quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Funchal (José Ames)

A COMÉDIA DA REPETICÃO

A coroação de Napoleão na catedral de Notre-Dame



"'E o que é que pensa da mais recente comédia, a coroação em Milão?' perguntou Anna Pavlovna, 'e da comédia do povo de Génova e de Lucca apresentando as suas petições ao Senhor Buonaparte, e o Senhor Buonaparte sentado num trono e recebendo as petições das nações? Adorável! É o bastante para fazer a cabeça de uma pessoa andar à roda! É como se toda a gente estivesse doida!'"


"Guerra e Paz" (Leão Tolstoi)


Não bastaram as vitórias nem a conquista de Itália pelo grande cabo de guerra para ressuscitar o prestígio da Roma Antiga. A monarquia dos Bourbons, depois, era já uma sombra do que tinha sido.

Mas Napoleão foi amado, apesar dos desastres para que arrastou o exército da França, porque, tendo o terramoto da Revolução atrás de si, pôde fazer tábua rasa das antigas diferenças de classe (para criar outras) e permitir a todos os novos ambiciosos beneficiar da redistribuição do poder. Então surgiram homens como o barão de Turelure ("L'Otage" de Claudel), mais execrável do que qualquer aristocrata, e Jean Sorel, o herói de Stendhal, com mais alma do que ambição, como se viu no desfecho do romance ("O Vermelho e o Negro").

O salão de Anna Pavlovna, em S. Petersburgo, ainda não sabe o que está para acontecer ao seu país e à côrte do czar. Nenhum 'decadente' pôde troçar, depois, da tragédia de Moscovo entregue às chamas, prenúncio do 'homem novo' que construiu um império mais duradouro do que o de Napoleão.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

(José Ames)

AS CEREJAS SÃO CEREJAS

melhorpapeldeparede.com





"Quando se começa com esta lógica em que os pensamentos decorrem muito naturalmente um do outro, não se pode nunca saber aonde se vai chegar."

"O Homem Sem Qualidades". (Robert Musil)


Mas de onde vem esse 'movimento contínuo' dos pensamentos?

Temos um ditado popular que associa as conversas às cerejas. outro diz que 'as palavras são como as cerejas: vão umas atrás das outras.' O 'jazz' é também um assunto de 'cerejas' e talvez não seja abusivo comparar a conversação sem objecto a uma espécie de música.

O orador mais experimentado recorre muitas vezes a essa 'música', levando o espírito dos auditores nessa revoada que distende e afrouxa as defesas do intelecto para voltar abruptamente ao seu tema. A 'divagação' pode revelar-se a causa indirecta duma mudança de opinião ou do próximo sucesso desta 'embaixada a Calígula' (porque todos somos intratáveis quanto ao núcleo das nossas certezas).

As 'palavras de circunstância', sobre o tempo, por exemplo, são como a tecla 'shift' (Barthes) que destapa o 'cesto das cerejas'. Se as suprimíssemos da conversação, num delírio de eficiência, talvez paralisássemos as comunicações.

A questão mantém-se de saber como é que um sistema tão autista e redundante como o das palavras pode ser mobilizado para justificar as nossas decisões no 'mundo real'.

Faz-me lembrar o documentário sobre Obama, que passou há dias na RTP2. O comentador diz que, a certa altura, a política passou para o 'mundo real' (a 'aposta' do presidente no assalto à casa-fortaleza  que não se tinha a certeza de abrigar Bin Laden).

Será que se pode sair de coisas como a política e a conversação como num 'raid' sobre a realidade?

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Porto (José Ames)

A LIBRA DE CARNE

elderscrolls.wikia.com



"Bloom, tendo procurado livros com exercícios para esquecer, não encontrou um único; e procurou muito."


"Uma viagem à Índia" (Gonçalo M. Tavares)


Porque não se ensina o que até os animais 'sabem'. O esquecimento faz parte do mesmo fenómeno que aplana as pirâmides de Gisé.

Mas dado que o nosso tempo não é o desses grandes monumentos e que toda a vida humana é curta comparada com a da arte, como diziam os antigos, a lembrança, que é o contrário do esquecimento,  e o esquecimento voluntário que não é sofrido nem natural, definem-nos, talvez,  melhor do que a qualidade de racionais.

