma traição.

A actriz destroçada (Lana Turner) é levada a acreditar num amor que a deixa sozinha, logo que pode caminhar pelo seu pé, o aspirante a realizador (Barry Sullivan) empenha-se no projecto da sua vida, para ver esse papel entregue a outro, mais experiente, e o argumentista que não consegue trabalhar (Dick Powel) por causa duma mulher frívola, vê-se enfim isolado para escrever, mas para sempre separado do amor.

Toda esta decepção e todo este sacrifício pessoal são o motivo do ódio aparente do trio por Shields, a quem devem, contudo, a presente glória.

O filme acaba com estas três cabeças, que acabam de recusar um convite do seu produtor, juntando-se à volta do telefone para ouvirem os pormenores que Shields explica ao anfitrião.

O que me agrada neste filme, é a verdade duma inextricável confusão dos motivos egoístas e dos grandes princípios que se pode verificar em todo este mundo ressentido.

Jonathan Shields cortava a direito, sem contemplações pelos "estados de alma" da sua equipa. Como é proverbial, o melhor amigo é quase sempre o mais severo para com as nossas fraquezas.

Apesar de tudo, o título justifica-se. Não se trata de maldade, mas de... estética.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

LÁ LONGE A MENINA NUA


http://avenida-dos-aliados-porto.blogspot.com

"Mas eles calaram-se; debaixo da agitação dos trémulos do violino que a protegiam com a sua vibração à distância de duas oitavas - e como num país de montanha, por detrás da imobilidade aparente e vertiginosa duma queda de água, nos apercebemos, duzentos pés mais abaixo, a forma minúscula duma viajante - a pequena frase acabava de aparecer, longínqua, graciosa, protegida pelo longo rebentamento da cortina transparente, incessante e sonora."

"Du côté de chez Swann" (Marcel Proust)


Trata-se da pequena frase musical do andante da sonata para violino e piano de Vinteuil, talvez a mais famosa das composições que nunca existiram.

E é o hino do amor de Swann e Odette.

Naquela descrição há toda uma arquitectura característica da música.

A delicadeza da frase é protegida pela distância e pelos acidentes da paisagem. Como se a sensibilidade do "melómano" fosse uma questão de posição no espaço. Ou de estar, entre as formas que se movem, num ponto privilegiado.

Penso na estátua da menina nua naquele centro deserto da Avenida dos Aliados. Ocupando, na sua desproporção, um lugar do sentido e da memória, mais do que o centro real.


Viseu (José Ames)

A MANDALA


Mandala

"Noutro sítio, mas do mesmo modo, em Flaubert, são as macieiras normandas em flor que eu leio a partir de Proust. Saboreio o reinado das fórmulas, a inversão das origens, a desenvoltura que faz com que o texto anterior provenha do texto ulterior. Compreendo que a obra de Proust é, pelo menos para mim, a obra de referência, a mathésis geral, a mandala de toda a cosmogonia literária (...)"

"O Prazer do Texto" (Roland Barthes)


Uma obra que recria o tempo como esta pode ainda ser outra coisa além do intertexto e da "recordação circular", em cujas sinapses não só a literatura mas a própria vida são "deslocalizadas", como se diz das empresas que mudam de contexto geográfico.

Gosto de pensar que no momento em que pôde anunciar a Céleste Albaret "cette chôse tellement bien" que era a palavra fim, Proust tinha completado um método mais do que escrito um romance.

Porque, competindo com o trabalho do tempo, ele podia lançar o olhar do criador sobre essa outra vida e salvá-la da existência, desse rio heraclitiano, em cujas águas não podemos mergulhar duas vezes.

Nenhum outro escritor utilizou os segredos do corpo e a memória das palavras para encontrar, com tanto sucesso, intacto, um estado anterior do universo.

Nesse sentido, a memória é já a abolição da seta do tempo e o anterior pode realmente provir do ulterior.

domingo, 21 de janeiro de 2007

WOODY NO PAÍS DOS LORDES


"Scoop" (2006-Woody Allen)

Woody Allen voltou a filmar no país dos lordes e da condução à esquerda.

A barca de Caronte não destoa num filme em que os truques de magia convivem com o diálogo entre vivos e mortos.

Mas o verdadeiro truque não é segredo nenhum, e é como se entrássemos na caixa mágica da desmaterialização depois de já termos visto como funcionava.

