sábado, 28 de fevereiro de 2015

Sem título

 

Bairro Alto

 

A PROFECIA DA FORÇA

Flavio Josefo: "Antiguidades judaicas"

 

Flávio Josefo (século I), autor da "História da Guerra Judaica", e defensor da província da Galileia contra o exército romano, conseguiu obter o perdão de Vespasiano, anunciando-lhe a queda de Nero e a sua própria investidura.

"Ele não ignorava, também, que Nero desprezava este Vespasiano, muito mais velho que tinha o hábito de dormir em cada uma das suas sessões de canto." ("Masse et Puissance")

Canetti acrescenta que Josefo terá ele próprio acreditado na mensagem que tinha de transmitir a Vespasiano da parte de Deus. "Ele tinha a profecia no sangue.

Apesar da sua coragem militar e do patriotismo demonstrado na guerra dos Hebreus, nenhum judeu terá deixado de suspeitar o historiador de oportunismo. Profetizou para salvar a vida.

Num caso destes, a reputação depende de outra oportunidade para estabelecer o "verdadeiro" sentido dum acto que pela sua natureza não podia ter testemunhas.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Sem título

 

(José Ames)

 

MURCHAR VERDADE ADENTRO

 

"Aquele que conhece o poder da dança reside em Deus."

(Mualāna Jalāluddīn Rūmī, poeta persa, citado por Ernst Cassirer)

 

É a uma espécie de harmonia entre o corpo (mas não o da dicotomia corpo/espírito) e o universo que se alude neste pensamento. Podíamos chamar-lhe a graça da juventude (num sentido extenso). Mas que não é a vida toda. Por que haveriam as diferentes idades cair fora dessa harmonia? Sem dúvida, o 'corpo' conhece uma harmonia mais secreta.

Yeats acaba o seu belo poema "Coming of Wisdom with Time", depois de celebrar o gozoso movimento da copa que o vento sacode, o tempo dançante da graça divina, com um "Now, I may wither into the truth" (agora, posso murchar verdade adentro - perdoe-se a canhestra tradução). A tradição moral quer ver neste mirrar do corpo o fim de um movimento feliz, mas enganoso. A árvore deve secar no fim do seu ciclo de vida. A sabedoria (wisdom) vem de mão-dada com a tristeza das flores murchas e mirradas.

O poeta irlandês, a esse novo estado, depois das ilusões, chama de verdade. Mas, talvez, o momento em que 'morrem as flores' seja o mais ilusório de todos...

 

 

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

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Bombarral

 

PESSIMISMO

 

"Há no acto um pessimismo grandioso em relação às palavras."

(Diotima, em "O Homem Sem Qualidades", de Robert Musil)


E se este pessimismo resultasse, não de uma inflação do valor das palavras, mais notória hoje ainda do que no tempo do império Austro-Húngaro, da Cacolândia de Musil, quando a 'publicidade', em todas as suas formas, constrói um mundo paralelo numa linguagem destituída de sentido, mas se, em vez disso, ele fosse a consequência de uma desqualificação da linguagem mesma? Uma espécie de cultura do anti-Verbo, um culto do anti-Livro?


Os novos intelectuais distinguir-se-iam, assim, pela sua função orgânica (à maneira de Gramsci) de nomearem os mil nomes dos actos 'espontâneos' num sistema auto-regulado, como na distopia das 'forças do mercado' e do capitalismo ao serviço da 'liberdade do indivíduo'.

A desvalorização da política vai a par da completa sujeição do social à economia, ampliando o domínio da esfera privada, como no tempo dos senhores e dos escravos. Escravos contentes com a sua sorte e bem tratados, havia-os também nesse tempo. Basta pensar nas cenas de domesticidade no teatro de Tchekov (no "Cerejal", por exemplo). Servos como esses votaram contra a democracia, está bom de ver.

Diotima, com o seu salão de elite, é da espécie do 'intelectual orgânico'. O seu alegado pessimismo não é mais do que a rendição do espírito. O 'pecado capital' diz a tradição cristã.

 

 

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

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(José Ames)

 

OS NOMES DA TIRANIA



"(...) porque a opressão é invencível durante o tempo em que for útil..."

(Simone Weil)

A pergunta que não pode deixar de ser feita é 'cui bono'? Pode o tirano ser útil e, por isso, invencível? Platão pensava que a tirania era uma espécie de 'cura natural' para os excessos da democracia, até ela mesmo poder ser substituída por um governo mais justo. A sua utopia, como se sabe, era o governo dos filósofos. Mas isso era no tempo em que a filosofia podia abranger todo o saber e em que as várias ciências eram apenas sementes do futuro.

