terça-feira, 28 de fevereiro de 2017


(Santo Tirso)

MISANTROPIA

O capitão Alfred Dreyfus (1859/1935)


"Conversei um instante com Swann sobre o caso Dreyfus e perguntei-lhe como era possível que todos os Guermantes fossem anti-dreyfusistas. "Primeiro, porque no fundo toda essa gente é anti-semita", respondeu Swann que sabia no entanto por experiência que alguns não o eram mas que, como todas as pessoas que têm uma opinião ardente, preferia, para explicar que algumas pessoas não a partilhassem, supor-lhes uma razão preconcebida, um preconceito contra o qual não havia nada a fazer, em vez de razões que poderiam ser discutidas."

"Le Côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Uma pérola como esta é o que perdem aqueles a quem afastam os sinuosos períodos da língua proustiana ou o aparente anacronismo dos salões de fim-de-século em que se cruzam títulos e raças já extintos.

Este texto denso, quase sem parágrafos para a página "respirar", que promete um corpo-a-corpo com uma vegetação luxuriante, cedo recompensa a fé do explorador intrépido.

Como ali. Quem não sentiu em si mesmo, no momento das grandes divisões políticas, essa misantropia que consiste em abdicar dos argumentos e supor no outro a estupidez dum preconceito ou a desonestidade dum interesse inconfessado?

Dá-se nesses períodos de convulsão social um fenómeno parecido com o da formação do gelo. Deixa de haver mobilidade, e o espírito fica prisioneiro do seu bloco.

É o que faz mudar de passeio a uma pessoa, dum momento para o outro, sem que lhe tenhamos dado o mínimo pretexto.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

(José Ames)

POLÍTICA DA VOZ

John Maynard Keynes (1883/1946)


"O seu sucesso vinha em grande parte da rara combinação dum espírito brilhante e vivo, dum domínio da língua inglesa com o qual poucas pessoas podiam rivalizar e, o que não é mencionado na sua Vida (R.F. Harrod), mas que sempre me pareceu um dos seus melhores trunfos, duma voz maravilhosamente persuasiva."
"Essais" (Friedrich Hayek)

Nesta apreciação do biografado, John Maynard Keynes, Hayek não esconde as suas divergências com o economista (que diz que não era, verdadeiramente) e com as suas ideias políticas, mas reconhece o génio do homem, do universitário ("mais incisivo do que profundo e minucioso", e "guiado por uma poderosa intuição que o impelia a tentar demonstrar a mesma coisa uma e outra vez por diversos caminhos.")

O que despertou o meu interesse foi, porém, o que Hayek diz da voz de Keynes. Está por fazer uma política da voz, que reconheça a sua importância como factor de sedução e de conversão dos espíritos.

Há vozes que desmentem, ignominiosamente, a estatura física, como é o caso de Marlon Brando. Outras há que extravasam as margens da comunicação normal, trazendo o fundo lamacento à superfície, como a do ditador nazi. Pude convencer-me recentemente, graças a um documentário, que todos os líderes nazis se serviam dos guturalismos do Führer, sem dúvida para marcar a sua fidelidade indefectível, tanto como para obterem no auditório, por associação, uma parcela do seu magnetismo não retórico.

De facto, não compreenderíamos a influência de Hitler sem aquela voz, mais poderosa ainda pela rádio, quando se tornava num demónio interior.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

(Lisboa)

O ZOO E A FLORESTA

(Should we keep animals in zoos?)


"Claro que os zoos não podem oferecer aos seus animais as condições que eles teriam numa floresta preservada. Mas para os grandes símios em cativeiro, só raramente existe uma alternativa viável. Estima-se que mais de 4000 grandes símios vivam em zoos, em todo o mundo. A maior parte das regiões em que ainda se encontram no estado selvagem - orangotangos na Indonésia, chimpazés e gorilas na África Central e Ocidental, bonobos na República Democrática do Congo (RDC) - são devastadas pela perda de habitat, a guerra civil, a caça e a doença. Não mais do que 880 gorilas da montanha  sobrevivem em dois pequenos grupos nos confins do leste da RDC, por outro lado,  o habitat dos orangotangos declinou 80 por cento nos últimos 20 anos. Enquanto que alguns conservacionistas sonham com a repatriação dos  macacos dos jardins zoológicos para a selva, as florestas em vias de desaparecimento significam que isso só em muito poucos casos poderia ser feito."

