sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

NOSTRA CULPA



“Estamos tão desesperados para encontrar uma maneira de controlar os terrores que nos cercam, que inventámos a culpa como pedra de toque das nossas explicações.”


“Evil in modern thought”  (Susan Neiman)



O homem primitivo, acossado pelos perigos da sua existência, não pensava. O alerta permanente não é pensamento. Pensar é um luxo da civilização, e só quando nos vemos privados das condições mínimas de segurança é que percebemos quanto a nossa mais nobre função depende da ordem social.

Além disso, todos experimentámos na infância o terror puro, que tal como o da espécie, nunca desaparece de todo. "Se isto é um homem" duvidava Primo Levi, falando do prisioneiro dos campos. É assim. A todo o momento podemos perder o pensamento, e a morte é só uma das máscaras do terror infantil.

Nestas condições, a ideia da culpa é uma escapatória. Permite-nos atribuir a nós mesmos os pequenos males e o desabar do mundo, o que nos dá a ilusão de controlarmos as coisas. Mais vale saber que sofremos porque caímos no desagrado dos deuses por causa dos nossos actos, do que não chegar a saber o que nos acontece.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

ENTRE DOIS MUNDOS

S. Tomás de Aquino (1225/1274)


“Não saber não era uma fonte de frustração. Como Tomás (S. Tomás de Aquino) indica, as pessoas podem sentir alegria nesta subversão dos seus poderes de raciocínio. Tomás não esperava que os seus estudantes ‘acreditassem’ em Deus; ele ainda usa credere para significar confiança e compromisso e define a fé como ‘ a capacidade do intelecto para reconhecer (assentire) a genuinidade do transcendente; para ver além da superfície da vida e apreender a dimensão sagrada que é tão real – na verdade, mais real – do quer que seja na nossa experiência. Este ‘assentimento’ não significa submissão intelectual: o verbo assentire quer dizer também ‘rejubilar em’ e estava relacionado com assensio (‘aplauso’).

“The Case for God” (Karen Armstrong)



Se soubermos que não sabemos, não saber pode não ser uma frustração. Há este passo em S. Tomás da insegurança dum mundo, na realidade, desconhecido, para a confiança e o compromisso (o credere) que está na nossa natureza por já termos sido crianças. A imagem do Pai Celeste corresponde a essa recorrente imaturidade.

Claro que podemos sair desse estado de infância prolongada através da criação dum mundo artificial que seja só nosso e que, em princípio, conhecemos por que o fizemos. A história da ciência é uma construção, pedra a pedra do novo templo, dum outro cosmos cujas leis vamos descobrindo à medida que estamos preparados para formular novos problemas.

Estamos também envolvidos nesse mundo e nele temos toda a confiança necessária para a nossa existência. Já não cremos em Deus ( de quem nada sabíamos nem podíamos saber), em vez disso, cremos em nós mesmos.

O conhece-te a ti próprio de Sócrates foi o início dessa viagem para fora do desconhecido e para dentro do mundo artificial. Só que ele dizia que nada sabia…

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

(José Ames)

A COMPREENSÃO LIMITADA


Roldana


“(…) a escola profissional foi instituída para pôr de pé este modelo impossível do homem, que compreenderia até ali e não mais além. Era possível no tempo dos ofícios misteriosos, onde o jeito manual era tudo; já não é possível no tempo das máquinas, que são objectos sem nenhuma malícia e sem nenhum mistério. Foi assim que se desenvolveu este materialismo operário, que é, talvez, coisa imprevista, a única força moral a agir no mundo. O facto é que, um ajustamento dente a dente é uma espécie de imagem da justiça. E, sobretudo, a prática das máquinas predispõe à mudança imediata do que não corre como se queria.”

“Propos d’Économique” (Alain)



Da mecânica à electrónica e à computação vai uma distância que confunde o materialismo ingénuo de que falava o filósofo no princípio do século vinte.