Entretanto, experimentámos a 'Mão Invisível' e o Plano Quinquenal sem nos aproximarmos por pouco que fosse da utopia. O Tirano é hoje 'personificado' pela Economia e pelos economistas austeritários ou simplesmente 'realistas' que invocam as leis do mercado, ou as da globalização, como antes deles se invocava a Natureza ou a Necessidade.

Os Gregos parecem apostados em demonstrar que a opressão deixou de ser útil (que, pelo contrário, mostrou ser contraproducente) e que, portanto, chegou a hora de se tentar uma solução mais justa. No caso, mais 'democrática'.

Nenhum político europeu quer ficar com o ónus da tirania. Schäuble precisa de se apoiar nas instituições da 'União' e na reputação dos Bancos alemães. Como último recurso tem sempre o egoísmo nacional expresso em votos. A tirania só não pode dizer o seu nome.

A tese platónica ganha assim plena actualidade. Aos 'excessos' da economia desregulada e à euforia do crédito dos primeiros tempos sucedem as medidas draconianas impostas pelo poder hegemónico na Europa. Toda a violência da tirania económica foi aplicada no quadro democrático, cada vez mais reduzido a uma carcaça.

Platão não fala num retorno da tirania directamente à democracia. A carcaça está inteira, mas antes do primeiro sopro de vida, virá a oligarquia sob os seus vários disfarces.



terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Sem título

 

Cacela Velha

 

DEPRAVAÇÃO

Agustina Bessa-Luís

 

É Agustina que diz dos corações de boa memória que são depravados ("A Muralha"). Porque a memória é já um programa, um cálculo dos riscos. Já tentei, consegui uma vez, posso repetir. Os profissionais nem precisam de envolver o coração, e, às vezes, é quando os seus actos atingem a maior eficácia.

Mas não é destes que a escritora fala. Será antes dos insinceros que sugerem estar a viver uma experiência nova, a entrar no desconhecido, que parecem improvisar quando a caixa do ponto está sempre presente.

Don Juan é o símbolo dessa depravação. A memória do seu catálago acompanha-o para onde quer que vá. A flor da beleza murcha antes de que possa tocá-la. Repete-se como um histrião que ri de si próprio por detrás da máscara. A sua perversidade alimenta-se da acumulação, como o dinheiro.

Note-se que a memória de Don Juan é tudo menos 'poética', ela não recria o passado, perdendo-se nesse processo, como acontece com a maior parte de nós. A maldição do sedutor está nessa inconvertibilidade da memória. Está na sua odiosa fidelidade.

 

 

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Sem título

(José Ames)

 

FRAGILIDADES

Jürgen Habermas

 

"Elas (as ciências humanas) são abandonadas à dialéctica da libertação e da escravização com menos defesas que as ciências históricas, as quais, pelo menos, dispõem do potencial céptico da relativização histórica, mas, sobretudo, com menos defesas que a Etnologia e a Psicanálise, pois estas movem-se (em Lévi-Strauss e Lacan) ainda assim reflexivamente na selva do inconsciente estrutural e individual."

(Jürgen Habermas, "O Discurso Filosófico da Modernidade")


O conceito biológico de defesa (contra a agressão exterior, mas também contra o próprio dogmatismo, aqui entendido como um processo autístico semelhante ao cancro) aplicado às ciências é novo, parece-me.

O caso das ciências humanas seria um caso de 'movimento perpétuo' desligado do seu contexto. A dialéctica, como se sabe, pode ser auto-suficiente se a 'vontade de poder' o decidir, fazendo-a coincidir com uma pretensa lei histórica. Engels é o mestre deste optimismo que relega toda a espécie de crítica para o 'museu da história'.

Habermas fala num abandono. Como se a força da crítica tivesse, virtuosamente, de ceder a uma paixão 'justificada', a uma paixão nobre. A da justiça, precisamente.

Esse abandono é responsável pelos crimes mais inexpiáveis e, no entanto, merecedores, bem lá no fundo, da nossa vénia.

As ciências 'humanas' são de facto frágeis, porque estão sempre à beira da loucura.

 

domingo, 22 de fevereiro de 2015

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Aljustrel

 

A FALÁCIA DO HISTORIADOR

 

"A falácia do historiador: atribuir as nossas próprias concepções da história e do método histórico a um autor para quem estas concepções são inteiramente desconhecidas e dificilmente compreensíveis."