"There is a moral argument for keeping great apes in zoos", in "Aeon" (Richard Moore)

A nossa espécie nunca professou um sentimento 'franciscano' pelos animais e as outras criaturas vivas. De um ponto de vista darwiniano, isso nem merece discussão. Precisamos de os sacrificar em grande escala, directamente (pelo açougue ou outro método) e indirectamente pela destruição do seu habitat sob o 'bulldozer' da nossa própria expansão.

A irrupção dos problemas de consciência e da ética nesta questão começou quando se atingiu algum grau de liberdade em relação às escolhas da nossa sobrevivência. Inicia-se uma era em que podemos imaginar uma dieta integralmente sintética, como a dos astronautas da 'Odisseia no Espaço'. Mas teremos alguma vez a possibilidade de recriar a vida selvagem que já reduzimos à porção mínima? E quantos exemplares dessas magníficas espécies desaparecidas ou em vias disso chegarão para o nosso museu de história natural ao ar livre, ou não? Sejamos realistas. Não se trata de devolver nenhum tipo de direitos, simbolicamente ou em espécie - a quem entregaríamos a colossal indemnização?

Os jardins zoológicos são como as reservas de índios que a jovem nação americana criou para aplacar a moralidade da época. Dario tê-los-ia escravizado. Os States prostituiram-nos depois ao turismo. Mas que poderiam ter feito? Mostrarem-se uma nação três séculos à frente na sua maneira de pensar?

Em relação ao cativeiro em zoo, como em relação aos matadouros e aos 'viveiros' de todo o género, há mais dignidade em ser cínico, do que crente e, no fundo, hipócrita.

Face à realidade da morte e à negação dela - porque é isso que está em causa - não há óculos de verão, suficientemente escuros.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

(José Ames)

O HORROR DE POMPEU

A Thora

"Por definição, o homem está sempre errado aos olhos da divindade mosaica e dos seus imperativos de perfeição. A resposta de Job é de uma enormidade desumana, como se sabe. Os seres humanos vulgares sabem que, sob o peso do amor deste Deus e dos Seus mandamentos de reciprocidade no amor, a alma tem de ceder. Qual o judeu pensante e sensível que, em certos momentos, não partilhou já o horror de Pompeu quando os romanos irromperam pelo templo capturado e encontraram vazio o Santo dos Santos?"

"Paixão intacta" (George Steiner)

Que grande oportunidade para o espírito, como contraponto da "carne", que maravilhoso impulso para a mais desenraizada e livre abstracção, esse vazio que horrorizou Pompeu! Pompeu, o idólatra, e também ele ídolo.

Há uma leitura darwiniana desse triunfo da inteligência especulativa, da metafísica e da sua crítica, que caracteriza a civilização tecnocientífica do Ocidente.

É porventura pelo facto do Judaísmo ser uma religião sem território, a não ser escrito, de ter podido correr o globo e suportar exílios e perseguições, graças à leveza e à reprodutibilidade do Livro (Debray), que essa inteligência e esse espírito se conservaram, a ponto de nenhuma outra cultura poder concorrer com o Judaísmo em sobrevivência.

O enorme débito da ciência e das ideias a personalidades oriundas dessa cultura é um sinal de que a "segregação", por um lado, e o incomensurável orgulho, por outro, desempenharam um papel talvez insubstituível nas nossas capacidades de adaptação e nas nossas frustrações, espicaçadas por um sonho tenaz de perfeição.

"Na sua essência, o marxismo é o judaísmo impaciente." "(...) o reino da justiça tem de ser implantado pelo próprio homem, nesta terra, aqui e agora." (ibidem)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

(Dublin)

O PARADOXO DE POLANYI



(VES commercials: crowds and cars by Framestore | fxguide)


"Polanyi nota que toda a filosofia social do liberalismo económico, de facto, se baseia 'na ideia de que o 'laissez-faire' foi um desenvolvimento natural', com os seus opositores presumivelmente agindo no sentido de restringir a liberdade natural. Ele contrapõe: 'a introdução dos mercados livres, longe de tornar dispensável a necessidade de controlo, regulamentação e intervenção, aumentou enormemente essa necessidade.' Isto leva ao paradoxo de Polanyi: 'O 'laissez-faire' era planeado, o planeamento, não.' A última frase sugere que os esforços para conter a disrupção social causada pelo desencadeamento do sistema de mercado eram as verdadeiramente espontâneas acções humanas."