Não vivemos, como povo, 'agarrados' a uma grandeza passada. Esquecemos bons e maus costumes para sermos iguais aos outros. E todos se parecem, cada vez mais, com o povo mais 'desenraizado' (na verdade foi um transplante europeu) que já houve: o americano.

Não parece ter-lhe custado esquecer o chamado 'espírito pioneiro' e a sua frugalidade para se tornar no maior consumidor do planeta, conforme o desígnio da elite dos negócios. Este 'esquecimento' foi tão natural como preferir a riqueza à pobreza.

A realidade económica veio lembrar o básico a este egoísmo voraz que é o de que o planeta não pertence a ninguém e que não há 'condomínio fechado' que possa eternamente ignorar a existência dos outros.

A insegurança que deve ser a coisa mais bem distribuída entre os ignominiosamente ricos; não os deixa esquecer. São como os nossos credores que não nos deixam voltar ao suave esquecimento das antigas virtudes, mas de tal maneira que parecem guiados pela ideia estúpida de que vão ter, como o judeu Shylock,  a  "libra de carne humana" e o dinheiro ao mesmo tempo.

domingo, 28 de outubro de 2012

(José Ames)

O DIABO DA PROCURA


Paul Samuelson (1915/2009)



"Desde os últimos sessenta anos, o aumento das despesas do governo têm sido o único meio viável para 'enganar o diabo da procura ineficaz', diz o economista Paul Samuelson."

 (Jeremy Rifkin)



Como o livro de Rifkin ("The end of work") é dos princípios dos 90, já se pode dizer que há mais de oitenta anos que a procura é 'ineficaz'. A III Revolução Industrial é a grande responsável, ao criar muito menos emprego do que aquele que destrói.

Nem as chamadas potências 'emergentes' escapam à sua influência, visto que, para serem competitivas no mercado global, precisam de garantir o 'estado da arte' nas novas unidades de produção. Isto é, o seu crescimento depende das empresas de 'capital intensivo', com a última tecnologia que é cada vez mais 'dispensadora' do trabalho humano.

Esta situação serve uma elite de investidores e de 'técnicos' capazes de lidar (a partir do gabinete) com este tipo de produção 'sem gordura'.

Quando se diz que é preciso cortar nas 'gorduras' do Estado, depressa compreendemos que é este o modelo que inspira essas pessoas, o modelo da 'lean production' inventado pelas empresas japonesas no seu período áureo e logo adoptado noutras latitudes. O que quer dizer que nada é mais 'ineficaz' do que o Estado social. Essa é, pois, a 'gordura', e aquilo a que Portugal vai ser operado, quando, no tratamento do défice, a via das receitas estiver definitivamente seca.


sábado, 27 de outubro de 2012

Bolonha (José Ames)

O CORAÇÃO PENSANTE DA CASERNA




“O que é que eu faria realmente, pergunto-me, se tivesse no bolso a minha ordem de requisição para a Alemanha com a perspectiva de partida dentro duma semana? Supõe tu que esta carta chegava amanhã: que farias? Começava por não dizer nada a ninguém, retirava-me no canto mais silencioso desta casa, recolhia-me dentro de mim e chamava as minhas forças dos quatro pontos cardiais do meu corpo e da minha alma. Cortava os cabelos à 'garçonne' e deitava fora o meu 'bâton'. Tentaria, nesta semana, terminar as Cartas de Rilke(...)”

Etty Hillesum ('Une vie bouleversée')



No nº 6 da Gabriel Metsustraat, bem no centro de Amsterdam, viveu Etty Hillesum, uma jovem judia que morreu em Auschwitz, em 30 de Novembro de 1943.

Quando estive naquela praça enorme, fui ver a placa que se encontra nessa casa e espreitei pela vidraça para as íngremes escadas, donde ela corria para o amor da sua vida.

Como se afundando no negrume da noite, a sua, tal como a vida de todos os judeus na Holanda, começou a sofrer as restrições desumanas impostas pelas leis de Nuremberga. Foi a impossibilidade de utilizar a bicicleta e os transportes públicos, as farmácias e as mercearias, e por fim até os jardins (“a fim de proteger a saúde e o descanso dos arianos”).