(Ernst Cassirer, "The myth of the State")


Não podemos recriar a experiência única. Não podemos 'compreendê-la'. Podemos interpretá-la para os nossos próprios fins. No melhor dos casos, sabemos que a nossa intuição é verdadeira, porque 'encarnamos' a pessoa ou pessoas envolvidas, não segundo a vida das pessoas elas próprias. É uma espécie de verdade mediúnica. A verdade dos factos é de outra natureza. É do domínio da organização social.

Jesus disse-o quando mandou devolver a César o que lhe é devido. É a verdade dos factos, da economia, num contexto preciso de poder, que condena o Syriza a vitórias semânticas para não perder a face.

Teresa de Sousa ("O Público") lembra: "Há menos de um ano (o Syriza) era contra a União Europeia, contra o euro, contra a NATO e contra o capitalismo. Para nossa tranquilidade é bom evitar a leitura de alguns discursos recentes de Alexis Tsipras ou do seu mediático ministro das Finanças."

Poderá este volte-face deixar de ter consequências ao nível do moral da equipa governativa?

Mais uma vez, parece estarem em causa duas leituras da realidade política e social, mas na verdade trata-se do poder 'armado de factos' contra uma verdade simbólica que não pode ganhar no mesmo terreno.

A inconsistência dos reformadores só ajuda os novos bárbaros.


sábado, 21 de fevereiro de 2015

(José Ames)

A RAZÃO DA MAIORIA



"O sono da razão" (Goya)


"Ninguém acreditou alguma vez, realmente, que a opinião do maior número fosse também, na ocasião do voto, a mais sábia só por ter vencido.
É uma vontade que se opõe a uma outra vontade, como na guerra; cada uma destas vontades está necessariamente convencida do seu direito e da sua própria razão; convicção fácil de encontrar e que ela própria encontra. O sentido dum partido é justamente o de manter despertas essa vontade e essa convicção."

Elias Canetti ("Masse et Puissance")

É óbvio que a maioria e a razão não são a mesma coisa.

Mas a História demonstra que há uma espécie de razão em todo o acordo, mesmo quando uma maioria se submete a uma minoria ou até a um só.

No limite, a razão seria o acordo entre todos, como acontece com as evidências da aritmética.

Esta justificação dos partidos, por outro lado, é a melhor que conheço para o facto de eles não terem de ser apenas máquinas eleitorais.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Aquileia 

DONDE VEM O MAL?

A máscara de Agamemnon

Retiro esta informação duma crítica de Lucy Hughes-Hallett ao livro de Cathy Gere "The tomb of Agamemnon" (a frase refere-se ao chefe da Casa de Atreu):

"Para Himmler, Goebbels e Göring (todos os quais visitaram Micenas) foi um modelo inspirador."

Este trio infernal terá então feito combustível duma insigne tragédia grega, como outros, ao longo da História.

A inspiração não é um "download" num disco virgem. Mas pode o melhor inspirar o pior?

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

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(José Ames)

 

POLITBURO

 

Salazar, com ironia, apelidava a Comissão Executiva da União Nacional, confiada a Mário de Figueiredo, de 'politburo' (Filipe Ribeiro de Meneses).


Ou seja, um organismo caracterizado por uma existência 'pro forma' era identificado com a burocracia inimiga. Como não podia estender essa ineficácia ao regime soviético que era alvo da propaganda anti-comunista, temos de supor que ele não via a força desse regime nas instituições burocráticas, mas no poder ditatorial de Staline. Esta visão decorria, naturalmente, da experiência própria.

Era, no entanto, um ditador 'sui generis'. Pela sua idiosincrasia era levado a desprezar algumas armas ideológicas que o líder da URSS utilizava sem rebuço, tal como o chamado 'culto da personalidade'. Ou então, conhecedor que era da 'alma' e da índole popular, agia com a 'pobreza monástica' e o silêncio ensurdecedor de uma política que julgava necessária perante o desporto nacional do 'escárnio e mal-dizer'.

Podia-se, de qualquer modo, dirigir-lhe as palavras que Sócrates dirigiu ao cínico que lhe mostrava a roupa esfarrapada: a tua vaidade brilha através dos buracos do teu manto!

 

 

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

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Castelo de Duíno

O NEVOEIRO

Parque da Pena

 

Diz-se que Ricardo Strauss comparava o parque da Pena ao jardim de Klingsor, no "Parsifal" (Franz Villiers).