Reforçam-se todas a provas da inocência do criminoso, ao longo da história, mesmo à custa da psicologia e da verosimilhança, para no fim resultar a pirueta que confirma o "scoop" e a intuição do par de detectives amadores.

Mas por que é que um homem que em recente entrevista declarou que a morte é o fim de tudo não nos pode proporcionar um bom passatempo?


"Friso" (José Ames)

A CAMA DE PLATÃO


"A Escola de Atenas" (Rafael)

"A partir deste ponto realiza-se, no neoplatonismo, um movimento inverso (*), até o fim da filosofia antiga. Foi precisamente o mito platónico da alma que teve a capacidade de resistir ao processo de racionalização integral do ser e até de se infiltrar novamente e dominar progressivamente, a partir do núcleo, o cosmos racionalizado. Foi aqui que se inseriu a possibilidade da sua aceitação por parte da religião cristã, que nele encontrou, por assim dizer, a cama feita."

"Paidéia" (Werner Jaeger)


O processo de racionalização total teve outra grande oportunidade com a ciência moderna que suplantou todos os anteriores sistemas de legitimação.

Se imaginarmos os primeiros momentos do conhecimento científico, não nos admiraremos que as suas provas, num mundo povoado de deuses, não fossem, ao contrário de agora, impressionantes, a ponto de ter dado lugar a uma outra superstição, mais subtil.

O círculo da razão não fecha, e é por isso que nunca poderíamos viver em autarcia, como se não houvesse um problema da origem ( a Physis ).

E um Platão irónico e explicando-se através dos mitos espera-nos no fim de todas as provas.

(*) do exterior para o interior, do cosmos para a alma.

sábado, 20 de janeiro de 2007


Virtudes (José Ames)

SEREIAS E OUVIDOS TAPADOS



A atracção das sereias é perigosa para quem se desvia do seu fim. É uma força que ultrapassa as personagens e as submete a um destino trágico. Ouvir o canto é já perder-se. Todo o homem é Ulisses amarrado a um mastro de precauções e juramentos.

A força da sereia não vem do sexo. Na beleza há mais do que os sentidos e do que a harmonia. Sempre se representou a figura de torso nu com seios investidos da intensidade genital, e a água pede o corpo liso e as escamas. A sua roupagem é menos material do que atitude. Um modo de levar a cabeça e os ombros, de mexer o corpo no andar, uma pose que esconde o movimento das paixões.

As raparigas em flor não têm por que dissimular o excesso de vitalidade. E é servindo-se dum corpo inocente que atingem o fauno adormecido. Mas estes amores são correrias numa ilha perdida. Iludimo-nos sempre ao confiar na voz da imaginação; como se fôssemos sempre os mesmos e os outros fossem aquilo que parecem.

O mundo esbate-se em volta dum rosto por onde passa o universo da pintura e nós mesmos podemos fundir-nos no pigmento velado, sem forma. Desse sonho não se desperta sem uma decisão. Toda a força simbólica do nosso passado irrompe entre a linguagem e o corpo selvagem. Imitamos esse modelo perfeito que faz viver o que não se pensa, nem se fala. O desejo experimenta-nos como sujeito que não se conhece. É preciso uma certa história pessoal para conhecer a tentação da sereia. É preciso viver a perda da infância e a divisão interior entre luz e trevas.

A verdadeira paixão amorosa, a da alma, rejuvenesce o seu objecto, subtrai-o à obra do tempo. Enquanto que o adolescente vem a uma festa campestre pela mão das fadas. O amor é uma ideia futura que não tem pontos de apoio. Assim ele experimenta a necessidade de agir para conceber a ideia do amor. O canto não é para os seus ouvidos abertos a todos os sons do mundo.

Mas uma moça que ri com outra interpela este sexo presunçoso e ligeiro que quer sempre jogar a sua sorte. E como a timidez é o estado natural dos rapazes, o descerrar de dentes é a primeira das graças.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

MISTERIOSA RELAÇÃO


"A filha de Jethro" (Botticelli)


"Verdadeiramente há um progresso sensível, dizia-se ele no dia seguinte; vendo exactamente as coisas, eu não tinha ontem qualquer prazer em estar na sua cama: é curioso, achava-a até feia."