Etty manteve até à sua detenção um diário apaixonante, onde a coragem e a alegria de viver, apesar das terríveis circunstâncias, nos fazem vibrar a cada passo. Bastava-lhe às vezes o céu que via da sua janela, o Rijksmuseum ao fundo, ou as campainhas amarelas no vaso de cristal.

“Para a maior parte das pessoas, o maior sofrimento, é a sua total falta de preparação interior; elas perecem lamentavelmente aqui mesmo antes de terem visto a sombra dum campo de concentração. Essa atitude torna a nossa derrota total. O Inferno de Dante é uma comédia ligeira em comparação.”

É também a mais perfeita e feliz aceitação do corpo (se é que se pode pensar num corpo separado), com a sensualidade que lhe é própria, as paixões e a sua miséria, que conheço. Tudo isso aliado aos mais altos voos do espírito e à fé mais ardente.

Naquela citação vemos que, na iminência da morte, pois que era nisso que acabavam as detenções, não era na morte que pensava, mas em não deixar de ler o poeta amado. Tal como Sócrates que quis aprender a tocar cítara, antes da cicuta.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

(José Ames)

O SEGUNDO ABSOLUTO

thetechjournal.com




"A comunidade dos negócios americana fixou como objectivo mudar radicalmente a psicologia que tinha construído a nação - transformar os trabalhadores americanos de investidores no futuro em gastadores no presente."

"The end of work" (Jeremy Rifkin)


A primeira 'surpresa' é de que conseguiram alcançar esse objectivo. Não por qualquer idealismo a favor do melhoramento das condições de vida dos consumidores, mas para disporem de um mercado para escoar a produção das suas fábricas.

Mas à medida que crescia a produtividade nas empresas, o número de trabalhadores necessários para realizar o mesmo produto minguava drasticamente, criando um novo estrangulamento nas vendas. Os trabalhadores no desemprego ou no subemprego falham no 'seu' papel de consumidores.

O crédito ao desbarato, concedido mesmo a insolventes (ver a crise do 'subprime'), foi o último balão de oxigénio e rebentou-nos na cara em 2008.

Foi fácil a conversão dos trabalhadores em consumidores criando ao mesmo tempo um apoliticismo de massas.

Agora, a sociedade de consumo revelou a sua fraqueza essencial. Ela depende do emprego que a tecnologia extingue impiedosamente para contentamento do mundo dos negócios e dos quadros superiores das empresas pois que lhes permite auferir lucros e bónus nunca vistos. Na falta do emprego, dependeu do crédito cego até há pouco tempo.

A tecnologia que está na origem desta revolução nunca é posta em causa, e parece ser o sinal dum progresso que todos aparentemente desejam. A tecnologia é, de facto, incontestável. É como no debate entre a ciência e a religião. Esta está à defesa sempre, porque é incompreensível a crítica da inovação. Mesmo quando é inspirada pela corrida aos lucros e aos bónus.

Pela segunda vez na história (depois de Deus) encontrou-se um absoluto.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Museu Alberto Sampaio (José Ames)

SISMOLOGIA





"A questão que tudo isto levanta é esta: é toda a economia política? Se assim for, existe sequer como assunto separado? Ou estarão todos os economistas simplesmente fornecendo uma cobertura intelectual às visões do mundo ideológicas da sua preferência?

E como é que desembaraçamos o conhecimento objectivo útil que os economistas eventualmente tenham da escória política?"


(Peter Radford in "Real-World Economics Review Blog")



Todos os grandes economistas do passado se referiram não a uma economia, mas a uma economia política. Para que a ideologia se pudesse impor como 'científica', a separação era necessária. Mas não é possível escamotear o impacto do político na economia. A inteligência dos fenómenos sociais, com isso, foi obnubilada, e é certo que nesse meio sempre prosperaram os 'pescadores de águas turvas'.

Radford desmonta os argumentos 'técnicos', ou 'puramente económicos' de um dos maiores predadores da ideologia que tem a economia como cobertura: o partido republicano. E não deixa de constatar que o partido rival está refém da elite que financia as campanhas milionárias. 

O mundo real terá de esperar, enquanto a América desaba na esquizofrenia e as desigualdades sociais e políticas preparam as safras de sangue de duas economias e de dois mundos no mesmo país, cada vez com menos contacto entre si.

