sexta-feira, 29 de agosto de 2014


O DESEJO DOS ANJOS

"Asas do desejo" (1987-Wim Wenders)

Os anjos de Wim Wenders ("Asas do desejo") aborrecem-se terrivelmente. Como sombras entre os homens, até pegar numa maçã ou fazer a barba lhes parece um privilégio.

Escutam os pensamentos secretos desses berlinenses que emergiram das ruínas, como o velho que procura o lugar do seu antigo café no baldio da Potsdamer Platz, mas a sua simpatia dissipa-se quase sempre num sorriso inútil.

Nem sequer como o James Stewart do filme de Capra ("It's a wonderful life") podem comprovar que o mundo sem eles seria muito pior.

Glosa do consagrado voto de Aquiles que preferia viver como escravo uma hora a ser rei uma eternidade no mundo subterrâneo, este filme parece feito por medida para uma cidade que ainda não reaprendeu a alegria de viver.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Sem título

Abrantes

 

DON JUAN E O SEXTO SENTIDO

Francisco de Goya. Don Juan y el Don Juan e o Comendador Goya)

 

"O senso comum é o sexto sentido que controla os outro cinco e nos permite pressupor um mundo partilhável por todos.
(Hanna Arendt)

Descartes disse algo de parecido, que era a coisa mais bem partilhada deste mundo. Se bem que nos pareça, algumas vezes, que o mundo enlouqueceu. Mas se há tantos loucos, ou que parecem loucos, (exagerando o 'grão de loucura', aconselhado por Pessoa), talvez isso se deva ao facto daquele sentimento ser, apesar de tudo, predominante, e a humanidade como um todo se poder permitir a margem mais extrema.

A verdade é que nenhum de nós, individualmente, tem forças físicas ou morais para 'sustentar' um mundo partilhável. Não teríamos em nós nada que nos tirasse da irresolução, o pior dos males segundo o filósofo do "Cogito". Esse 'capital' de fé partilhável é insubstituível, pois é a partir dele que podemos começar a sociedade e o mundo político.

Nada como o cinismo daqueles que julgaram poder pensar o 'senso comum' e identificá-lo com a razão, por exemplo, para ilustrar o mal de se perder esse senso comum. Porque o cínico se encontra ensarilhado em malhas desfeitas que não consegue voltar a tecer.

Não é um pessimista (pode-se partilhar, por exemplo, 'o fim dos tempos'), mas sofre da frivolidade de D. Juan. Nada existe com o fundamento do 'sexto sentido'.

 

 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Sem título

(José Ames)

 

REMBRANDT

 

Rembrandt deixou-nos mais de 60 auto-retratos, alguns contando-se entre as suas obras-primas, como este em exibição no Metropolitan Museum, aos 54 anos. Ninguém dedicou tanto esforço criativo a reproduzir a imagem do seu próprio rosto.

Parece que o pintor sofria de estereopsia, o que levava o seu cérebro a ver o mundo a duas dimensões, como se fosse plano. No artigo citado (*), diz-se que isso resultou numa vantagem para a pintura do mestre (não se aconselha os aprendizes da arte a fechar um dos olhos para 'reduzir' certos efeitos da terceira dimensão?). Facilmente se encontrariam, na história da arte, outros exemplos em que a natureza fornece a 'lente' que distorce o mundo, levando instintivamente o pintor ao seu estilo. O impressionismo, por exemplo, foi uma criação ou a transformação de uma necessidade? O facto é que os nenúfares de Monet se parecem, cada vez mais, com a limitada visão de um processo de cegueira.

Voltando a van Rijn, a galeria dos seus auto-retratos corresponde ao que hoje chamaríamos de obsessão, a uma exagerada auto-focagem, pior ainda, a um narcisismo (os retratos da juventude são teatrais, noutros aparece como uma personagem histórica com a respectiva indumentária)? Teria sido um actor (falhado)? Ou tudo começou como uma 'verdura' inconsequente e frívola e tornou-se, com o tempo, o seu acto mais livre (desde logo das encomendas, tão necessárias, dadas as suas constantes dificuldades financeiras), a sua pintura mais íntima, a sua 'Recherche' proustiana?