E, decerto, era sincero, mas o seu amor estendia-se muito para além das regiões do desejo físico. A própria pessoa de Odette não tinha nele um grande lugar."

"Du côté de chez Swann" (Marcel Proust)


Ocorre-me o "mot" de Lacan: "Il n'y a pas de relation."

Swann apaixonou-se por uma mulher que não desejava e que não era "o seu tipo". Pintou-a com as feições da filha de Jethro do Botticelli da Capela Sixtina, achou-lhe o mistério e a imprevisibilidade de qualquer ser independente e livre, que a dissimulação e a infidelidade da amada tornavam mais denso e complicavam.

Não era o desejo do desejo que perseguia, a identificação ou a posse (Bernardo Soares diz que não se possui coisa nenhuma), a não ser como aquilo que o fazia sair dum estado de esterilidade moral.

E comparo isto ao jogo dum actor versátil como Peter Sellers, por exemplo, o qual, através das várias máscaras foge de si mesmo numa alucinada relação com o outro.

Neste caso, o realismo da metamorfose dá a medida do prazer.


"Hawks" (José Ames)

A ESCOLHA DOS DENTES



"Estrepsíades:
- Antes de mais nada, que estás a fazer? Diz-me, por favor.
Sócrates:
- Caminho pelo ar e examino o Sol.
Estrepsíades:
Então é de uma cesta que observas os deuses, e não da terra, pelo visto?"

"As Nuvens" (Aristófanes)


É de sempre a incompreensão do homem prático pela teoria. Mesmo na idade de oiro da Filosofia, era assunto de comédia a falta de bom senso do sábio nefelibata. E a imagem de Tales a cair num buraco enquanto olhava para as estrelas é de todas a mais eloquente.

Mas já devíamos saber que foi apesar dessa falta de sentido prático e por essa aérea indagação de astros e deuses que foi possível todo o progresso do pensamento e da ciência, o qual nos levou também à concepção do direito e da dignidade do ser humano.

As maiores descobertas da humanidade foram feitas por homens eventualmente destituídos de competências que consideraríamos normais, que viviam nas "nuvens" e contemplavam os astros do fundo do poço em que, por distracção, tinham caído.

E é agora que se pretende negar essa evidência, em nome da "performance", do rendimento e dos resultados.

Ao banirem a Filosofia do sistema de Ensino, os governantes mostram-se "modernos", no pior sentido. Porque se falha na transmissão duma herança que, apenas ela, justifica o que somos, e em vez disso se restringe o passado à entrega de armas para as novas gerações competirem e vencerem no mundo do dinheiro.

Como nem todos poderão enriquecer, prepara-se-lhes um futuro em que terão por mais que certa companhia a derrota e a frustração.

Sem a formação do espírito, resta à Escola tratar dos maxilares e dotar os vindouros de bons dentes para uma luta ao nível da selecção "natural".

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

O CAMINHO DO MEIO


Quintus Horatius Flaccus(65/8 AC)

"Seguir o bom caminho na vida, Licinius, é não querer sempre ganhar o alto mar, é também não ficar, por medo da tempestade, demasiado perto da costa semeada de escolhos. Quem quer que escolha o justo meio, precioso como o ouro, vive em segurança sem sofrer da pobreza e das suas fealdades; vive na moderação, longe dos palácios que inveja o homem vulgar. Os pinheiros elevados são mais vezes batidos pelos ventos."

Horácio ("Odes")


A sensatez deste conselho parte do princípio de que o homem se depara muitas vezes, na sua vida, com encruzilhadas e que tem de se decidir por um dos caminhos.

Mas as mais das vezes não há encruzilhada nenhuma, e é preciso seguir até ao fim o caminho que não escolhemos.

A "aurea mediocritas" aplica-se melhor à cartilha dum investidor timorato.


Angra do Heroísmo (José Ames)

ADORADA OPINIÃO


Mecenas

"Mecenas, descendente duma raça de reis, ó meu apoio e minha doce glória, (...) Se tu me pões ao nível dos poetas líricos, eu baterei, com uma fronte orgulhosa, os astros."

Horácio ("Odes")


Um grande poeta podia, sem se rebaixar aos próprios olhos, adular com este exagero o epónimo dos mecenas.