O grande condomínio fechado que os mais ricos criaram com a ajuda da feitiçaria 'económica' não precisa do Estado para nada (tem a sua segurança privada, que se torna cada vez mais a necessidade das necessidades), e a solidariedade com os restantes cidadãos não lhes pode dizer nada. Os seus 'economistas' explicaram muito bem como é que o mercado funciona e porque terá sempre de haver 'ganhadores' e 'perdedores'.

Até ao dia em que as consequências das falsas previsões dos ideólogos da 'economia' tenham o mesmo tratamento irracional que foi, recentemente, infligido aos seis cientistas do caso de Áquila, em Itália.

Mas será sempre mau sinal que a razão não saia vencedora.


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

(José Ames)

A VERDADE DE AGOSTINHO

Santo Agostinho (Philippe de Champaigne)




"Deus é a verdade... Não perguntes o que é a verdade; porque imediatamente a escuridão das imagens corpóreas e as nuvens de fantasmas se atravessarão no caminho e perturbarão essa calma que no primeiro vislumbre brilhou para ti quando eu disse verdade."


("De Trinitate", Santo Agostinho)


Não se pode seguir um 'portanto', porque é na definição que tudo se perde. Não podemos partir de nenhum conceito quando falamos em Deus, porque ele é anterior ao mundo dos objectos e à natureza.

Se fosse possível ser outra coisa que o Ser ('Eu sou aquele que sou') era um entre os seres, um objecto entre os objectos, um conceito entre os conceitos.

Por isso a 'calma', a segurança, que 'brilha no primeiro vislumbre' se perde com a determinação. Como se para compreendermos a verdade tivéssemos de sair do mundo e de nós próprios.

Enquanto a verdade de todos os dias tem mais a ver com a justiça. Como dizer: justamente, esse é o caso. Mas justo com quê? Com a ordem dos factos, com a lógica do pensamento. Talvez.

terça-feira, 23 de outubro de 2012


Guimarães (José Ames)

RIVAROL


Rivarol (1753/1801)




"Quando se quer impedir os horrores de uma revolução, é preciso querê-la e fazê-la por si mesmo: era demasiado necessária em França para poder ser evitada."

(Rivarol; citado por Arnaud Odier)



Pode dizer-se que 'a posteriori' a necessidade parece evidente, mas o historicismo é também uma ideia da época.  Se acreditarmos que é uma lei histórica as sociedades desenvolverem-se em direcção a, por exemplo, uma cada vez maior justiça, então resta-nos assistir às 'dores do parto', pois o que quer que possamos fazer nada retirará ou acrescentará ao essencial, que é a 'evolução' da sociedade. Mas isto é teologia, em que a Providência divina é substituída pela espécie de humanismo que é 'confirmada' pela teoria de Darwin. Da amiba ao cérebro de Einstein.

A outra revolução imaginada por Rivarol que seria o produto de uma ideia, aplicada à prática social pelos que a conceberam e permanecendo, do princípio ao fim, sob o seu controlo, é, de facto uma ideia industrial. Corresponde ao circuito fechado de uma fábrica, em que, em princípio, nada escapa ao controlo do fabricante. É preciso fazer a justiça a este 'reaccionário' ilustre de reconhecer que era mais fácil aos jacobinos acreditarem em tal ficção do que a ele se servir dela fora da argumentação pelo absurdo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

(José Ames)

O NARCISO OCIDENTAL

Narcissus (Caravaggio)





“De todos os seus olhos a criatura
vê o Aberto. Somente os nossos olhos
estão como que revirados e postos em redor dela
como armadilhas para cercar a saída livre.
O que está fora não o conhecemos
a não ser pelos olhos do animal.
Porque desde a infância
nos voltam e constrangem a olhar o reverso,
as aparências, não o aberto, que na visão
do animal é tão profundo. Liberto da morte.
Nós que só a vemos a ela, enquanto que o animal
livre está sempre para além do seu fim;
ele vai na direcção de Deus: e quando caminha,
é na eternidade, como uma fonte corre(...)"


Rainer Maria Rilke (Excerto da 8ª Elegia de Duíno)



Depois duma interrupção de alguns anos, Rilke retoma, no castelo de Muzot (Suíça), as Elegias começadas em Duíno em 1912. Nascerão, assim, dum jacto, as Elegias nºs. 7, 8, 9 e 10.