Mesmo nos grandes pintores, o tempo sempre trai o artista. A maneira muda, reflectindo (quando não é ditada pelos imperativos exteriores) a metamorfose do 'olhar', a nova e antiquíssima forma do tempo.

Rembrandt deixou as ilusões para a pintura temática e para os retratos que pagavam bem. Na sucessão dos seus rostos, ao longo de 40 anos, ele diz-nos de que é que consta a expressão, qual é o seu verdadeiro objecto. Nesse plano, a decadência física é a primeira coisa que é negada.

 

 

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Berlim (José Ames)

FÁBULA EMPRESARIAL

"Who's minding the store?" (1963-Frank Tashlin)

Quando a impotência para agir e para compreender é um facto sentido por toda a gente, a má-língua torna-se um substituto da crítica e surge a paixão de dizer mal. Os que governam e os que têm a missão de os controlar são como a mosca da fábula que pensava fazer andar a carruagem, ao poisar as patas em tudo.

Mas a necessidade não se faz menos sentir, e um gato pode deixar sem luz meia cidade. Assim leis menores podem produzir grandes efeitos, mesmo se são feitas às cegas.

Mas desçamos ao concreto. Numa pequena empresa, o patrão estuda o seu microcosmos com uma atenção interessada. A afectividade e a identificação pessoal ligam a organização das coisas à vida dos homens. Só esse zelo prevê e corrige verdadeiramente.

Ainda há quem pense que o trabalhador seria capaz da mesma inteligência e do mesmo interesse, porque depende da empresa a sua sobrevivência. Mas o salário, ao compensar a tarefa, desobriga de tudo o resto. E mesmo um gestor, pago pela função de gerir, não pode, sem obscenidade, tratar a empresa, como coisa sua. O dinheiro impede todas as outras mediações e até a escatologia do lucro.

A grande empresa moderna não engendra o espírito da economia, mas sim o do standing e o carreirismo. Um conselho de administração é afectado pelo zumbido duma colmeia e está reduzido ao parecer e às informações distorcidas pela ambição profissional dum pequeno grupo de directores.

Enquanto se complica a vida duma empresa e se reúnem as condições do seu declínio, os feiticeiros, sentados na sua autoridade, estão optimistas. Pagam-lhes para fazer assinaturas e habitar um gabinete de luxo. O pior é que eles querem gerir. E os trabalhadores são os primeiros a exigir o plano e o organigrama.


Então, quando se multiplicam os sinais de alarme, mas ninguém sabe o que se passa, a maledicência vem, porque conforta.


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Sem título

(José Ames)

 

O ESPÍRITO FRANCISCANO

 

"E, no entanto, este santo gentil (Francisco) parece ter aprovado as Cruzadas e acompanhado a Quinta Cruzada ao Egipto, embora não tomasse parte nos combates e, em vez disso, tivesse prègado ao Sultão."

Karen Armstrong ("The case for God")


Nem São Francisco podia saber o que trazia consigo a aprovação das Cruzadas. A Igreja seguiu o seu chefe, representante de Deus na terra. A liberdade de pensamento exercia-se dentro de um círculo incomparavelmente mais estreito do que hoje. Se Sartre pôde dizer que o marxismo era o horizonte da nossa época, Deus foi o único horizonte durante milénios. O homem caiu na sua solidão metafísica de uma tremenda altura. Não exageremos a responsabilidade do santo...

A ingenuidade (aos olhos de um céptico) de prègar ao Sultão, cabeça de uma religião que, ao mesmo tempo, se atacava militarmente, tem, por outro lado, um contraponto moderno, na iniciativa do papa de converter à amizade as duas Coreias inimigas.