Quando o imperador era divinizado - e quantos, depois de Augusto, não perderam a distância irónica dos títulos que lhes conservava um resto de razão? - , todos os que faziam parte do seu círculo mais íntimo, como o meio em que a imagem da vara mergulhada parece já não ser direita, provocavam uma comparável distorção do pensamento e da linguagem.

O tempo e os costumes justificam quase tudo.

Quando, sem nos darmos conta, nos rendemos a uma opinião pública que é tão pública quanto os meios de comunicação e o poder que deles se apropria e infesta, não é isto também adulação?

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

SEXISMO NO PARAÍSO


Adão e Eva (Miguel Ângelo)


"As mulheres sendo a este respeito mais rebeldes do que os homens a depor toda a curiosidade mundana e o desejo de se informarem por sua conta dos encantos dos outros salões, e os Verdurin sentindo, por outro lado, que este espírito de exame e este demónio de frivolidade podiam por contágio tornar-se fatais à ortodoxia da pequena igreja, tinham sido levados a sucessivamente rejeitar todos os "fiéis" do sexo feminino."

"Du côté de chez Swann" (Marcel Proust)


Não é este o tema da tentação de Eva?

Sempre a curiosidade e a inconsequência. Por detrás do espírito de exame, a vaidade (por que não eu?). São as três fraquezas "teologias" do feminino exploradas pelo rastejante sedutor.

O Sr. Verdurin e a "Patroa" governam com zelo e bonomia o seu pequeno éden burguês.

E como já conhecem a história preferem a costela celibatária.


"Gisé" (José Ames)

MANEIRAS DE VER


"O Juízo Final" de Miguel Ângelo

Quanto mais admiro os frescos do "Juízo Final", a terribilità daquelas figuras, o paganismo daqueles corpos em audaciosas poses que se agarram e contorcem sob o olhar do juiz implacável ( não já o doce predicador da Galileia), como a matéria que o fogo consome, mais milagroso me parece que tenham chegado a ser pintados naquele ambiente e durante séculos conservados, e que a maior ameaça ao seu significado tenha sido uma camada de tinta para cobrir as partes pudendas daqueles gloriosos nus.

É verdadeiramente um choque de religiões e essa admiração e espanto explicam outros milagres como o do Panteão de Roma ter escapado aos bárbaros e Santa Sofia a uma religião de guerreiros do deserto.

Por detrás de Miguel Ângelo está, evidentemente, o prestígio da Antiga Grécia que produziu o Renascimento e deu Aristóteles à Igreja e, com as suas obras de arte, a sublimação da natureza de que precisava uma religião dada a macerações e ao desprezo do corpo.

E é o corpo intratável que por todo o lado se liberta nos frescos da Sixtina.

Haverá melhor exemplo do poder e independência do ícone sobre a verdade do artista, quando pensamos nas cerimónias que ali têm decorrido já lá vão quinhentos anos?

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

O PLANO INCLINADO


Um "Capricho" de Goya

Resisto a empregar o termo de polémica a propósito do referendo próximo.

Em abstracto, o direito ao aborto é, decerto, uma monstruosidade. E é claro que não se trata de um direito, visto que as mais das vezes é uma fatalidade que ninguém deseja.

A chamada IVG só pode ser, assim, um caso de força maior e a sua penalização não faz qualquer sentido.

E está tudo dito? Pelo contrário, nada está dito.

No outro dia, tive uma enorme dificuldade em defender a simples dúvida, tão avassaladores são os argumentos e a "pressão paradigmática" a favor do sim.

Porque, na verdade, é isso o que se passa. Defender o não, ninguém o pode, em coerência, sem pugnar por uma reintrodução do sagrado nas nossas vidas e pela limitação do individualismo, que tudo favorece na nossa sociedade, a começar pela tecnologia.

É nestas alturas que se vê que não sabemos o que queremos.


Angra do Heroísmo (José Ames)

A CIDADE CELESTE


Platão

"É necessário recordar que esta cidade é uma ficção, um puro símbolo que representa a alma. Platão di-lo: "É no céu talvez que existe um modelo desta cidade para todo aquele que o quiser ver e, vendo-o, fundar a cidade do seu próprio eu." ("A República")

As diferentes categorias de cidadãos representam as diferentes partes da alma."