O tema da oitava tinha que interessar Heidegger que lhe dedicou alguns comentários, considerando Rilke um poeta do desespero, face ao poeta dos poetas que seria Hölderlin.

Para o filósofo, o 'Aberto' de que fala Rilke não é o Ser, mas a animalidade, porque o homem encontra-se sempre no mundo e na linguagem.

O anti-humanismo de Heidegger parece-me, contudo difícil de sustentar sem ser como o resultado duma ascese e dum desocultamento da verdade.

Nesse sentido, o poeta é aquele que queima as etapas e cuja visão deu a volta ao tempo.

O verso que diz que o animal “está já para além do seu fim” parece sugerir-nos o regresso a uma sabedoria perdida no Ocidente, mas que está viva no hinduísmo, por exemplo.

Mas não sei se isso data esta poesia ou acusa o nosso narcisismo sem saída.

domingo, 21 de outubro de 2012

Graça (José Ames)

A DESTRUIÇÃO DE TRÓIA






Uma das maiores lacunas da minha percepção histórica são os anos a seguir à Revolução de Outubro, de que, tirando o grande romance de Pasternak, só conheço visões ofuscadas pelo entusiasmo ou pelo denegrimento.

Vem-me à memória, por exemplo, a cena em que Ninotchka divide um ovo com os seus amigos, como ela, rendidos a Paris, no meio das idas e vindas dum outro locatário que usava a latrina comum.

Walter Benjamin, em “Imagens de Pensamento” (Assírio & Alvim), com a benevolência dum prosélito e a esperança que nos tempos da NEP era ainda possível, descreve-nos os rigores duma política necessária e que a todos tocava sem excepção.

Fala-nos da “corporação de moribundos” dos mendigos que padeceria da falta de vitalidade das coisas sem futuro: “a mendicidade perdeu a sua mais forte base, a má-consciência social, que abre bem mais os bolsos do que a compaixão.” E da febre de reorganização que tomou conta do país, mobilizando toda a gente de dia e de noite.

Não deixa de constatar que a vida privada tinha acabado: “ a burocratização, a actividade política, a imprensa, são tão poderosas que não resta tempo para interesses que não coincidam com elas. Nem tempo, nem espaço. As casas que antes acolhiam uma única família nas suas cinco ou oito divisões, albergam agora oito.”

“(...) Mas também não há cafés. Foram abolidos o comércio livre e a livre inteligência, pelo que os cafés perderam o seu público.”

E esta passagem que nos faz recordar os anos setenta, depois do 25 de Abril, em Portugal:

“(...) uma espécie de embrieguês, de tal modo que uma vida sem reuniões e comissões, debates, resoluções e votações ( e tudo isso são guerras ou pelo menos manobras da vontade de poder) se torna praticamente impossível.”

“(...) É hoje oficial a doutrina segundo a qual o que decide da natureza revolucionária ou contra-revolucionária de uma obra é a matéria e não a forma. Com tais doutrinas puxa-se o tapete aos escritores de forma irrevogável, do mesmo modo que a economia o fez no plano material”.

Enfim, ninguém pode ficar indiferente a estas páginas, vindas dum marxista, sobre um período extraordinariamente fecundo da História, em que tantas ideias foram pela primeira vez experimentadas a uma escala verdadeiramente prometeica. Todas as interpretações do que aconteceu a seguir que vejam aqui “in ovo” as tendências dum histórico fracasso ou o atribuam à entrada em cena de novas personagens ou de novos comportamentos, não podem retirar uma vírgula a uma grandiosa epopeia, cujo destino foi, talvez, o de se tornar um crime inaugural.

sábado, 20 de outubro de 2012

Alcântara (José Ames)

ANDREI ROUBLEV

Andrei Roublev (1966-Andrei Tarkowski)





Começa-se por assistir à ascensão espantosa dum balão. Com os materiais e os preconceitos da Idade Média. O facto provoca a revolta dos camponeses. Nesse prólogo estão como que resumidas as tentativas patéticas do espírito humano para se subtrair ao peso da violência e da animalidade. O pintor de ícones deixa de pintar diante da sucessão de males que fazem descrer no homem. Mas o tártaro que entrou a cavalo na catedral quer saber o que representam os frescos e o chefe da conspiração sente-se no dever de defender a imaculada concepção.

