sábado, 30 de maio de 2015

(José Ames)

A GLASNOST DOS GUICHETS

Joseph Kafka (1883/1924)


"O que eu lhe vou perguntar depende do resultado da nossa entrevista. Muitas coisas podem surgir durante a conversa, mas mais importante ainda é confrontar-me com ele. Você está a ver que eu não falei ainda com um verdadeiro funcionário. Isso parece ser muito mais difícil de conseguir do que eu julgava."

"O Castelo" (Franz Kafka)


Pensava nesta e nalgumas outras passagens do romance de Kafka, ao dirigir-me à repartição de Finanças da minha zona, por causa do IRS.

Mas a burocracia hoje evita mostrar-nos o seu pior ângulo. Há pessoas do outro lado do balcão, e o nosso caso não depende dum personagem inacessível, no qual apesar de tudo temos de depositar todas as nossas esperanças, à medida que vamos conhecendo os inúteis intermediários e as infinitas delongas.

A administração pura, simplificada e racionalizada, ao alcance duma simples cozinheira, preconizada por Lenine, superado um Estado obsoleto que já não seria o órgão de dominação duma classe sobre as outras, está em vias de se tornar um facto, graças à tecnologia, em muitas funções estatais.

O próximo passo será determinar o coeficiente de dominação, socialmente sustentável.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Sem título

Casa do Raio, Braga

 

A LUA, NEM MENOS

http://parfumenscene.fr/wp-content/uploads/2014/09/parfum-en-scène-lune-odeur-.jpg

 

"O nosso tempo já não inclui nos êxtases do sentimento outra coisa que não seja o êxtase 'sentimental', e reduziu a embriaguez lunar a um desprezível excesso deste género. Ele não pressente que esse êxtase, a menos que seja uma perturbação mental incompreensível, só pode ser um fragmento de uma outra vida."

(conversa entre Ulrich e a sua irmã, in "O Homem sem Qualidades")

Este 'monólogo' sobre a lua expõe-se na claridade incestuosa de um subentendido. O incesto não é actual, nem realmente possível, mas condiciona toda a comunicação entre os dois. Está diante deles como a porta infernal inacessível aos geómetras.

A linguagem converte o êxtase lunar dos outros, numa vulgaridade de 'crooner'. Ulrich está ciente que lhe é vedado resvalar para o sentimentalismo 'romântico', mas não pode negar o fascínio, associado ao amor, provocado por essa luz emprestada.

Porque o céu nocturno, a face escondida do azul ou das nuvens, nos foi roubado pelo néon, e o êstase é quase um privilégio dos astrónomos.

O sentimentalismo mantém-nos na ignorância e justifica o orgulho nimbado da espécie.

 

quarta-feira, 27 de maio de 2015

(José Ames)

VÉNUS E MARTE



"Vénus e Marte com Cupido" (Paolo Veronese)

"Não sejas demasiado bom com a tua mulher e não lhe confies todos os teus segredos."

(conselho de Agamémnon a Ulisses, na "Odisseia")

Assim, desde o princípio da civilização europeia, quando Hesíodo nos deu a conhecer Pandora (a origem inocente de todos os males) e muito antes do Cristianismo ter feito de Eva, na narrativa bíblica, uma espécie de aliada 'objectiva' (perdoem-me esta intrusão da política na história sagrada) da serpente, outra vez no papel de instrumento inocente, que a mulher é um ser misterioso que na verdade reina sobre a alegada potência do outro sexo, embora com 'armas' que não são verdadeiramente suas.

Parece evidente, na história, uma incompatibilidade feminina com 'as malhas que o império tece', a arte da estratégia não é o seu domínio, de resto, de que valem as 'artes militares' de previsão e antecipação se o resultado é invariavelmente outro que o desejado. Se não fosse a força do 'complexo militar-industrial' que distorce a democracia, reconhecer-se-ia que nessa arte não se faz melhor do que examinar as entranhas dos pássaros.

A conversa do rei dos Gregos com Ulisses é uma história entre militares. O guerreiro deve preservar o instinto de morte e relegar para o momento da vitória, o prémio das suas façanhas. É este desígnio que reclama a conversão da mulher num inimigo interior, de quem se desconfia, mas a quem se pede um crédito inesgotável de confiança, ou de 'respeito' inspirado no temor.