Se há uma “imagem da justiça” nas novas condições, são outros os profissionais que dela beneficiam e esses mesmos são uma elite. Já são as máquinas que objectivam o pensamento do que é ajustado e que monitorizam o que funciona  e o que não.

O materialismo operário tornou-se residual, e enquanto consumidor e utilizador da tecnologia, o operário é tão “supersticioso” como qualquer outro. Na verdade, voltámos aos “ofícios misteriosos” e perante o novo objecto quase todos somos leigos.

Quando antes podíamos reduzir todas as máquinas a um princípio simples como a alavanca, o parafuso ou a roldana, hoje temos de sair da natureza empírica para as explicar. O ensino especializado revela isso mesmo e, com ele, o modelo do homem que só tem de compreender até um certo ponto.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

DO CONTRATO ENTRE DESIGUAIS

Cerimónia vudu


“No começo, está um preconceito ideológico: neste caso, que dar emprego é um crime – um acto ilegítimo de exploração. Tal como, por exemplo, arrendar uma casa. Posto isso, a lei não visa estabelecer um contrato entre iguais, mas penalizar o proprietário dos meios de produção ou do prédio.”

Rui Ramos (in Expresso de 23/12/2010)



É claro que existe um preconceito ideológico, que parte da ideia que a relação de forças é desigual e que há que compensar o desnível através das garantias fundamentais. Por isso é que a parte mais fraca, historicamente, se organizou em sindicatos ( se o contrato fosse entre iguais, isso seria uma prepotência).

Como em todos os conflitos sociais, não existe nenhum equilíbrio garantido, e às vezes o poder sindical pode virar-se contra o próprio interesse dos trabalhadores, levando, por exemplo, à perda dos postos de trabalho que valem mais, normalmente, do que qualquer proposta reivindicativa ( mas nada disso escandalizará a opinião liberal que verá no encerramento dessas empresas a acção da famosa mão invisível, sacudindo a árvore económica dos seus frutos apodrecidos).

O que não se pode é ignorar que o trabalhador isolado se encontra numa situação de inferioridade frente ao poder da organização patronal. Quem manda pode e pode mais do que quem é mandado, e assim tem de ser (embora não devamos confundir o poder duma hierarquia legítima com o poder discricionário). Por isso, quando a lei “protege” a parte mais fraca, está apenas a ser civilizada, a compensar o desnível do poder entre as partes e a conter a tão humana tentação para abusar desse poder.

Que a questão da reforma das leis laborais como panaceia para a crise é uma espécie de vudu para entreter alguns políticos e economistas, e que na prática não mexerá uma palha na situação de facto, porque a desigualdade do poder, agravada pelo desemprego, já permite a muitos patrões ignorar a lei (é disso que vive o contencioso dos sindicatos). Tal como a constituição escrita nunca impediu a realidade de ser o que é, às avessas do seu idealismo.

Parece, pois, que na origem da posição do cronista que gosto, aliás, sempre de ler, está outra posição ideológica que é a de que os contratantes têm igual poder e por isso a lei devia limitar-se a registar os factos.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

PARTIDAS

"Departures" (Yôgirô Takita)



O tema faz lembrar a novela “The loved one” de Evelyn Waugh, ou a série “Six feet under”, mas dum modo elegíaco-metafísico que não rejeita o humor.

Daigo (Masashiro Motoki) perde o emprego de violoncelista porque o dono da orquestra constata que não tem público para Beethoven. A sua nova oportunidade é um ofício que ninguém deseja: o de tanato-esteta. A sua função é a de preparar o morto para deixar à família uma última imagem de beleza, adiando por um instante a ruína iminente, antes da consumação pelo fogo.

Daigo passa por uma verdadeira iniciação que começa pelos vómitos e a rejeição social para encontrar o sentido religioso do rito. É uma dança delicada que o tanato-esteta executa com a beleza e a gravidade que falta aos originais americanos, diante do grupo dos íntimos na tradicional postura de joelhos. Em todos os gestos é preciso, sobretudo, evitar que o corpo seja visto, mesmo se é preciso despi-lo e lavá-lo. Todo o corpo é máscara e é a última máscara.