Parece que única via é a salvação individual. Roublev obriga-se a levar uma vida de silêncio. A festa camponesa e o paganismo são perseguidos. O ofício de jogral é subversivo. Para quê pintar e para quem? O artista vive na dependência do brutal senhor que à menor infidelidade lhe pode mandar vazar os olhos.

O que vai fazer o pintor mudar de ideias e encher as catedrais de obras-primas é a história dum sino. O órfão do sineiro mente para ganhar o lugar do pai e sobreviver. Contra os poderosos e os operários mais velhos sustentou a ficção dum segredo de fabrico legado à hora da morte. E graças à coragem e à extraordinária fé desta criança, o sino ergueu-se e encheu de sons a planície. O ditador acaba por favorecer a arte por causa do comércio. A cabeça do pequeno sineiro está por um fio se o sino não tocar diante dos venezianos. Tudo corre bem, mas a criança que sabe não haver afinal nenhum segredo, não suporta a força que descobriu em si.

Roublev põe fim ao voto de silêncio. Doravante o sineiro e o pintor de ícones trabalharão juntos. A obra nasce de acreditar numa criança que não tem nada para dar em troca. Isso era suficiente para devolver a fé no homem ao monge desiludido. O pecado é pensar que tudo está perdido, não é verdade? Ou que tudo está salvo, completaria Alain.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

(José Ames)

VOZ NO CAPÍTULO


Abbaye de Fontenay



"Deste modo, uma voz já não se faz ouvir, um homem deixa de falar, conta-se apenas o seu voto. Já não estamos mais no âmbito do acto de falar, estamos no da linguagem matemática. A uma democracia baseada na palavra como acto substituiu-se uma democracia baseada na contagem dos códigos (não sendo as sondagens mais do que tentativas desesperadas de conhecer o que os códigos querem dizer).


(Fr. Jean-Michel Potin)


O voto tornou-se tão abstracto que já nada tem a ver com o 'ter voz no capítulo'.  Todos percebemos que essa passagem nos foi imposta pelo funcionamento da democracia de massas.

A 'traição' dos eleitos está implícita no grau de abstracção do voto, em que se projectam ideias e sentimentos que não sobrevivem à revelação do 'artefacto' eleitoral com as primeiras acções de incidência política.

Alguns partidos, porém, protegem-se da decepção dos seus candidatos, por estes nunca serem confrontados com as consequências dos seus actos, na falta da oportunidade de exercerem qualquer cargo, ou porque, no governo, impõem aos eleitores o serviço do mito.

No entanto, o que é a democracia sem o ideal da igualdade e o do poder do povo (mesmo que por representação)? A pura funcionalidade acaba na indiferença dos cidadãos. A 'contagem dos códigos' só é eficaz se se acreditar que ela não é um refinado estratagema.


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Pr.Carlos Alberto (José Ames)

SHOW BUSINESS

Romney e Obama



"Após três debates e quatro horas e meia de troca de palavras na televisão a nível nacional, os Americanos aprenderam que o Presidente Obama tem uma pensão mais pequena do que o seu oponente e que Mitt Romney quer afastar o bico do Passaroco da gamela federal, que Joseph R. Biden Jr. gosta de sorrir e que Paul D. Ryan bebe muita água."

(Peter Baker no New York Times de 18/10/12)



Enfim, sobre o futuro os candidatos não puderam dizer grande coisa. Como é isso sobretudo o que interessa ao eleitorado, todo o candidato infalivelmente se descai a dizer mais do que o que sabe.

Os vários 'rounds' dos principais contendores na televisão não deixam de ser seguidos apaixonadamente (isto é a América crente) e a capacidade histriónica dos actores nos grandes debates nacionais é avaliada como se não fosse puro espectáculo o que é servido.

Obama esteve fraco, disse-se, no primeiro debate. Os republicanos exultaram. No debate seguinte esteve mais à altura dos seus dotes oratórios e houve festa no seu partido. Os candidatos têm de usar todos os truques retóricos e toda a técnica de se fazerem valer na televisão, como é natural. Toda a falta de jeito para o 'medium' televisivo e toda a impreparação na arte de representar o que se não é, é castigada por um público que, como na publicidade, faz de conta que identifica o espectáculo da política com o mundo real.