O encanto da Serra de Sintra talvez explique esse desvario. Porque quanto ao palácio e ao parque estamos no reino do puro pastiche. Tive a mesma impressão no famoso Neuchwanstein do mecenas de Wagner. O palco, com o seu jogo de luzes e de sombras, é muito mais sugestivo.

Talvez o próprio Strauss estivesse na altura a ouvir a música e a imaginar a encenação dentro da sua cabeça. Mas quem entrar nesses lugares no estado sóbrio sabe que a sua capacidade de suscitar o mito é grandemente prejudicada por tanta exposição.

O nevoeiro romântico tudo transfigura. E concebo que até as arestas dos móveis sejam feitas de algodão.

Desse estado narcótico passa-se quase sem transição à bebedeira do nacionalismo.

 

 

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

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(José Ames)

 

O IMORALISTA

 

"Quer dizer, ou me atrai um extremo, ou me atrai o outro, num balanço em que sinto que a minha fatalidade se cumpre. Porque hei-de imitar-me facticiamente a mim próprio, para formar a factícia unidade da minha vida? Só no movimento posso achar equilíbrio."

(André Gide)


Esta ambiguidade moral é cada vez mais a nossa. É o apogeu da cultura individualista. Por que teríamos de escolher em função de um princípio exterior a nós mesmos? O alfa e o ómega do indivíduo está todo nesta liberdade de não ter obrigações em relação à sua 'persona'. Em vez de procurarmos a coerência com o que somos para os outros, denunciamos a artificialidade da máscara. Tornamos o passado sujeito da revolução...permanente.


Bernstein, o revisionista da história oficial marxista, declarava que "o movimento é tudo; a meta final, nada". Tal como o autor das "Nourritures Terrestres" nos diz que "só no movimento posso achar equilíbrio". A frase é uma boa estocada retórica porque nos faz pensar imediatamente na imagem da bicicleta. Se pararmos, cai. Mas é o próprio Gide que nos alerta para a fatalidade presente neste movimento. Desencadeamos uma acção simplesmente porque nos atrai e, por isso, é como se disséssemos que não é nossa a responsabilidade. Que a atracção é a verdadeira iniciadora da história e que essa força ultrapassa o indivíduo que responde como a um magneto.

Esse magneto, nos nossos tempos, é uma rede de induções aparentemente autónomas que cobre todo o território. A atracção resulta na actual sociedade mediática que nos faz pensar por procuração.

 

 

domingo, 8 de fevereiro de 2015

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Adare (Irlanda)

 

A MORAL BUCÓLICA

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" Não há adega, não há despensa, não há fogão de cozinha. A panela preta de barro de Prado ferve solitária sob o testo no pequeno lar enfumarado, à fogueira de cepas e de agulhas de pinheiro, entre os dois escabelos de castanho. Mas há broa em todos os balaios à porta do forno, há toucinho ou há unto, pelo menos, em todas as salgadeiras, há azeitonas no cântaro da salmoeira, há um ovo para pôr a cada galinha choca, uma braçada de erva para cada boi, uma côdea para cada cão, uma rasa de milho para cada fornada, uma estriga para cada roca, uma leira para cada enxada."

"As Farpas" (Ramalho Ortigão e Eça de Queirós)


Muito antes do 'pobrete mas alegrete', conotado com os tempos de Salazar, num certo imaginário português, o 'bom selvagem' rousseauista era assim servido pelos dois célebres farpantes.


Há aqui uma deliciosa harmonia que a Crítica importada vem pôr em causa. O estrangeirado Eça, nos últimos meses de vida procurará encontrar essa miragem, em Tormes, herança da mulher. A miragem alimenta o paradigma cidade/serra que gerou um conhecido romance. A descrição citada, que se inspira na paisagem humana da região do rio Lima, é um dos primeiros caboucos desse culto, culto que está sempre por trás da crítica feroz do autor dos "Maias".

Porque o bucolismo aparente engendra monstros, monstros mais cómicos do que terríveis. Acácio, Abranhos e 'tutti quanti' surgem a essa luz impiedosa por terem ultrapassado o tamanho da chinela. 'Simples' como estes, quando tentam erguer-se da sua condição provinciana para macaquear os 'verdadeiros' homens políticos (mas os robespierristas também se inspiraram nos Romanos) não podem esconder a tara original.

Eça e Ramalho malham, ou melhor, farpam. Tempos nada complicados esses, quando comparados com os de hoje. Porque a democracia e o individualismo revoltaram as águas, misturando o fundo com a superfície.


O povo tornou-se mais secreto. Não é possível reconhecê-lo no 'reality show' que pretensamente o retrata.

 

 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Sem título

 

(José Ames)