"A Fonte Grega" (Simone Weil)


Como nos temos de governar a nós próprios, segundo alguma espécie de justiça e para o bem da nossa alma, Platão torneia a dificuldade de cada um ser a regra de si mesmo, tomando a cidade (como a mesma questão em ponto grande, a fim de ser mais perceptível) como modelo, já que também carece de um governo e duma ideia do bem comum que oriente a vida política.

Aqui, com outro alcance que em Menenius Agripa (494 AC) que identificava as classes sociais com os diferentes órgãos do corpo para justificar uma imprescindível solidariedade, é a ideia de que a orientação para o bem é tão necessária à alma como à cidade e que, no fundo, há uma só justiça: a ideal.

Mas o ponto está nesta expressão: "para aquele que o quiser ver", que deixa claro que não há justiça nem ideal sem empenhamento da vontade.

O uníssono orgânico de Agripa não é nada ainda sem o motivo e a orientação.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

PESO DE ESPÍRITO



"Swann não compreendeu esta história, mas por outro lado sabia que ditos como estes: "O mundo é tão mau", "Um dito calunioso propaga-se", são geralmente tidos por verdadeiros; devia haver casos aos quais se aplicassem. O de Odette seria um deles? Perguntava-se, mas não durante muito tempo, porque era sujeito, também ele, a esse peso do espírito que pesava sobre o seu pai, quando ele se colocava um problema difícil."

"Du côté de chez Swann" (Marcel Proust)


São casos como este que nos dissuadem, antes mesmo de haver razões para isso, de ir demasiado longe no caminho duma descoberta que poderia pôr em causa o nosso mundo.

A razão torna-se então um verdadeiro sistema de defesa da vida, mais do que de compreensão e de conquista da natureza.

Esse mecanismo podia, aliás, alargar-se à economia e à sociedade.

Só nos colocamos os problemas que podemos resolver.


"Foz" (José Ames)

LACÓNICAS VIRTUDES


Um hoplita espartano


"(...) e contudo eles governam dois quintos do Peloponeso e têm a hegemonia sobre a sua totalidade, e ainda, fora dele, sobre muitos aliados. No entanto, como a cidade deles não é um centro único, e não possui templos nem construções opulentas, antes se distribui a sua população por aldeias, à maneira antiga da Grécia, pareceria muito insignificante. Ao passo que, se aos Atenienses acontecesse o mesmo, se lhes atribuiria o dobro do poder que realmente têm, em face da sua aparência."

Tucídides (in "Hélade - Antologia da Cultura Grega", trad. Maria Helena Rocha Pereira)


Tucídides compara Esparta e Atenas. O poder de uma e a glória da outra.

Podemos hoje dizer que muito pouco saberíamos dos Lacedemónios se estes não fossem objecto de admiração por parte daqueles que suportaram a sua hegemonia.

Uma sociedade fechada e parada no tempo constituía, para a sua rival ateniense, aberta a todas as influências, uma espécie de repositório das antigas virtudes.

domingo, 14 de janeiro de 2007


Porto (José Ames)

O PRETÉRITO PERFEITO



Tudo é permitido no amor, excepto a indiferença.

"Le Passé Simple" conta a história dum rapto de memória mal sucedido e o sucesso duma reconciliação post-mortem. Aproveitar uma amnésia para conquistar o passado distante e esquecer o recente: o da infidelidade. É um estratagema do desespero, uma manobra para ganhar tempo como diz François. Ele corre o risco disso ser tomado como desprezo da liberdade do objecto amado.

Mas a prepotência é demasiado infantil para não revelar a paixão extrema. Enquanto procura subtrair-se às malhas da ficção do amante, Cécile descobre que toda a violência e toda a mentira que pode imputar-lhe são o signo certo de que é amada. Ou isto: que ela é livre apenas para saber que a paixão não é livre. E há neste sacrifício total do espírito uma tão grande força de atracção, uma “obrigação” de reciprocidade tamanha que, pelo simples facto de se mostrar, o amor se comunica. O que leva ao malogro e à mediocridade é, pelo contrário, a incapacidade de se atingir a evidência no amor, e isso é assim porque não se correm riscos, nem se teme a liberdade do outro.