"The problem of Karl Polanyi" (Allan Carlson)

O paradoxo significa que, para certos ideólogos, a liberdade atribuída às forças sociais seria uma extensão da liberdade dos indivíduos e que, como esta, nada teria a ver com as chamadas 'forças da natureza'. Na realidade, ambas as forças são objecto de um mesmo desconhecimento, ou de uma mesma ilusão, se quisermos, com a diferença que a explicação através de leis físicas é mais convincente do que a explicação económica, por exemplo. Em todo o caso, sabemos que não é prudente confiar na 'bondade' dos elementos, sem ter em conta as suas ocasionais fúrias, como não o é confiar na previsibilidade dos mercados.

É precisamente a ideia de que os mercados são construções humanas que expõe tantas pessoas ao erro de pensaram que os homens são os seus criadores e que podem planeá-los como uma coisa fabricada. As cíclicas crises económicas desmentem completamente essa fantasia.

Polanyi, tal como Colombo, limitou-se a desfazer a forma natural do ovo para conseguir pô-lo de pé. Não, a sociedade está mais perto de se aparentar a uma força natural,  do que a uma produção humana, racionalizável ou não. Teremos, talvez, de largar o lastro da política e da liberdade, tal como a idealizámos ao longo dos séculos, para descobrir o plano infalível e a 'organização perfeita', isto é, sem qualquer rasto da sociedade humana.

O paradoxo de Polanyi é desarmante na sua singeleza. Sempre que respeitamos a 'liberdade das forças', entregamos o planeta aos predadores, que é o que tem acontecido. 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

(José Ames)

FIDELIDADES E TATUAGENS

http://blog.tattoojohnny.com/wp

"Eu já não via Swann há muito tempo e perguntei-me um instante se ele antes não teria bigode, ou o cabelo à escovinha, porque lhe notei qualquer coisa de mudado; era só que ele estava, com efeito, muito mudado, estava muito doente, e a doença produz no rosto modificações tão profundas como deixar crescer a barba ou deslocar a risca do cabelo."
"Le Côté de Guermantes" (Marcel Proust)

O nosso fácies é uma espécie de contrato com as pessoas que conhecemos.

As alterações involuntárias, como as de Swann, obrigam a uma refocagem mais incerta (não sabemos até que ponto a personalidade mudou também) do que aquelas que decidimos, como para abrir um novo capítulo nas nossas vidas ou simplesmente obedecer aos ditames duma moda.
Todos sabem que uma simples alteração capilar precisa de ser "apresentada", como se fizesse de nós uma nova personagem e tal como as ideias originais ( e por isso inesperadas) colocam um problema à conversação educada, também estas "obras na fachada" precisam dum visto "camarário".

Na verdade, é todo o corpo ( que é rosto, como nos contam alguns antropólogos) que está sujeito a esse contrato. É por isso que a mudança de sexo, por exemplo, não é apenas um problema do indivíduo.

E nas tatuagens indeléveis de alguns primitivos, o "contrato social" vale para sempre.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

(Praia de Salgueiros)

JOÃO





"A arte é a representação bela de  uma coisa e não a representação de uma coisa bela ."
(Emmanuel Kant)

Na "Última Ceia" de Ugolino Da Siena (sec.XIV), Cristo não está no centro, como é o caso de tantas outras pinturas, mas à esquerda, no topo da mesa; o discípulo favorito, João, dorme no seu braço. É a imagem da confiança infantil no parente mais próximo. Não está naquela assembleia, participando na diversidade dos caracteres, na escuta dos mais chegados, nem nas outras conversas. O espírito não está adormecido, mas tão seguro da  bem-aventurança que não chega a ser consciente. Será, esta 'despreocupação', o modelo do crente? Em todo o caso, nesta pintura Cristo não fala para todos e quase metade dos apóstolos distrai-se no diálogo paralelo.