Mesmo se a prática é mais uma das aculturações do Japão moderno, ela neste filme tem a autenticidade do seu teatro  ou da sua caligrafia.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Aldeadavila (José Ames)

A JUSTIÇA


"A morte de Sócrates" (David)


“Como qualquer ritual, (a experiência filosófica) era um trabalho extremamente difícil, requerendo uma grande despesa de tempo e muita preocupação. Tal como Sócrates, Platão insistia que ela devia ser conduzida duma forma gentil, compassiva, de modo a que os participantes ‘sentissem com’ os seus parceiros: ‘Só quando todas estas coisas, nomes e definições, sensações visuais e outras, se misturam e são sujeitas a testes nos quais perguntas e respostas se trocam de boa fé e sem malícia, é que, finalmente, quando a capacidade humana é estendida até o seu limite, uma faísca de compreensão e inteligência irradia e ilumina o assunto em questão’”. (Carta Sétima)

“The case for God” (Karen Armstrong)



A compreensão e a inteligência como experiência total, envolvendo o corpo e o espírito, é algo que já é estranho para nós. A identificação da experiência filosófica com uma iniciação prática que tinha tudo a ver com a estética e o ritual religioso era, no tempo de Platão, algo de natural e que remontava às origens da filosofia.

Embora, sempre tendo em conta os limites da razão, não se deixou, porém, de desenvolver o seu poder (o célebre argumento ontológico de Santo Anselmo é um dos pontos altos dessa tendência) até o ponto em que a ciência pôde separar-se e voar segundo a sua própria lei. Foi aqui que o Ocidente perdeu de vista o Oriente “fanático”, o Oriente “donde vem tudo, o dia e a fé”, nas palavras do poeta.

Mas ainda hoje podemos verificar a justeza daquela passagem da carta de Platão. Sabemos que a boa fé e a ausência de malícia são indispensáveis para alcançar a verdade. A condição que se exige dum verdadeiro diálogo  é a mesma que praticamos connosco mesmos no nosso monólogo interior (ou no dois em um de Arendt). Não nos mentirmos nem nos deixarmos influenciar por outro interesse que não o da justiça, no seu sentido mais lato.

Usamos, por isso, dois critérios de verdade: um em relação àquilo a que chamamos, desde os Gregos, a Natureza, onde dominam as leis científicas e outro para o Homem onde prevalece a justiça.

Mas não deverá a justiça ser também critério da ciência?

sábado, 25 de dezembro de 2010

(José Ames)

O ADVOGADO DO DIABO

Pantagruel


“Por isso é coisa vil em extremo (a disputa contenciosa), e deixa-a a esses malandros dos sofistas, os quais nas suas disputas não procuram a verdade, mas contradição e debate.”


“Pantagruel” (Rabelais)



Thaumast verbera os que roubaram o instrumento da sua arte para dele fazer mau uso. Mas é nossa sina sermos encantados pelas palavras. A palavra é sempre mais do que comunicação.

Há, por exemplo, as pessoas que gostam de se ouvir e as que escrevem tão bem que o trabalho do estilo facilmente as desencaminha.

Se alguém disser, numa conversa, que vai fazer o papel de “advogado do diabo”, todos percebemos que vai deixar de se preocupar com a verdade e incorrer na vileza que Rabelais imputava aos sofistas. Mas, de algum modo, entramos no jogo, convencidos de que essa forma de argumentar vai ser útil ao apuramento da verdade.

Contudo, imaginamos o diabo a imitar o Cristo, mas nunca o contrário.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Tavira (José Ames)

CALVINO E OS ECONOMISTAS

Gonçalo M. Tavares


“Não sei dar nomes às coisas que vejo, mas posso contá-las.