Tudo seria imprevisível e um pouco absurdo, se os debates não se dirigissem aos indecisos, isto é, aos eleitores fora dos dois  grandes partidos. Como é um imponderável que decidirá o seu voto, qualquer peripécia do espectáculo tem importância, mesmo que nada diga sobre o que vale o político.

Anunciam-se, no entanto, grandes mudanças com os novos meios de comunicação. É de esperar que os grandes partidos sofram com isso, revelando-se um número muito maior de desligados dos partidos, com mais informação e motivações diferentes das da actual zona dos 'indecisos'.




quarta-feira, 17 de outubro de 2012

(José Ames)

A BOLSA E A POESIA

Lord Byron (1788/1824)



"Logo que a experiência dos tempos razoáveis da vida pode atacar uma das minhas imagens, eu abandono-a, não quero que o leitor encontre em mim as mesmas sensações que na Bolsa."

(Lord Byron a Stendhal, segundo este)




Para o grande poeta inglês, enamorado de Sintra, a Bolsa seria um lugar 'razoável' (a lógica dos interesses?), diferente da paixão do jogo. E não se pode negar que se o mercado é, além de outras coisas, evidentemente, um instrumento de medida 'ad hoc' dificilmente substituível, a Bolsa parece ser a sua quinta-essência.

O instrumento pode ser razoável, quem se serve dele é que muitas vezes não é. No "Eclipse" de Antonioni, temos um vislumbre desse ambiente. O minuto de silêncio que interrompe o tumulto das ordens de compra e venda mostra como a 'razão' convive com as piores companhias.

Quanto ao que importa, Byron tem razão. O razoável é previsível e engendra o tédio na poesia. A única antecipação permitida é a da forma (a rima, a aliteração ou o ritmo). E essa é como uma disciplina para a imaginação.

A poesia, mesmo a elegíaca ou a decadente à Soares dos Passos, cria o seu próprio tempo, um futuro que conserva qualquer lógica à distância. A lógica que nos permitiria concluir contra a vida.


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Museu Alberto Sampaio (José Ames)

O VERMELHO E O NEGRO






"Este horror em comer com os domésticos não era natural em Julien; ele teria feito para alcançar a fortuna coisas bem mais penosas. Bebia essa repugnância das 'Confissões' de Rousseau. Era o único livro com a ajuda do qual a sua imaginação lhe apresentava o mundo. A recolha dos boletins de 'la Grande Armée' e o 'Mémorial de Sainte-Hélène' completavam o seu Corão. Far-se-ia matar por estas três obras."


"Le Rouge et le Noir"  (Stendhal)



Esta ambição quase enlouquecida, num jovem provinciano, por 'queimar etapas' na sua ascensão social tem grandes antecedentes: a Revolução e o Império que fizeram tábua rasa da ordem social e permitiram todos os sonhos.

'Morrer por um livro' só se entende porque esse livro ou a sua doutrina representam os novos horizontes da sociedade. Mas vemos que o radicalismo islâmico fez disso uma bandeira. Para esses, é o passado que abre todos os horizontes.

O caso de Rousseau vai ainda mais longe. Eis um homem que revela ao sujeito 'romântico' os seus direitos inquestionáveis e, sobretudo, a supremacia da inteligência sobre o nascimento. O que bastava para minar a ordem social que os revolucionários a seguir deitaram por terra.

Pode dizer-se que as pessoas estavam prontas para as 'Confissões'. E lembremos que, pela primeira vez, um homem confessa-se aos seus semelhantes, não como um pecador, mas para revelar o 'continente interior', para colocar a sua sensibilidade ao nível do heroísmo antigo.

A história de Julien acaba mal. Quis e quase causou a morte da antiga amante. No meio do seu grande sucesso mundano (ia casar com a outrora inacessível Mathilde, filha do marquês de la Mole, seu benfeitor), mas acabou por preferir o castigo, apesar de todos os apelos e escapatórias.

Como Sócrates, que preferiu a cicuta a fugir à justiça ou à ideia dela, Julien recusa-se a escapar e com isso, perante a 'santidade' de Madame de Rênal, é a sua ambição que julga.