Dir-se-ia que a cena explica a inspiração do futuro místico de Patmos, no seu evangelho. Aquela fusão de identidades no segredo. Há uma separação muito distinta entre o par da esquerda e todos os outros. Estes significam seja o acordo implícito, seja a dialéctica grega ou a dissidência judaica, necessárias à edificação da 'igreja terrena', no mundo semita e no mundo dos gentios.

Como diz o autor da 'Crítica do Juízo', o que é belo está na ideia e na forma, não no encontro real ou possível de um jovem adormecido e do seu amigo com o grupo dos seguidores e militantes do verbo.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

(José Ames)

O LUGAR VAZIO

O rei Cristiano VIII


Cristiano VIII da Dinamarca terá perguntado a Sören Kierkegaard como achava ele que um rei se devia conduzir. Eis a resposta do filósofo: "Primeiro, seria bom que o Rei fosse feio (Cristiano VIII era muito bem parecido). Depois devia ser surdo e cego, ou pelo menos comportar-se como se o fosse, porque isso resolve muitas dificuldades... E depois, não deve dizer grande coisa, mas ter um pequeno discurso-tipo que pode ser usado em todas as ocasiões, um discurso por isso sem conteúdo."
"Unended quest" (Karl Popper)

Este é o ideal do rei-símbolo, como o Kagemusha ("A sombra do guerreiro") de Kurosawa. É como se não falasse a língua dos outros homens e tivesse descido de outro mundo.

Um rei assim podia ser amado, e as suas palavras, de concisas e sempre as mesmas, adquiririam o seu quê de oracular, sem se comprometerem com nenhuma opinião, sem sofrerem a mais longínqua conotação com o espectro partidário.

Devia ser revelador que esse ideal seja hoje considerado anacrónico.

Espera-se que o "presidente de todos" tome partido, sem ser partidário. E é por isso que esse é o lugar do discurso vazio por excelência. Mas enigmático e susceptível de ser apropriado por uns e por outros.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

(Belém)

A SIMULTANEIDADE

Morton Feldman (1926/1987)

"Picasso, que descobriu o cubismo em Cézanne, desenvolveu a partir disso um sistema. Não viu a contribuição capital de Cézanne. Não era como fazer um objecto, não como esse objecto existe pelo tempo, no tempo ou à volta do tempo, mas como esse objecto existe como tempo. O tempo reencontra-se. Como Proust o mostrou na sua obra. O tempo é como uma imagem, como o sugeriu Aristóteles. Foi a superfície que as artes visuais começaram mais tarde a explorar. Foi a superfície que a música, iludida pelo facto de ser calculada em segundos, tinha negligenciado."

"Entre des catégories" (Morton Feldman, citado por Eric De Visscher, in "Surfaces du temps")

Feldman inspirou-se na pintura, na superfície do quadro, para imaginar um quadro sonoro que impedisse "o som de cair por terra", esforçando-se por "mantê-lo no plano".

É a coexistência de todos os fenómenos que nega a ideia de entropia e, logo, de uma direcção para o tempo, ao encontro da tese parmenidiana dum mundo imóvel, que não muda.

A terceira dimensão, mesmo simulada na pintura, abre uma direcção para o tempo. E o cubismo explica essa ilusão, mostrando as direcções virtuais do tempo ocultas nos objectos de um plano.

O que Feldman vê na pintura de Cézanne é a dissolução das formas que designam um lugar no quadro para o antes e o depois, que "ocupam um espaço pré-existente, como um apartamento que arranjamos, dispondo os móveis em todos os espaços disponíveis" (E. De V.)

A crítica da perspectiva, em Cézanne, obriga-nos a repensar o tempo e ... a razão. É (um)a ordem racional que com o fim da perspectiva se põe em causa.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

(José Ames)

ARGONÁUTICA

Argonauts on board their ship Argo, 420 - 390 BC.

"O que eu pretendi tornar claro foi a duplicidade espiritual e existencial presentes em tantos dos nossos actuais modelos de significado e de valor estético. Conscientemente ou não, com pejo ou com indiferença, esses modelos utilizam e metaforizam de maneira crítica o idioma abandonado, gratuito, as concepções e as garantias de uma teologia ou, pelo menos, de uma metafísica transcendente. As ardilosas banalizações e o niilismo jocoso do desconstrucionismo têm o mérito da sua honestidade. Ensinam-nos que 'nada surgirá do nada'."