Na mitologia, as núpcias de Marte e de Vénus são o sinal da reconciliação, momento em que ambos se despem de armas e disfarces. Como sempre, o mito vai mais longe do que parece, e nada há de mais efémero do que essas núpcias.


terça-feira, 26 de maio de 2015

Bragança

FORA DA RAZÃO NÃO HÁ PROBLEMÁTICA

http://jesusgilhernandez.com/wp-content/uploads/2014/03/rational-nonrational-irrational.jpg 



"Se bem que todos os acontecimentos que tocam os homens nasçam da imaginação, só os problemas racionais se revelam submetidos a uma organização suprapessoal; para tudo o resto nada ainda foi feito que mereça o nome de esforço comum, ou que ao menos revelasse o reconhecimento da sua urgente necessidade."

"L'Homme Sans Qualités" (Robert Musil)

A 'provocação' de Musil está neste exclusivo da imaginação, implicando que o racional não nos 'toca' verdadeiramente. Ao mesmo tempo, dizem-nos que somos 'animais racionais'...

Além disso, a frase é chocante quando pensamos, por exemplo, numa catástrofe humanitária, em que a nossa primeira reacção, se bem que possa estar longe de racional, ao ser associada à imaginação, parece desvalorizar a realidade dos factos.

Mas talvez o problema surja de uma ilusão que nos é muito cara, ilusão a que nas sociedades mais evoluídas se dá o nome de individualismo. À medida que o mundo se torna cada vez mais o habitat artificial feito à nossa imagem e semelhança, mais sofremos da ilusão de que nos criamos a nós próprios, graças ao poder demiúrgico da liberdade individual e do desenvolvimento tecnológico.

O que sugere a ideia musiliana é que essa 'criação' surge apesar de nós, movida por uma força tão impessoal ou tão indiferente ao sentimento de humanidade, como se, de facto, fôssemos instrumentalizados pela razão, em vez de se passar o contrário.

Um vislumbre dessa 'lógica' poderia ser, por exemplo, o poder da ciência e da tecnologia. Não temos a menor ideia do futuro que nos prepara essa racionalidade independente e agimos como se tivesse que ser assim para o bem de toda a humanidade.

A evolução dessa força é imanente, nasce da sua própria problemática, e a sua direcção parece não nos dizer respeito.



segunda-feira, 25 de maio de 2015

(José Ames)

O DOGMA É A PRIMEIRA PEDRA

Hyppolite Taine


" Não  havia  de  todo  entre  nós",  diz  uma  testemunha,  "trinta  deputados  que pensassem  diferentemente  de  Reynal,  mas  em  presença  uns  dos  outros,  a  honra da  Revolução,  a  perspectiva  das  suas  vantagens,  constituíam  um  dogma  no  qual se impunha acreditar."

(Hyppolite  Taine, citado por Fr. Reynaud Silly)

Canetti interessou-se por descobrir a força que dirige o indivíduo que faz parte de uma multidão em movimento. A sua experiência pessoal dessa perda do sujeito foi de tal modo perturbadora que lhe dedicou a obra da sua vida, 'Masse et puissance'.

A imitação é sem dúvida um arcaico e poderoso instinto que nos exonera da carga de pensar.

Mas qualquer um pode experimentar, fora do choque da multidão, algo de parecido com esse poder insidioso numa qualquer reunião política. Daquilo a que Augustin Cochin, historiador da Revolução Francesa, já chamava de 'máquina':

"Ele  entendia  por isso  "uma  forma  de  socialização  cujo  princípio  consiste  em  que  os  seus  membros devem,  para  desempenharem  nela  o  seu  papel,  despojar-se  de  qualquer particularidade  concreta  e  da  sua  existência  social  concreta"  É  o  contrário  dos corpos  sociais  do  Ancien  Régime  procedentes  de  uma  comunidade  real  de interesses profissionais ou sociais."(ibidem)

Assim que certas ideias simples, mas  eficazes, imponham uma espécie de "dogma', os participantes numa dessas reuniões, 'em presença uns dos outros', deixarão de ouvir a voz interior que, desde Sócrates, associamos ao juízo livre e pessoal. É uma questão de 'temperatura' política. Todos nós, se não tivermos recalcado esse sentimento, deveríamos estar prontos a reconhecer que, em tempos loucos, nos comportamos como loucos.

domingo, 24 de maio de 2015

(Porto)

A FORÇA DO TINA





"A principal força desestabilizadora tem a ver com o facto de que a taxa de retorno privada sobre o capital, r, pode ser significativamente mais alta por longos períodos de tempo do que a taxa de crescimento do rendimento e da produção, g. A desigualdade r > g implica que a riqueza acumulada no passado cresce mais rapidamente do que a produção e os salários. Esta desigualdade exprime uma contradição lógica fundamental. O empresário inevitavelmente tende a tornar-se um rentista, cada vez mais dominador sobre aqueles que nada possuem para além do seu trabalho. Uma vez constituído, o capital reproduz-se mais depressa do que aumenta a produção. O passado devora o futuro."