O espírito não podia ser mais fora do 'horizonte' do nosso tempo, porque é de todos os tempos. E é isso que as ideologias não suportam.


domingo, 24 de agosto de 2014

Sem título

 

Porto

 

INTELIGIBILIDADE

Albert Camus

"A maior economia que se pode realizar na ordem do pensamento é aceitar a não-intelegibilidade do mundo e ocuparmo-nos do homem."

Albert Camus ("Carnets")

É a famosa tese do absurdo. Mas vejamos, ficaremos melhor se considerarmos o mundo como absolutamente estranho e fora da nossa compreensão (o que não deixa de ser uma espécie de aposta pascaliana invertida, porque exclui a 'salvação' mesmo sendo o mundo ininteligível)?

Não sabemos "donde vimos", nem "para onde vamos" (as perguntas do quadro de Gauguin), como poderíamos senão ocuparmo-nos da 'passagem'? O não-inteligível resulta de não termos respostas para essas questões. O que temos é a inteligibilidade de um percurso, no fundo, de uma história que contamos a nós mesmos.

"Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca... "

A única salvação cuja crença está ao nosso alcance é aquela que dá sentido ao mundo dos homens. Quanto ao 'resto', que é o essencial na perspectiva filosófica, ninguém é salvo, nem ninguém é condenado. Camus diz que nem sequer é inteligível.

Compreendemos o nosso mundo através da Criação, porque o criámos. A inteligibilidade não pede menos do que isso.

sábado, 23 de agosto de 2014

Sem título

 

(José Ames)

 

TEOREMA

Teorema" (1968-Pier Paolo Pasolini)

A idade não basta para explicar o respeito. É preciso ainda a distância dos sentimentos e uma soberana indiferença pelo que possam dar os jovens de pessoal. Todo o contrário, como se vê, não só do que lisonjeia a juventude por amor ou interesse, mas também da atitude preocupada dum pai. Aquilo que é livre e parece completamente não precisar de nós é o que mais atrai num jovem ambicioso. Mesmo as crianças perdem muito do seu encanto quando se tornam insistentes e mimalhas. No entanto, quem mais do que elas está à mercê da nossa vontade? Mais duma vez também vi o homem maduro e distante mostrar que a indiferença é um jogo entre ele e as suas paixões. O jovem é, naturalmente, sedutor. Mas quem o recebe sem guarda de fronteira perde-o e perde-se. Talvez que o milagre de "Teorema" seja o dum jovem que sabe o que quer e para onde vai. Quem pode resistir à aliança do espírito e da graça? É preciso, porém, que a juventude aprenda. E o modelo vivo é o melhor mestre. Não é difícil de ver então que o espectáculo dum homem que se domina perfeitamente, que se move como um rei entre os outros homens, porque é senhor das suas paixões, é o que mais aprecia o animal rebelde que apenas começou a pensar. Admirar é imitar.

O respeito fica quando a admiração bateu as asas. Mas uma roupagem de cortesia e um pudor nunca ofendido no riso e na intimidade são necessários. Seguramo-nos uns aos outros, mesmo quando o tempo esbateu a diferença de idades. Compreendo assim que certas fidelidades sejam muito mais do que a comunidade de ideias. De resto, as opiniões políticas, se vistas realmente pelo que são, sem parti pris, são o material neutro de que se cimenta a relação. Bem antes é a atitude para consigo e para com os outros, a moral, numa palavra, que é o fundamento verdadeiro da política. As construções ideológicas tornam-nos presa dum jogo político complexo e artificial. A isso podem resistir as relações veneráveis. Desde que a inteligência vá à frente a desbravar o caminho.

O homem respeitado liga-me a esse olhar exigente que não pisca. Suponho que um partido nunca terá a vida necessária para obrigar assim alguém a uma moral. Mais, a expectativa dos outros, satisfeita no passado e sempre convencida do seu direito é uma força básica da personalidade. Não se pode mudar de testemunhas, como se muda ou se pode mudar de ideias. Mas que conflito não viverá a alma quando os contemporâneos mais próximos obrigarem as ideias do passado a comparecer em tribunal?