"Paixão intacta" (George Steiner)

Contra a ideia de que o novo pode nascer de si próprio e não ser uma espécie de navio Argus, refeito peça a peça, a ponto de original ter apenas o nome, esta de que fazemos "pau de toda a colher" e de que a linguagem conserva a nossa cultura passada, não tal como ela foi, mas depois de sujeita a um trabalho "poético" que a torna irreconhecível, mas apta para o sentido.

Como diz Wittgenstein, "Cada nova aplicação (da palavra) que dela fazemos é um salto no escuro; qualquer critério actual poderia ser interpretado como estando em concordância com aquilo que decidíssemos fazer. Por isso, não existe acordo nem conflito."

É assim que todas as idades estão presentes na metamorfose do indivíduo actual.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

(Fão)

COMO PEIXE NA ÁGUA

Église Saint-Pierre de Parthenay-le-Vieux ( XIIe siècle )

"O movimento ideal do amor não é, para Michelet, de penetração mas de afastamento, porque não é o sexo que dele dá a medida, mas o olhar. Da mesma maneira que vendo no peixe a água gelatinizada, Michelet constituía o universo como um objecto deliciosamente liso, também proteger a Mulher, recobri-la, envolvê-la, "segui-la" na sua superfície inteira, é conjurar toda a ruptura da matéria. A figura ideal do homem amoroso, é em definitivo a vestimenta: a diferença não é maior entre a alga e o peixe do que entre a pele e a seda que a recobre."

"Michelet" (Roland Barthes)

Encontro um exemplo desta inconsutilidade do olhar e da pele, num cineasta menor, Walerian Borowczyk ("Contos Imorais").

O contrário da montagem, do corte, é este deslizar acariciante do grande plano. Mesmo fora da situação erótica, a câmara que percorre o corpo (armado) ou um objecto técnico (a nave em "2001") diz-nos não só o que olhar, mas como olhar.

O que significa, em relação à acção do filme, este tempo da câmara no seu deslizar rasante? É um elenco. Como quando no romance de guerra se descrevem as forças em presença, ou os atributos e as graças duma personagem romanesca. Pausa e preparação.

"(...) uma vez que, normalmente, é o macho o primeiro a manter afastado, por uma espécie de tabu genético, da crise sanguínea da Mulher, Michelet esforça-se por despojar nele o genitor."

A atracção de Michelet pelos mistérios do organismo feminino, que o levam ao disfarce sexual (como Aquiles no gineceu) é talvez a chave do seu método de compreensão da história. Complementa o recurso às fontes e aos documentos pela identificação sexual e psicológica com as personagens, como se pedia ao actor de Stanislawski para fazer.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

(José Ames)

TERMOSTATO




"A nossa tese é  a de que a ideia de um mercado auto-regulado implica uma completa utopia. Uma tal instituição não poderia existir pelo tempo que fosse sem a aniquilação da substância humana e natural da sociedade: teria destruído o homem fisicamente e transformado o seu ambiente no da vida selvagem."

("The Great Transformation", Karl Polianyi)

O mercado auto-regulado existe no ambiente 'asséptico' de um gabinete de leitura, isolado da experiência (há ideias que simplesmente   não se podem desenvolver nem verificar no 'cocoon' universitário ou empresarial, nem sequer pela ascese do pensamento, como tentou Descartes.) Mas as mais das vezes, contentamo-nos com um meio sucesso: o de que funciona, com alguns arranjos. 

Polianyi antecipa o pior em resultado de nos entregarmos a uma utopia sem ponta por onde se lhe pegue. Para explicar, contudo, como a ilusão pôde aguentar-se por alguns séculos, isto é, como um tal erro de previsão não produziu as consequências 'reveladoras' que seriam de esperar, só podemos pensar que o sistema em que incluímos uma variável errada era ele próprio uma aproximação, e que o essencial estava muito aquém da compreensão do momento. Muito aquém do domínio teórico do mundo, do que era exigível em termos de conhecimento do homem e dos sistemas invocados para a economia e as outras ciências humanas, por exemplo.

Há igualmente, claro, uma enorme resistência quando se trata de rever os antolhos de toda a espécie, com relevância para os de natureza religiosa ou étnico-social que impedem a humanidade, no seu estado actual, de aplanar o caminho para uma verdadeira consciência global, enformada pela crítica e pela ciência.