"Le capital au XXIe siècle" (Thomas Piketty)


A economia política é uma espécie de centauro, em que o cérebro do economista parece implantado num grande corpo rebelde à estatística e à matemática. O centauro só existe no mito, e é como mito que deve ser considerado na chamada 'ciência' económica.

O mérito de Piketty é aparentemente o de uma abordagem empírica, sem pretender fazer uma crítica do capitalismo. Ele podia ser até um grande especulador, 'à la Soros', que, em última análise, não pretendesse mais do que estudar as hipóteses de futuro do seu modelo de negócio. Também as conclusões partem dessa perspectiva, do interesse de manter o sistema, através da fórmula de Tomasi di Lampedusa, é preciso mudar para tudo continuar igual, que mais não é do que a tradução da lei da entropia.

Não sendo um 'perigoso esquerdista' (mas que perigo é esse quando existe um inimigo que não quer saber da Revolução e da mudança de sistema, mas de uma conversão massiva à sua psicose religiosa?), Piketty entrou, tal como outro Cavalo de Tróia, em todas as cidadelas da ideologia económica. Chamam-lhe o economista da década, é estudado nas universidades mais elitistas, que emprestam a boa consciência da razão e da justiça a esse Olimpo que alegadamente puxa os fios de milhões de títeres (esta, claro, sendo a visão infantil).

O êxito do economista francês representa também o facto de estarmos ainda, 'da cabeça aos pés, na era do 'TINA' (There is no alternative).


sábado, 23 de maio de 2015

(José Ames)

O APOCALIPSE E OS FLUIDOS

"Dr. Estranhoamor" (1964 - Stanley Kubrick)



Os problemas sexuais do general Ripper (como Jack, the Ripper) levam-no a desenvolver toda uma teoria sobre a contaminação dos "preciosos fluidos corporais" pelos Reds, através da fluoretação da água.

Como o "Estripador", também ele recusa a qualquer mulher a sua "essência".

Nunca se viu no cinema, de forma tão assombrosa, traduzida a impotência masculina em megatoneladas.
Depois da queda do Bloco Soviético, estes falcões do Neanderthal, surpreendidos em cuecas com a sua secretária não perderam nada da sua actualidade e continuam a ser material dos "comics".

Não há nada mais difícil do que mostrar o lado ridículo do monstruoso humano e nada melhor do que o riso nos salva da cumplicidade.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Batalha

MEFISTOFÉLICO OU DEMASIADO HUMANO?





"- Quem és tu, afinal?
- Sou uma parte dessa força que, eternamente, quer o mal, e   que, eternamente, faz com que o bem se cumpra."

"Fausto" (Goethe)

Esta é uma visão da Física, apesar da sua roupagem teológica. Sabe-se que o grande poeta foi um físico de mérito e quanto a teoria das cores o interessava.

O Cosmos, como um todo, é uma ideia que nos obriga a pensar nas leis que o regem e numa 'moral' que visa a perfeição dessa totalidade. A perfeição é o que faz o Cosmos 'perseverar no seu ser', como diria Spinoza.

A ética desse ser é que a parte não destoe na grande 'sinfonia'. E o cálculo resume-se a isto: o homem, que pensa ou julga pensar pela sua cabeça tem de estar sempre errado, porque lhe falta a ciência do Todo. O homem persegue os seus próprios fins, ou o que julga serem tais fins. Por isso Mefistófeles, que encarna esse orgulho satânico, próprio do supremo egoísta no trono usurpado da sua imaginação, aspira ao poder de vencer o que o transcende em absoluto.

Mas, como noutras lendas do irremediável 'inconseguimento' (para dizer como uma das nossas figuras políticas), Mefistófeles também sabe que está condenado, eternamente, a repetir o seu fracasso.

Voltando a Spinoza e, através dele, a Descartes, o Ser assegura a sua 'perfeição', não prescindindo das 'paixões', ou obstruindo-as, mas 'canalizando-as' (Freud diria sublimando-as) para a finalidade principal.