Em vez de compreender ou explicar, contabilizar. Por exemplo, se naquele momento Calvino estivesse rodeado de várias coisas informes de que desconhecesse função e razão de existir, sempre poderia acalmar-se contando-as: uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito; oito coisas que não conhece. E esse número tão familiar: 8, acalmava. Um, dois, três… oito monstros. Nesta situação, temos pelo menos a contabilidade controlada, pensava Calvino.”

“O Senhor Calvino”  (Gonçalo M. Tavares)



Calvino, em vez de um tem oito monstros. Talvez não esteja mais adiantado para qualquer fim prático. Mas, como dizia Descartes, devemos começar por dividir a dificuldade…

Um sistema coerente consigo próprio corresponde, além disso, à ideia do máximo controlo possível. E quanto mais articulado, mais o mundo parece caber nele. Todos os modelos económicos seguem o mesmo princípio.

O Senhor Calvino está, pois, no caminho certo. E talvez esteja, aliás, mais avançado do que o economista porque sabe que está a lidar com monstros.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

(José Ames)


VARIAÇÕES DA FÉ




“Quando o Novo Testamento foi traduzido do Grego para o Latim por S. Jerónimo (c342/420), pistis tornou-se fides (“lealdade”). Fides não tinha forma verbal, assim, para pisteuo, Jerónimo utilizou o verbo latino credo, uma palavra derivada de cor do (“dou o meu coração”). Ele não pensou em utilizar opinor (“tenho uma opinião”). Quando a Bíblia foi traduzida em Inglês, credo e pisteuo tornaram-se “I believe” na versão do Rei Jaime (1611). Mas a palavra “belief” desde então mudou o seu significado. No Inglês Médio, bileven queria dizer “apreciar; valorizar; encarecer”. Estava relacionado com o Alemão belieben (“amar”), liebe (“amado”) e o latino libido. Portanto, “belief” originalmente significava “lealdade para com uma pessoa a quem se está ligado pelo dever ou por uma promessa.”

“The case for God”  (Karen Armstrong)




A diferença é de monta. E o que é que mostra esta translação do significado da palavra fé que parece, no entanto, ser o mesmo de sempre? Ela dá conta dum progressivo abandono do mundo religioso, em que crer era mais viver de acordo com uma certa prática ( e as ideias concomitantes), a favor dum mundo “secularizado”, em que a religião é apenas uma das opções. Mais importante ainda do que esta “especialização” do religioso é que ela já não se confronta com as outras “modalidades” no plano da prática, mas quase só no das ideias.

Hoje, uma pessoa considera-se católica mesmo se não é “praticante”, isto é, se não vive dum modo cristão. Como as ideias mais fortes, mais incorporadas, nos vêm da forma como vivemos, a ausência do ritual religioso tem enormes consequências. Assim, quando alguém diz que acredita num dos dogmas proclamados pela Igreja, exprime, talvez, um compromisso e uma lealdade (no sentido original da pistis), mais do que uma simples opinião. Mas por essa crença não ter qualquer influência na sua vida, isso não tem qualquer relevância.

É a espécie lealdade que todos temos em relação aos preconceitos.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Ravena (José Ames)

ADAPTAÇÃO




Desenvolvendo uma ideia de Raymond Aron, Veyne diz que “ a política não é uma troca, ainda que desigual, de quantidades homogéneas, ela é uma acomodação a situações heterogéneas.”. Uma consequência disso é que não é a justiça nem o interesse de classe  que têm a primeira palavra (já se sabia que não têm também a última).

A mudança tecnológica, por exemplo, tem efeitos imprevisíveis em muitas situações. Pode favorecer alguns interesses em prejuízo de outros e tornar mais ou menos equitativa a situação das pessoas.

Esta ideia duma necessidade objectiva criada pelos homens, independente da sua vontade, é, como se compreende, muito diferente da célebre “correlação de forças”. De facto, não se trata de levar a melhor, mas de adaptação. Duvido, porém, que a adaptação seja a essência do político.