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

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Leça

 

NÃO TER PÉ

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"Ser profundo por insinceridade."

"Carnets" (Albert Camus)

Só somos sinceros se aquilo que pensamos não trair o que o outro 'tem direito' a esperar de nós. Traição, tradução. Se é preciso interpretar, é porque a sinceridade começa a ser problemática.

Mas esse estado feliz da 'comunicação', da partilha de um mundo comum, exige 'pôr entre parêntesis' o que somos para além dessa comunicação e dessa partilha.

O método que o nosso cérebro utiliza para resolver os problemas mais difíceis e os mais complexos passa por uma simplificação artificial que decide o que é 'essencial' e o que pode e muitas vezes tem de ser desprezado. Vivemos naquilo a que Musil chamava de distância média, ou no que o filósofo grego definia como a medida de todas as coisas.

Não somos propriamente insinceros sempre que abandonamos o 'mundo real' da inter-subjectividade. Mas deixamos de responder por esse nós que sabemos que 'não tem pé'.

Também, na verdade, não somos 'insinceros'. Simplesmente, não estamos onde os outros nos procuram.

Claro que Camus, além disso, pode querer significar outra coisa: que há uma ética no romper da 'comunicação'.

 

 

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

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(José Ames)

 

O TIRANO



Caracalla

"O seu cabelo e a barba são muito mais curtos do que os do seu pai - iniciando uma nova moda no penteado masculino durante o terceiro século AD. Mais notável, contudo, é a emocionante caracterização da personalidade de Caracalla, um ulterior desenvolvimento da inovadora introspecção de Marcus Aurelius. De cenho carregado, abruptamente volta a cabeça sobre o seu ombro esquerdo. A intenção do escultor foi, provavelmente, com a expressão facial e o movimento dramático, sugerir energia e força, mas para quem vê parece que o imperador suspeita de algum perigo atrás de si. Caracalla tinha razões para estar receoso. O punhal de um assassino matou-o no sexto ano do seu reinado."

(Fred S. Kleiner)

A intenção do escultor pode ser o que parece, sobretudo, se o busto foi feito depois da morte de Caracalla. A obra corresponderia assim a um juízo retrospectivo. Mas, vivo, o tirano admitiria que tinha medo?

Já Platão não tinha qualquer dúvida de que o déspota só pode viver acossado e desconfiado de tudo e de todos. Mas o poder é ainda atractivo a esse preço. Além disso, parece que a fama (como os romanos a entendiam) não tinha comparação com mais nada.

O busto do imperador, na sua força obtusa, faz lembrar um animal em posição de marrada. Filho de Septímio Severo, não tinha, apesar de tudo, a perversidade desnaturada de Cómodo, o príncipe que desceu à arena para competir com os escravos do gládio. Mais anti-político só o cavalo de Calígula, o seu antepassado da família julia.

Agustina escreveu uma espécie de diário de viagem intitulado "Embaixada a Calígula". O 'embaixador' era um judeu que pretendia fazer ouvir junto do imperador a voz do seu povo submetido. O problema era, como no caso do patrono das termas mais célebres de Roma, em que 'lingua' falar-lhe. Apelar a que arremedo de razão?




quarta-feira, 20 de agosto de 2014

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Alentejo

 

SIMONE E LEON

Leon Trotsky

 

" SW - Que poderá dar esta jovem geração submetida a uma tal 'lavagem ao cérebro'?