Conclusão: o Grande Sedutor não é o último a rir, porque é o melhor instrumento para levar a água ao moinho do Altíssimo.



quinta-feira, 21 de maio de 2015

(José Ames)

DESORAR





"Retz acalma facilmente um primeiro levantamento em Paris, porque está na hora do jantar: 'Os mais excitados não querem aquilo a que eles chamam desorar-se.'"

(O Cardeal de Retz, in "Cahiers", de Albert Camus)

Embora uma pesquisa rápida por vários dicionários e textos antigos não me tenha ajudado a identificar o significado da expressão 'se désorer', utilizada por Retz, diria que pode ser comparado a 'perder a oportunidade'; tomei a liberdade de a traduzir por desorar (como em 'a desoras').

Tanto mais que é o melhor sentido que se pode dar no contexto. Os amotinados querem aproveitar o ímpeto da multidão que, como sabemos, é sol de pouca dura. Conheci há muito tempo um velho revolucionário que pensava que a Revolução dependia de, como se diz agora, 'uma janela de oportunidade'. Na verdade, ele utilizou a figura do comboio que pode passar, sem parar, se não estivermos vigilantes.

O famoso arcebispo de Paris, que foi, talvez, a figura de proa do movimento conhecido pela Fronda, durante a menoridade de Luís XIV, pensava, pelo contrário, que havia um tempo para tudo, e aquele era o tempo de fazer uma coisa comezinha, mas vital: comer.

Li, há pouco tempo, numa evocação dos tempos em que Mário Soares andava em campanha pela 'província', que  se recusou a prosseguir sem primeiro terem um almoço aprazível no melhor restaurante da cidade.

A esta norma de vida, do nosso estadista e de Jean-François Gondi, do século XVII, só um louco se pode opor, e é isso que é um cérebro exaltado.

O que espanta é que alguns queiram construir algo de duradouro sobre um cabouco desses...


quarta-feira, 20 de maio de 2015

Sem título

Braga

 

TENSÃO

http://miltonribeiro.sul21.com.br/wp-content/uploads/2011/08/alvaro_de_campos-fernando-pessoa.jpg

 

"Diga ao Fernando Pessoa que não tenha razão ("Álvaro de Campos escreve à 'Contemporânea'); Porque só há duas maneiras de ter razão. Uma é calar-se, que é o que convém aos novos. A outra é contradizer-se, mas só alguém de mais idade a pode cometer."

(De uma crónica de Bénard da Costa.)


A distinção pascaliana entre o espírito de gentileza (finesse) e o espírito geométrico transparece nas palavras do 'engenheiro naval'. Porque há uma razão igual a si mesma, sem nada de 'mortal', porque não pertence à vida, e é verdadeiramente 'divina'. Um jovem dotado tem pleno acesso a este mundo 'mental', ou racional se preferirem. Quantos anos tinha o Einstein da teoria mais famosa do nosso tempo? Mas não foi esse o homem que perseguiu o resto da vida a 'teoria de Tudo' (um dos nomes de Deus) e que encontrava a paz no mundo da música.

Dizer como o conhecido heterónomo, que a razão não pode ser invocada sem contradição, não é dizer outra coisa que isto: fora da abstracção, só podemos 'ter razão' contra nós próprios, porque as 'coordenadas' e o contexto mudam a todo o tempo. É preciso esquecer 'sistematicamente' para não sentirmos a contradição. Para além disso, a razão está prisioneira da atenção, a qual se concentra, por sua vez, num foco em grande parte aleatório.

A razão fina, intuitiva, ou do coração, como também se diz, não é, naturalmente, 'demonstrável'. Pertence ao 'mundo mágico' ou místico de que fala Chesterton. Aí, pode-se estar certo sem ter a certeza. 'Ter razão' e, ao mesmo tempo estar em contradição. Manter as duas ideias e a tensão entre elas, talvez seja, até certo ponto, um problema de idade.

 

terça-feira, 19 de maio de 2015

(José Ames)

FUNCIONALMENTE OUTRO





"Plínio tinha sido capaz de sobreviver à tirania de Domiciano e deve ter desenvolvido uma desonestidade funcional. Era uma estratégia de sobrevivência, e não era uma má estratégia. Como veremos a seguir, a insinceridade foi a sua ferramenta de gestão quando era governador da Bitínia-Ponto"
 (C.Sicard)


Uma estratégia de confronto teria sido peferível, numa visão moralista, se não tivesse vida tão curta. Em vez disso, Plínio tornou-se útil aos seus contemporâneos e aos que o podem ler agora, embora com um preço. Não podia seguir certos raciocínios até ao fim. Mais tarde deve ter-se habituado a evitar esses impasses, passando a viver num outro círculo de pensamento.