A tese de Polianyi sobre a auto-regulação dos mercados não precisa de ser 'melhorada' com mais histórias que iliustrem o seu fracasso, e até o carácter absurdo desta reminiscência da 'Mão Invisível' de Adam Smith. Se fez sentido para o autor da 'Riqueza das Nações' terá sido pela ainda infância do capitalismo, e de não terem entrado em jogo forças mais tenebrosas.

Em todo o caso, é difícil que o carácter de erro de que falamos aqui surgisse em qualquer lugar, desacompanhado de outras condições, da crítica, de controlos públicos  e de resistências do meio social que tornassem visível para todos a natureza electro-mecânica do termostato que caracteriza a teoria da auto-regulação dos mercados.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

(Angra do Heroísmo)

O MUNDO EXTERIOR

©Roger Ballen


"Um "realista que acredita num "mundo exterior" necessariamente acredita na existência dum cosmos em vez dum caos."

"Unended Quest" (Karl Popper)

As teorias do acaso parecem pôr em causa esta ideia dum Cosmos, das "regularidades". E não temos certezas, nem nas ciências chamadas exactas.

Mas por ser incerto e aparentemente caótico, esse mundo exterior não nos leva a acusar os deuses, mas a nossa ignorância.

Acreditamos que a razão, legisladora do mundo humano e das suas projecções exteriores, não é um acidente sem nenhuma afinidade com o "caos" universal.

E, pelo menos por aí, é verdade ter Deus criado o Homem à sua imagem e semelhança.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

(José Ames)

A DESTRUIÇÃO DOS BUDAS





Nada parece mais 'lógico', em tempos que privilegiam a eficiência da comunicação, do que 'libertar' a linguagem humana de toda a ganga poética e literária, de todo o folclore primitivo, enfim, de uma complexidade que só pode trazer 'ruído' e ineficiência ao objectivo de uma comunicação reduzida ao estado da informação 'binária', ou que tende para esse estado.

Dentro do grande tema da Educação, poderíamos assim deter-nos um pouco numa das mudanças impostas pelo ambiente cultural e técnico que é a passagem do 'aprender brincando' que caracterizou este tempo de 'co-habitação' com algumas das mais fascinantes invenções de sempre: o computador, a rede e o 'smartphone', para a nova realidade da sociedade digital, muito mais 'lacónica', mais atenta aos resultados de um teste instantâneo, do que ao processo de aprendizagem, porque o tempo é um lastro que é preciso sacrificar. Parece a paixão pela velocidade dos 'futuristas' do princípio do século XX.

Em tempos que agora nos surgem como os de uma simplicidade 'bíblica', era mais fácil surpreender o aluno com alguns truques de magia, ao alcance de um contador de histórias ou de um ilusionista. Mas terá sido, alguma vez, esse pequeno fumo o suficiente para interessar os 'melhores', aqueles de quem dependerá levar a ciência e a ética a novos patamares? Falamos, claro, de uma verdadeira elite.

O que mudou na velha questão  do 'aprender brincando' foi a noção de brinquedo. Dantes, criticava-se, com boas razões, uma prática de ensino que, para interessar, apelava, não ao que o aluno tinha de mais eminente (a sua coragem e a sua curiosidade intelectual), mas às técnicas de sedução, que prolongavam, por assim dizer, os expedientes com que sempre se procurou atrair a atenção  das crianças. No fundo, essa  tradição deixava a reprodução das elites ao sistema dos privilégios sociais, ficando o 'povo' com o 'quantum satis' de educação.

Isso, porém, não é mais 'actual', visto que a existência da própria elite dos privilégios deixou de estar garantida,  e para a substituir, perfila-se já uma coorte de 'gestores-utilizadores', sujeita ao 'numerus clausus' da eficiência técnica. Com isto se compatibilizando, aliás, o princípio da indistinção e da 'igualdade democrática' que, na verdade, nada estipulava sobre a questão do poder, como se na ideia de uma sociedade racional estivesse  implícita a  inevitabilidade do mesmo, de cujo abuso a democracia liberal sempre se poderia defender pelo célebre sistema dos 'checks and balances'. Em termos de justiça relativa, esta política educacional demonstrou, aliás, a sua perfeita adequação ao capitalismo moderno.