Mas os sinais fortes comovem sempre. A morte do amor-paixão é a vida civil e os filhos. O egoísmo não repele o sentimento nem a paixão: o que é esta fúria senão uma pressa de chegar aos próprios fins e de guardar o seu bem? É tanto mais profundo o desejo do outro quanto mais ele me quer todo, salvando nessa aspiração o que em mim é inferior e digno apenas da minha atenção. Pode bem dizer-se que é o amor que eleva o egoísmo exacerbando-o, dando-lhe como que a sua imagem no corpo do outro. Como é pesado o fardo do amor de si mesmo! Ele é irreal à força de se defender do pensamento que quer subtilizá-lo. Enquanto que quem ama faz nascer o corpo para a voz directa.

O hábito, a segurança das emoções, a ordem que faz reinar a casa, tudo leva à economia do amor. Também é então que as ocasiões fazem a traição, por falta de sinais e da prova do fogo que dormita. O acidente de Céline trouxe a renovação dos corpos e um olhar desiludido sobre o terceiro. Vitor Lanoux não faz jogo limpo. Não se permite a verdade, mesmo quando apanhado em falso. Esconde detrás dum novo véu a memória que quer proteger da impaciência. E sobretudo do conteúdo que quer confrontar com a vida. Afinal nada se repete. Interrompida, a ligação com Bruno é passado perfeito. Ao contrário do amoroso, ele foi sábio e pareceu guardar as conveniências. E estava longe. Tinha sido um pretexto para pôr em causa uma relação duvidosa da sua identidade.

Bruno teria posto as cartas na mesa. De entrada daria toda a liberdade a Cécile, como quem diz: - não podes deixar de escolher-me a mim que sou leal e quero acima de tudo o teu bem. François não, e ganhou.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007


(José Ames)

DUAS CRÍTICAS


"In critique of judgment, lost boy" (Ralph Steeds)

http://www.uncp.edu/art/steeds/gallery.htm

Quando a religião se separa da filosofia, fica só a crítica (Alain). Sem um ponto de apoio que é sistema, não há crítica.

Que as coisas realmente importantes estejam fora de discussão e para sempre inacessíveis ao logos, eis uma ideia que choca à primeira vista. O problema da origem e da validade absoluta do pensamento não pode ser resolvido, e o homem, sempre à procura de respostas, encontra-as, infalivelmente, sem avançar um passo na questão metafísica.

A nossa vida baseia-se então num mundo de provas e de leis empíricas que se justifica em última análise pela sua simples eficácia. Contudo, esta magra ração não enche a humana medida. O facto de se formular o problema da verdade além da justiça e da moral, como fundamento do sujeito e da natureza pensante, obriga-nos ao salto mortal da razão e a todas as decisões urgentes da afirmação vital. Apaixonamo-nos, portanto, por uma coerência que não é lógica, o racionalismo defende-se com a certeza do instinto.

É de dentro dum sistema que se critica a sua falha, a sua traição ao modelo. Ou doutro que vive da morte do que critica. Mas neste caso é fácil de ver que a crítica é menos uma oposição real do que um expediente para a passagem e a sucessão, uma astúcia do “aufhebung”. Esta crítica não pode compreender. Pelo contrário, a sua eficácia estratégica depende do erro de interpretação.

O conhecimento recíproco gera o equilíbrio. Se a crítica desmascarasse o sistema, este seria eterno. A recuperação do marxismo não é o efeito paradoxal da sua pertinência? Onde foi certeiro o ataque, o sistema tornou-se a imagem da sua crítica, organizou-se à sua custa, tomou consciência de si através das ideias que lhe dão combate. E é a parte utópica e ingénua do marxismo que pulsa ainda fora do coração do sistema. Não admira por isso que o reformismo, a crítica endógena, tenha tido uma história mais consequente.

A ideia de que a acção humana é incompatível com a desordem social e de que não é possível criar um sistema novo sobre as cinzas do passado é a lição da sabedoria. Enquanto a ideia generosa está no céu, pode inspirar os homens no caminho duma maior justiça. Mas a tomada do poder é o túmulo da revolução, porque a violência, seja ela a dos oprimidos, faz escravos em vez de homens livres. E como o medo não pensa e a tristeza mata, eis a justiça perdida e de resto tornada desnecessária. Viver ocupa todas as forças.

A crítica, por isso, que sabe de si própria? Mesmo a perfeição do sistema não autoriza a que o homem se torne um crítico. Pensar é mais do que isso e faz mais falta.