O tradutor moderno das suas cartas chama a esta anomalia, sempre presente nos actos oficiais, de 'desonestidade funcional'. Aquilo que os jesuítas tornaram conhecido por reserva mental tem, pois, antecedentes históricos.

Há quem compare estas circunstâncias liberticidas aos obstáculos e constrições a que a natureza constantemente nos sujeita. Podemos adaptarmo-nos a um pedregulho no caminho ou à instabilidade atmosférica, sem precisar de argumentos filosóficos, porque é da nossa índole ultrapassar os problemas que o nosso cérebro interpreta como factos da vida.

Uma ditadura sanguinária como a de Domiciano constrange o próprio pensamento, porque não se pode contornar e passar adiante, sendo ela própria uma espécie de pensamento a que, pelo mesmo instinto de sobrevivência de Plínio, é preciso escapar, para que a inteligência e as qualidades morais se possam exercer.

Freud fala em somatização de certos distúrbios psíquicos. A ditadura também somatiza no corpo subjugado.

O governador romano mentia, mas isso era um jogo de todos e que a todos corrompia. O seu veneno perfumado, às vezes, sente-se mesmo nesta correspondência.




segunda-feira, 18 de maio de 2015

Dublin

DO OUTRO LADO DO VENTO

(Orson Welles (1915/1985)

Afinal, Orson Welles ainda não disse a última palavra. Pensávamos que o "D. Quixote" mutilado, de Jess Franco (1992), fosse uma espécie de testemunho dum homem conhecido por não levar os seus projectos a cabo.

Mas, depois de mais de vinte anos de disputas sobre direitos e dos obstáculos legais levantados pela filha do cineasta, Beatrice Welles, assegura-nos o fiel Peter Bogdanovich ("The last picture show") que "the greatest film never released" vai poder finalmente ser montado.

Chama-se "The other side of the wind" (título que lhe foi dado pela última companheira de Welles, Oja Kodar, protagonista de "F, for Fake").

Interpretado por John Huston e o próprio Bogdanovich é, nas palavras de Welles que explicava o tema ao primeiro: "é acerca do sacana dum realizador que apanha as pessoas e as cria e destrói. É acerca de nós, John. É um filme acerca de nós."
Opinião pelo menos estranha num gigante derrubado pelos liliputianos de Hollywood e que talvez, com essa frase, exprima mais um ego bulímico do que uma relação com os outros, actores ou não.

domingo, 17 de maio de 2015

(José Ames)

GANESHA CONTRA O TERCEIRO REICH




"Ganesha Contra o Terceiro Reich" de Back to Back Theatre, na Culturgest.

"As duas narrativas na peça jogam com ideias sobre poder. Uma é sobre o líder do partido Nacional Socialista/nazi nesta espécie de ditadura fascista, enquanto a outra joga com um abuso de poder mais subtil. É a relação entre um encenador e um actor - esta é a relação que conhecemos melhor, portanto foi um bom ponto de partida - mas podia ser entre um pai e um filho ou um médico e um doente ou um psicólogo e um cliente ou um padre e a congregação."

Zoi Liaka, Ta Nea (Atenas), 24/3/2014

No início, há o roubo de um símbolo e a sua subversão. O nazi apropria-se da cruz suástica num momento de distração dos deuses e põe-na ao serviço do mal. A peça descreve a aventura de Ganesha, o deus com cabeça de elefante, deus da sabedoria, do conhecimento e de um novo começo, para a recuperar.

Este pano de fundo acompanha uma outra história em que um encenador tenta durante um ensaio levar os actores a conformarem-se com a sua ideia sobre a peça. Este poder de se impor aos outros em nome de uma interpretação pessoal é considerado natural neste tipo de arte colectiva. Habituamo-nos a pensar que a unidade da obra e o seu estilo dependem dessa convenção (ou que, senão, teríamos outra coisa, arte ainda, mas não como o teatro ou o cinema que conhecemos).

Esse poder parece incontroverso. Mas o facto de nesta peça quase todos os actores estarem  afectados por alguma deficiência física e/ou mental, sobrecarrega este género de teatro com uma espécie de abuso do encenador. Não se pode ter a certeza de até que ponto a manipulação artística é consentida. A maneira como vemos a deficiência leva-nos rapidamente a presumir que não podem ser verdadeiros actores, pela energia própria da deficiência que  aproximaria a representação da matéria plástica ou da passividade de um títere.