Trotsky - (resposta evasiva e desencorajada) À medida em que a produção for progredindo... Proletariado russo ainda ao serviço do aparelho de produção: inevitável até que a Rússia tiver ultrapassado os países capitalistas. Rev[olução] de Out[ubro] análoga a uma revolução burguesa. Nào tenho nada a censurar a Estaline (salvo as faltas no quadro da sua própria política);"

(Notas de Simone Weil da sua conversa com L.D. Trotsky, recebido no exílio, em Dezembro de 1933, na casa dos seus pais)


Em ambos os interlocutores, o que parece hoje uma inconsequência e uma grande ingenuidade. A 'lavagem ao cérebro' da juventude, levada a cabo pelos bolcheviques, não era uma questão de escolha. Uma vez tomado o poder, o partido tinha de se preparar, não para o socialismo, mas para uma guerra sem quartel com tudo o que representava o antigo regime. A energia envolvida nisso não deixava lugar para os 'pruridos de consciência' burgueses. Mas, evidentemente, cada passo necessário para a estabilização do novo regime criava as condições para uma sociedade cada vez mais parecida com o anterior e execrado 'estado de coisas'. Só a nova linguagem permitia conviver com essa situação, desde que se fechasse ao mundo, como aconteceu nas esferas do poder, entregue a uma espécie de esquizofrenia. A pergunta que Simone coloca ao velho revolucionário, surpreendido com a sua insolente descrença (vinda da esquerda), é a pergunta que parte do princípio de que todas as revoluções estão à partida condenadas, mais pelo seu método do que pelas suas ideias. A desordem repõe a velha ordem ou qualquer outra espécie de ordem, mesmo que seja inferior à 'velha ordem'. Trata-se, enfim, de uma questão pró-forma.

Trotsky, pelo seu lado, parece acreditar que a 'Grande Revolução de Outubro' representa apenas um atalho para o desenvolvimento capitalista, inacabado na Rússia. Foi uma revolução burguesa, uma etapa que, segundo a sua teoria da história, não podia ser iludida. O capitalismo, e o capitalismo no seu 'estádio supremo' era pois o futuro que as novas gerações de russos tinham o direito a esperar.

Na falta de um antecedente histórico que o pudesse esclarecer, não podia prever que a burocracia do Estado iria de tão bom-grado calçar as botas dos funcionários de um novo czar, tão iluminado como Ivan, o Terrível, o qual, muito provavelmente, também cometeu erros "no quadro da sua própria política"...

 

 

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Sem título

(José Ames)

 

OS INFLUENTES

Mapa-mundo de Ptolomeu

 

"(...) a ideia de que as nossas mentes são susceptíveis a erros sistemáticos é agora comummente aceite."

(Daniel Kahneman)

Mil vezes justificada, por isso, a prudência nas nossas opiniões. O caso do homem que pensa melhor se estiver sentado do que de pé, controlando o equilíbrio, ou à sua vontade do que agarrado à pega de um autocarro apinhado, não o torna especialmente sujeito a 'erros sistemáticos'. Mas fazer parte de um grupo com grande carga identitária, que tem de tomar decisões, pode equivaler a enfiar um capacete com inúmeras ligações ao seu contexto grupal, situação mais do que propícia àquele tipo de erros. Veja-se como, por exemplo, na religião católica, a oração privada e o diálogo interior directamente com Deus, foram a melhor resposta ao constrangimento do grupo e a prevenir os erros de 'capacete'.

De resto, a humanidade pôde viver com um erro sistemático como a astronomia de Ptolomeu, durante séculos, sem inconvenientes de maior. É óbvio, porém, que não poderíamos viajar no espaço, continuando a sustentá-lo. Um Júlio Verne ptolemaico, no entanto, não teria qualquer dificuldade em escrever romances de ficção científica.

A actual falta de certezas absolutas da ciência teórica é, assim, mais do que natural. Mas a parte do mundo que 'sabe' que está certa, ou de que a fé no seu deus lhe garante essa certeza, continua a ser o maior paiól da história.

Mas essa não é a única ameaça. Os 'erros sistemáticos' no nosso mundo 'incerto' atingem proporções globais, ultrapassando a habilidade dos 'aprendizes de feiticeiro.' Daí, que não haja ainda suficiente incerteza, sobretudo, nos 'influentes'.