Mas, entretanto, a revolução tecnológica que nos empolgou e arrastou para o grande desconhecido tornou caduca a própria ideia de uma elite intelectual. A verdade é que à medida que as nossas 'máquinas' se tornam mais 'inteligentes', é a elas que, 'naturalmente', se pede que exerçam a função da elite. Não é o caso geral ainda, mas a tendência é irresistível. Primeiro vêm os 'robots' auxiliares, depois, chegará a vez das mais complexas funções, as mais típicas do 'animal racional'. 

A ideia de 'aprender brincando' surge agora como qualquer coisa de incompreensível.  Porque a 'brincadeira', no entrementes, se tornou, pela sua finalidade, uma coisa muito séria, em termos económicos e sociais. A sedução não se apresenta como servindo os objectivos de um ditador tecnocrata ou de uma casta financeira ou tecnológica, mas como indo ao encontro da ideossincrasia e das inclinações de uma nova categoria de indíviduos: os consumidores, indivíduos livres (que, ao contrário dos 'radicais livres' da química, perdem as suas 'características' perante a astúcia do 'marketing e de fenómenos como o populismo ).

É assim que a educação tende cada vez mais para deixar de ser focada num processo de aprendizagem, e passar a ser um simples teste técnico (o passo anterior de uma dispensa geral do intermediário humano). O Twitter e outros programas estão aí para anunciar o futuro, com a sua espantosa capacidade para destruir a linguagem e, do mesmo passo, a própria política.

Nunca se imaginou, antes, que uma sociedade cuja linguagem se reduzisse ao Morse pudesse servir no mundo artificioso da diplomacia. Vivemos o suficiente para ver que os novos bárbaros não vêm de fora, nem de uma casta decadente que oprimisse os cidadãos. Estamos a entregar os tesouros da cidade a quem por eles tem o mesmo respeito dos demolidores pelos budas de Bamiyan...

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

(Gouveia)

A DEMAGOGIA SOBERANA

(Maquiavel



“Pode-se sem injustiça satisfazer o povo, não os grandes: estes procuram exercer a tirania, aqueles apenas a querem evitar ... O povo não quer mais do que não ser oprimido.”

(Maquiavel)

Esta definição será ainda actual? Comecemos por afastar o 'maquiavelismo' do pensamento de Maquiavel. Ele apenas tem o conceito da Necessidade que nos veio dos Gregos. E essa Necessidade não é boa nem má: é o que tem de ser. A política é outra coisa. Pertence ao domínio da palavra. No confronto da Necessidade (Ananké) com a palavra, esta esconde-se atrás das mais diversas máscaras. Notemos aqui como uma das ideologias do nosso tempo, a ideologia económica, vestiu as vestes da antiga deusa. É o sentido do 'there is no alternative' (TINA). A diferença é que a crítica da desigualdade é explícita  no  florentino, assumindo que a mesma não está sujeita à lei da necessidade, e naqueles economistas e nos políticos que os seguem, há uma apologia encoberta da desigualdade em nome da própria necessidade. Como se dissessem que a melhor distribuição dos recursos pode implicar a maior das 'injustiças', simplesmente porque a 'justiça' nada tem nada a ver com as 'leis da economia'.

O princípio da liberdade política, em Maquiavel,  é o valor que garante  a possibilidade da justiça, e esse corresponderia, no fundo, à vontade popular. É aqui que se revela a importância das doutrinas e da história do tempo. Apesar disso, poderíamos dizer que esse espírito é ainda o dos 'pais fundadores' da nação americana. A justiça confunde-se com a igualdade de oportunidades.

A revolução digital tornou esse 'ambiente democrático' noutra coisa muito diferente, embora tudo isto surja como um desenvolvimento 'até às últimas consequências' que acaba numa paradoxal indiferenciação dos valores e reversão ou neutralização dos princípios.

Parece que a democratização nunca foi tão longe, e a palavra nunca foi tão livre, mas o papel da elite do pensamento, da 'super-estrutura' ideológica referida por Marx deixou de ter relevância. Começamos a conhecer, em todo o seu esplendor o 'Grande Animal' platónico. A cabeça desse animal existe, múltipla e invisível, mas fora dele. Chamar-lhe sistema seria demasiado simples.