O momento mais crítico da peça é, então, a recusa de um desses actores em cumprir uma instrução do encenador. Quando lhe é pedido que caia, como se atingido de morte, segundo a norma do corpo inerte, o deficiente insiste em dar uma volta contra o princípio da gravidade, o que enfurece o encenador e o 'desmascara' perante os outros.

A conclusão é que a missão de Ganesha está perdida. Não é possível inverter os acontecimentos. Como o gesto de Prometeu, a usurpação do antigo símbolo hindu iniciou um novo estado de coisas e uma nova relação com os deuses. Além disso, o mal saído da 'caixa de Pandora', não é um privilégio dos nazis, mas está espalhado em todos os desníveis da sociedade humana.

Simone Weil, foi o único filósofo a identificar a necessidade da hierarquia como presença do sagrado. Na verdade, essa é uma mais do que legítima tentativa de 'salvar' essa necessidade da maldição do poder.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Leça da Palmeira

A VERDADE DOS MORTOS



No 4º episódio do "Decálogo", de K. Kieslowski, o pai, ao despedir-se para mais uma viagem, deixa-lhe demasiado à vista, uma carta para ser lida na sua morte. Ana não resiste e descobre dentro do primeiro envelope um outro da mãe falecida, para ser por si lida e que tinha sido sonegada pelo pai.

A defunta revela-lhe que Michael não é o seu verdadeiro pai.
Os interditos afastados com essa revelação, o secreto intuito de Michael, que esperou pela idade adulta de Ana, tanto quanto a atracção nesta do que Freud chamou de complexo de Antígona, pareciam ter o caminho livre.

Não dependesse a ilusão desse amor precisamente dos interditos e da impossibilidade de ele se concretizar.

Ambos, de comum acordo, decidem então fechar a Caixa de Pandora e queimando a sua carta, fazem de conta que a morta não tinha qualquer revelação a fazer-lhes.

Que verdade superior à verdade de facto é esta que nos faz aderir tão completamente à solução do filme?

quinta-feira, 14 de maio de 2015

(José Ames)

CARTAS DE UM LAVRADOR



"Quando as "Cartas de um Lavrador da Pensilvânia" se tornaram conhecidas na Europa, Diderot disse que era uma loucura permitir que os Franceses lessem tais coisas, porquanto não o poderiam fazer sem ficarem intoxicados e sem se tornarem outros homens. Mas a França estava mais impressionada com o acontecimento do que pela literatura que o acompanhou. A América tinha-se por ela mesma tornado independente, sob menor provocação do que alguma vez foi motivo de revolta, e o Governo Francês havia reconhecido que a sua causa era justa e tinha entrado em guerra por isso."

"Lectures on the French Revolution"
(Lord Acton)

O alarme de Diderot mostra até que ponto a época das Luzes desconhecia o nosso conceito de tolerância e de liberdade. O enciclopedista por excelência teme o poder das ideias  veículadas, neste caso, pelo género epistolar, donde a censura 'iluminista' é advogada sem disfarce.

Parece uma contradição, mas é, na verdade, consequente com a percepção do mundo iluminista. Se as ideias podem mudar o mundo para melhor, também hão-de poder 'intoxicá-lo' e mudar os Franceses (a diferença, em relação ao programa filosófico, é aqui  o mal).

Acton limita-se a chamar a atenção para esta tentativa de 'tapar o sol com a peneira'. As 'Cartas' não podiam ser o 'medium' necessário para mudar o pensamento dos Franceses. A própria guerra de independência americana, na sua actualidade e 'razão' (como se na Europa, por um momento, fosse possível elidir o passado histórico) foi o 'medium' que libertou a ideia da Revolução do seu casulo filosófico.

Uma dúzia de anos depois, caía a Bastilha em Paris.

Esta ideia que incarna no movimento popular não obedece a nenhuma lei (e muito menos a uma lei histórica, que é um 'bicho de sete cabeças'). É uma 'singularidade', como dizem os astro-físicos, inexplicável e imprevisível.

O curioso é que a Revolução Francesa, paradigma da história que se lhe seguiu,  tenha revertido em tão poucos anos.

Oiçamos Piketty: "No fundo, contudo, a França permaneceu a mesma sociedade, com a mesma básica estrutura de desigualdade, do 'Ancien Régime'  à Terceira República, apesar das vastas mudanças económicas e políticas que tiveram lugar entretanto."


quarta-feira, 13 de maio de 2015

Praia de Santa Cruz

PROVÉRBIO

http://www.satrakshita.com/images/Oregon71.jpg 


"Quando o sábio aponta a Lua, o idiota olha para o dedo."