 

 

domingo, 17 de agosto de 2014

Dresde (José Ames)

AS TRÊS IDADES




Giorgione, o magnífico pintor do "Concerto campestre" que morreu aos 34 anos, deixou-nos outro quadro luminoso que como que resume as idades do saber: "Os três filósofos" (Viena).

Nele, vemos o mais jovem afoitamente ao trabalho de desvendar o céu, de esquadro e compasso. O ancião, relutante, vai tirar do manto os estudos que o jovem parece desprezar na sua imprudência e verdura.

Daí, que o terceiro, homem de idade madura, o tenha de convencer, pegando-lhe no braço, a mostrar o que sabe.

Vê-se que o velho gostaria de um pouco mais de respeito da parte do jovem astrónomo.

As duas partes necessárias ao avanço do conhecimento parecem de costas voltadas uma para a outra.

E é sempre preciso um mediador.

sábado, 16 de agosto de 2014

"Dead leaf" (José Ames)

A FELICIDADE DA CHUVA




"Ser feliz é poder, sem medo, tomar consciência de si mesmo."

Este aforismo de Benjamin, citado por Peter Sloterdijk, vem-me ao espírito ao ler a notícia daquela jovem africana, cheia da alegria de viver, a quem o jornalista perguntou o que era para si a felicidade: - a chuva, respondeu.
Estão assim tão distantes as duas respostas?

Uma parece idealista, privilegiando a liberdade, a outra, não podendo ser mais próxima da terra.

O sentido, contudo, é o mesmo.

A falta de chuva é também uma das razões para sentir medo.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Aveiro (José Ames) 

ORGULHO E TIMIDEZ

O Príncipe André Bolkonski ("Guerra e Paz")



Diante de Speranski, que é um indivíduo doutro meio, o príncipe André sente dificuldade em exprimir-se. Porque está demasiado absorvido no estudo da personalidade do outro. Há homens susceptíveis a tal ponto e a quem não queremos ferir de modo nenhum, que só é possível a conversação cortês com eles e a ausência de pensamento.


O tímido, ao contrário da personagem de Tolstoi, não está verdadeiramente atento ao outro – claro que Bolkonski estuda aquilo que é diferente de si próprio e que não sabe ainda interpretar, o que é, como toda a actividade “interessada” do espírito, uma necessidade pessoal -; ele defende o corpo nu do olhar estranho e quer sobretudo evitar um juízo que o ponha em causa na sua deformidade voluntária. Este é um exemplo típico dos erros da imaginação.

A timidez procura a situação mais desfavorável e que precisamente teme para não deixar de ser condenada. Mas o mecanismo salta aos olhos e pode ser desarticulado, ainda que indirectamente. A religião e o partido são como que o pano que cinge os rins do tímido, por isso é que alguns homens fracos se fortalecem pela causa externa e aparecem como os mais fanaticamente “impessoais”. A boa solução é interna e tem a ver com a filosofia e o verdadeiro lugar do sexo e das paixões.


quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Sem título

(José Ames)

 

ÍNTIMOS LADRÕES

 

Em "Les Voleurs" (1996), de André Téchiné, o cínico Alex (Auteuil), perante a confissão de Marie (Deneuve) de que ama Juliette, comenta:

- C'est beau l'amour!

É assim a loucura vista de fora. Mas a loucura dele é pior.

Porque é um polícia que já não sabe deslindar a defesa da ordem de uma paranóia contra a sua própria família, que vive do roubo. Por isso não sabe também o que sente por Juliette, com quem faz amor "como quem se suicida".

Marie não pode viver sem a sua amada, que mudou de vida. Depois de dedicar um livro ao objecto da sua paixão, põe termo à vida.

Alex pergunta-se, no final, por que é que Marie o escolheu a ele como destinatário desse livro e das cassetes com a voz de Juliette gravada. A ele, que já voltou, insensível, a mergulhar no dia a dia violento da sua esquadra, na realidade em que não acredita e que é para si um sonho mau.

Na vida e na personalidade de Juliette, a ladra, está o que pode mudar o seu ódio em compreensão e justiça.