Sendo assim, de que vontade geral estamos a falar? E que é isso de 'satisfazer o povo'? A demagogia é de 'todos os tempos'. Hoje confunde-se com o ser e a vontade do próprio povo.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

(José Ames)

A CAIXA DOS BONECOS



(Mao Tse Tung e Henry Kissinger)

"Se  a  União  Soviética  lançasse  as  suas  bombas  e  matasse  todos  os  que  têm mais  de  30  anos  e  são  chineses,  isso  resolver-nos-ia  o  problema  [da complexidade  dos  muitos  dialectos  da  China].  Porque  as  pessoas  de  idade  como eu  não  conseguem  aprender  chinês  [mandarim]." 

(Mao Tse Tung a  Kissinger, in "On China" de Henry Kissinger)

À primeira vista, é uma enormidade, uma brincadeira que o presidente se permite com o representante de Nixon. Mas não deixa de inquietar as nossas dúvidas sobre os limites que o poder se compromete a respeitar.

Parece uma leviandade e, ao mesmo tempo, uma possibilidade no espírito de quem concebeu outras 'simplificações' não menos abstractas e que passaram à ordem dos factos, como o 'Grande Salto em Frente', cujo balanço de 30 milhões de mortos por causa da fome foi terrível para a nação (o poder era de facto mais mortífero do que as bombas soviéticas...).

A certo ponto de abstracção, já não há contacto com a Terra, como uma nave no espaço privada do seu sistema de comunicações. É a altura em que a 'missão' tem de ser reprogramada subversivamente. Tenho presente o filme de Kubrick, '2001, Odisseia no Espaço'. O título significa um regresso a casa, ao princípio da humanidade. E tudo porque o Hal 9000 foi impedido de concluir a  missão para que tinha sido programado. Os tripulantes perceberam que a missão pressupunha a sua ignorância sobre os motivos e a verdadeira fiilnalidade da viagem.

O poder absoluto é o  'Salto em frente', ou a desumanidade e a fome programadas em nome de uma categoria abstracta, como o Homem Novo, ou a Revolução,  e é a mentira de Hal 9000 que corresponde a uma tomada do poder pela inteligência artificial.

O presidente chinês, com a sua  cínica anedota, quis, talvez, chocar o diplomata americano, tido como astuto, mas afinal ingénuo. Ao fim e ao cabo, os dois homens tinham em comum o disporem de grande poder, logo, a possibilidade de errar desastrosamente. Um, já na decadência, mostra os colmilhos amarelados pelo tabaco, enquanto  brinca aos soldadinhos de chumbo, o outro, ciente que o seu nome conquistou já um lugar na história, não releva a megalomania senil do seu intetlocutor. Instrui-se e quer instruir-nos sobre a 'China Misteriosa'. Nada o choca, de facto, porque tudo é suposto ser diferente, senão incompreensível.

Hoje assistimos a outro fenómeno intrigante: o da América misteriosa para si mesmo, com bonecos que valem tanto como Mao e outros 'tigres de papel' a saltarem da sua caixa.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

(Holanda)

ESPESSURA



(San Juan de la Cruz)


"Entremos mais dentro na espessura."

(S. João da Cruz)

É em si mesmo que o místico se aprofunda? O mistério do ser é um verdadeiro mistério e um mistério sem resposta?

A 'espessura' para definir a substância da escuridão ('La noche escura' é o título de um dos seus mais famosos poemas), não como uma simples ausência de luz, mas como algo parecido com a imersão do corpo na água, é uma metáfora estranha para a tradição da época.

Corresponde a uma deslocação da dominante visual (o Deus que tudo vê e o Grande Arquitecto), para o táctil e o sonoro, muito mais íntimo e próximo do corpo. Por isso há todo um erotismo paradoxal (quando falamos das coisas do espírito) nas obras do santo e da sua predecessora na reforma da ordem monacal, Teresa de Ávila. Ou foi Bernini que nos seduziu com o seu belo êxtase em mármore?

A vida exterior de S. João da Cruz foi um rodopio de actividade, entre o militantismo da sua reforma, a prisão e a fundação dos conventos. O poeta mostra-nas a outra face, contemplativa e mística que radica na liberdade da imaginação e da sensualidade transformada.

Nessa espessura, o Deus bíblico que 'sonda o coração e os rins', em vez de sondar, deixa-se ser 'sondado'.