(provérbio chinês)

É também comum, o idiota pensar que sabe o que diz ao apontar para a lua, quando nunca deixou de falar do dedo.

Um écrã pode fazer de uma aldeia primitiva uma comunidade de idiotas? Uma história da antropologia diz-nos que as pessoas só olharam para o canto da tela, por onde se esgueiravam umas galinhas. Mas é claro que 'compreendo' o provérbio chinês. Há nele toda uma sabedoria prática que nasce da necessidade de uma hierarquia.

Platão ensinava passeando pelos jardins da escola (quem diria que a arte do buxo podia vir em auxílio do mestre?). Mais perto de nós, a 'escola republicana' amarrou o aluno à sua carteira para não se distrair. Na verdade, o principal objectivo era educar a postura e adequar o futuro trabalhador às necessidades da fábrica ou da secretaria.

Hoje, a família mudou, o trabalho mudou e muitos dos nossos hábitos são condicionados pela tecnologia. O aluno pode ser o principal culpado da falta de atenção e da indisciplina?

Voltando à velha sabedoria chinesa: um 'laser' pode chamar a atenção por uns tempos (e ainda se podia acrescentar uma gama de sons), mas nunca é mais do que um dedo. A lua tem cada vez menos hipóteses.

terça-feira, 12 de maio de 2015

(josé Ames)

O "TINA" MATEMÁTICO




"Dizem-nos frequentemente que Luís XVI pereceu em expiação dos pecados dos seus antepassados. Ele pereceu, não por causa do poder que herdou deles ter sido levado ao excesso, mas porque foi desacreditado e minado."

(Lord Acton)

Se houve rei mais condescendente e mais pronto a prejudicar a sua própria causa em nome da nova divindade da cidadania, foi este infeliz monarca. O seu temperamento põe-no ao lado de outros príncipes que, sendo fracos, se revelaram verdadeiros homens de estado.

Cláudio é, talvez, o mais célebre deles. A sua gaguês e o seu andar aos solavancos deram-lhe a aparência ridícula que lhe serviu de seguro de vida, enquanto outros da sua família, mais talhados para o poder, foram ceifados pelo génio da loucura que estava nos genes da dinastia.

Mas, à altura, o império romano estava quase no seu princípio e Cláudio, posto no trono pela guarda pretoriana, pôde exercer o cargo por um tempo considerável. Não era crédito que faltava ao império, e o nome de Roma bastava para conter a revolta no ovo. Mais importante ainda do que isso, o império tinha imobilizado a situação das classes. Havia uma fronteira, como no caso dos colonos americanos com a 'conquista do Oeste', que permitia que as tensões sociais não chegassem ao nível do confronto. Essa fronteira era o confisco da riqueza das nações subjugadas.

O Bourbon, tetraneto do rei que simboliza o absolutismo, exerceu um poder contestado pelos filósofos, que começaram por vergastar os fundamentos teológicos da monarquia e o seu 'braço espiritual', a Igreja católica. As revoltas populares por causa dos abusos da aristocracia e do Estado ganharam uma voz poderosa no Céu dos Direitos Humanos. O absolutista estava nu.

Mas haverá algum princípio que hoje possa contestar a ideia democrática? Há muita gente que parece pensar que a utopia leninista da 'administração das coisas' pode e deve substituir a política. E então teríamos um monstro a que se poderia chamar de democracia administrativa. Quem pensaria em pôr em causa um decreto matemático declarando que 'não há alternativa'?

segunda-feira, 11 de maio de 2015


Aquileia

A MENTIRA ÚTIL





"Mas as 'mentiras' que o acusavam de proferir estavam a tornar-se realidade em toda a parte: estradas velhas eram reparadas e novas construídas, o mesmo sucedendo com portos, escolas, caminhos-de-ferro e linhas telefónicas, projectos de irrigação, navios de guerra... "É certo isso", escrevia Salazar, e "no entanto, equilíbrio, saldos, diminuição da dívida, estabilidade monetária, reservas, ordem financeira, tudo é mentira - uma mentira amável, condescendente, fecunda, enfim uma mentira que se comporta há seis anos, que se comportará toda a vida, tal como se fosse verdade."

"Salazar" (Filipe Ribeiro de Meneses)

Os movimentos de um homem com demasiado poder criam desordem em toda a parte. As coroas dos monarcas tinham por isso de ser cada vez mais pesadas, quase fixando o humúnculo à sua cadeira. O Napoleão da coroação, na Nôtre Dame, quando resolveu imitar os césares, já não é o ágil cabo de guerra da campanha de Itália. A gordura e o manto de arminho prendem-no ao lugar. Alguns nativos estudados pela antropologia europeia eram bem mais sábios porque fugiam da cadeira e tinham de ser agarrados a ela e engordados como os patos para o 'foie gras' do poder.

O processo simplificou-se muito quando os filósofos românticos descobriram que o Povo era o verdadeiro soberano e que o poder não vinha afinal de Deus.

Salazar não pensava assim e embarcou no mito criado à sua medida do servidor desinteressado e fiel a um mandato que ia para além da própia política.

A citação do historiador mostra, além disso, uma influência do platonismo na doutrina do ditador. É que ele considera que a política tem necessariamente de mentir em nome do bem comum. O que diz sobre as finanças do país é estranhamente actual. Ele sabia que o estado real das finanças e da economia não era o mais importante. Podia viver-se perfeitamente na ilusão de que não havia problemas de maior, desde que tal ilusão merecesse crédito.

O 'castelo de cartas' que a falência dos Lehman Brothers fez desabar é que rompeu com a situação sonâmbula. E, no nosso caso, verificamos que a mentira da solução inventada pela Europa (ou pela Alemanha) cumpriu, apesar de ter falhado, o que se esperava como objectivo final: o regresso, ainda que ambíguo, à ilusão útil a que se refere Salazar, isto é, ao crédito.

O que mudou foi que já ninguém pode dormir com os dois olhos fechados.

sábado, 9 de maio de 2015

"Atascado" (José Ames)

OS MONSTROS DA RAZÃO

"Dr. Estranhoamor" (1964 - Stanley Kubrick)


A inteligência mecânica do mal está maravilhosamente representada nas próteses de Strangelove.

Aquele braço que insiste, como uma mola, em fazer a saudação nazi é o sintoma recalcado da vontade de controlar completamente a vida.

Assim, o milagre que se opera no manequim da cadeira de rodas, e que lhe permite enfim caminhar, antecede justamente o Apocalipse.

O monstruoso tem dentro de si a promessa apocalíptica.
O problema é que não é só o sono da razão que engendra os monstros (Goya).

A razão particular, como a da segurança dum país, também, como amplamente se vê no filme de Kubrick.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Afurada

O GOSTO DA MÚSICA

Rainer Maria Rilke


"As  obras  de  arte  são  de  uma  solidão  infinita, e  nada  as  toca  menos do que a crítica.  Apenas  o  amor  as  pode  alcançar  e  deter  e  julgar  equitativamente."

(Rainer Maria Rilke) 

A crítica seria assim uma rede que apanhasse nas suas malhas tanto a produção medíocre, quanto a mais sublime. Uma por ser patente a sua incompetência para alcançar o seu modelo, a outra porque ela, a crítica, é cega perante a autenticidade.

Mas vem-me à ideia um dito atribuído a um grande compositor do século XX, o qual teria afirmado que o gosto da  boa música não é 'natural' como é, por exemplo, gostar de pêras ou de maçãs.

Pondo de lado a questão de saber se a predilecção por certos frutos é espontânea e não depende da cultura, o que parece estar implícito neste juízo é de que o gosto por algo tão artificial como a música dita séria também tem  de ser aprendido, o que explica, até certo ponto, o afastamento do grande público em relação à música 'de vanguarda'.

Esse seria um fosso inultrapassável, se não fosse o caso daquela aprendizagem se fazer (ou ir fazendo) intuitivamente, no tempo. Bastando para isso que não declaremos à partida que tal artificialidade está acima das nossas possibilidades ou não merece sequer um esforço de 'acomodação'.

Passa-se aqui o mesmo que se passa na literatura, por exemplo. Ninguém consegue compreender Joyce se não decidir primeiro que vale o tempo necessário para o compreender. Alain dizia que o leitor impaciente gostaria de saltar as longas introduções de um romance de Balzac, como "Le lys dans la vallée". Mas essa espera não serve apenas para enquadrar e dar um fundo histórico às personagens. Corresponde também ao silêncio ou à aproximação gradual que, na música, antecede o tema e o movimento.

Tem todo sentido falar do amor a este propósito. Porque é o amor que abre o futuro com uma esperança ilimitada, sem nada cobrar ou querer que se passe recibo.