sábado, 31 de maio de 2014

"Brooks at the sea" (José Ames)

POR UM APERITIVO GELADO

"A ouvir certos entendidos, a nossa colonização tornava-se cada vez mais penosa por causa do gelo. A introdução do gelos nas colónias, é um facto, tinha sido o sinal da desvirilização do colonizador. A partir daí, viciado no hábito do seu aperitivo gelado nas colónias, tinha que renunciar, ele, o colonizador, a dominar o clima pelo seu estoicismo apenas."

"Voyage au bout de la nuit" (Louis-Ferdinand Céline)

Depois da guerra, as colónias. Céline atinge a epopeia colonial com o seu vitríolo e deixa-a irreconhecível.

O regime da dissolução do europeu no álcool e no poder climático.

Como se a simples mudança de latitude despisse o colonizador das virtudes pátrias, da sua cultura e da sua humanidade.

O gelo torna-se, assim, o equivalente geral da frase grandiloquente.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Sem título

(José Ames)

 

O TRATADO

 

"O Tratado retira tudo à Alemanha, salvo o principal, a força política geradora de todas as outras [...] insensatos seriam os Franceses que contassem com a amizade do povo alemão tornado seu devedor, que não contassem mesmo, no vencido, com o desejo natural de rasgar um tratado que o obriga a trabalhar trinta ou cinquenta anos para se libertar da sua dívida."

(Jacques Bainville: 'Libres Propos')

Isto a propósito do Tratado de Versalhes, de 1919, que ditou à potência vencida, na sequência da Primeira Guerra Mundial, as condições humilhantes que incendiaram o facho nazi vinte anos mais tarde.

Sabemos como, a seguir, os piores vaticínios se cumpriram, com os horrores redobrados de outra guerra.

Apenas seis décadas depois, em plena 'pax europeia', parece que assistimos a um revanchismo germânico, comparativamente 'soft'. É essa nação, com as suas impressionantes virtudes, e os seus não menos impressionantes defeitos (que explicam em boa parte os primeiros sucessos do pintor falhado de Linz) que se encontra no pódio dos vencedores da Economia, é a Alemanha que agora impõe ao 'dolce fare niente' mediterrânico outras condições humilhantes para reparação da rapina dos seus bancos.

O passado não se pode largar na curva da estrada. Aqui, as guerras passadas parecem reclamar um prolongamento balsâmico para os antigos vencidos.

Mas não nos enganemos. A Economia, não menos que a força militar, nunca é um estado definitivo. O 'desejo natural' de rasgar o Tratado faz o seu caminho.

 

 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Sem título

Finisterra

 

OCIDENTE/ORIENTE


"Um só e mesmo gesto conduz-nos, numa mesma dinâmica, a raciocinar rigorosamente, a transformar com exactidão, justeza e fidelidade as coisas ditas físicas, e a decidir com medida e justiça, ter piedade do homem trágico - ecce homo -, aceitar o sobrevir do divino. O racional integra este gesto, e cai no criminal ou no corporatismo irrisório quando falta um só elemento a esta soma."

(Michel Serres)

 

Há uma tradição dualista, que se poderia chamar de cartesiana, que separa 'voluntariamente' a razão do sentimento (no sentido mais lato) e da intuição, tradição que, por exemplo, os trabalhos de António Damásio têm vindo a pôr em causa e, como se vê, o filósofo citado vai na mesma direcção.

Mas, na verdade, o dualismo é um método (como no 'Discurso do Método'), e não uma teoria do conhecimento, e é a ele (e à filosofia antiga da mesma linhagem 'idealista') que devemos todo o nosso progresso científico.

É o mesmo problema da 'aposta' pascaliana. Não podemos, decerto, provar a 'existência' de Deus, mas não foi isso que impediu que a respectiva crença tornasse o nosso mundo mais humano, para não dizer que o tornou possível.

Por outro lado, se obscurecermos o conceito da razão, poderemos aproximar-nos daquilo que o Oriente conhece desde sempre...

 

 

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Sem título

(José Ames)

 

O MECÂNICO E O ARTISTA

Pio XII

 

"Quando a SS tentou deter os 5000 judeus de Roma para os deportar para Auschwitz, 4000 encontraram refúgio em casas particulares, mosteiros e conventos, 477 deles no Vaticano."

Martin Gilbert ("A História do Século XX")

 

Este é um dos factos que sugerem qualquer coisa como o carácter de uma nação e aparentemente autorizam certas comparações. Por exemplo, a ideia de que os alemães são bons mecânicos e sobretudo disciplinados. Daí o seu gosto pela ordem e a sua 'seriedade' burguesa que, na sequência da guerra e da crise económica dos anos 20, os levaram à escravidão no III Reich. É verdade que os fizeram acreditar que pertenciam a uma raça de senhores que iria trazer uma nova ordem ao mundo.

Já o povo italiano seria um povo artista, inventivo e um pouco anárquico. Contudo, não se mostrou imune ao fascismo vociferante do Capo, um político desiludido com o socialismo. Mas quando se viu quem de facto passou a mandar em Roma e o próprio Mussolini se tornou num fantoche movido pela energia germânica, os descendentes do primeiro cesarismo, mostraram a sua natureza generosa e a sua faceta libertária.

É impressionante que a ambiguidade política atribuída por alguns ao Papa Pacelli tenha obscurecido o socorro prestado a meio milhar de judeus pelo Vaticano.

À Itália devemos o Renascimento e o Fascismo inspirado no antigo império da decadência romana. Mas o Dux acabou dependurado de cabeça para baixo e ninguém se lembra dele. Os césares que dominaram o mundo não são objecto de execração, mas motivo de glória e de histórias para a televisão e para o cinema.

A pintura do Quattrocento e do Cinquecento, essa, continua a deslumbrar-nos e a honrar todos os italianos com o título, talvez imerecido, de povo artista.


terça-feira, 27 de maio de 2014

Sem título

Leça da Palmeira

 

CLARIVIDÊNCIA

Nietzsche (Edvard Munch)

 

Dizia Nietzsche que "já não amamos suficientemente a nossa clarividência quando a comunicamos." A clarividência, então, só é útil para o mundo se tiver dois tempos: num primeiro tempo, é a dos caminhos solitários de Sils Maria, a dos cumes inóspitos, a do silêncio, enfim, longe do zumbido da colmeia humana. No segundo tempo, tal como no mito platónico, o cavernícola que cegou perante o sol da evidência deve regressar ao mundo das sombras para levar a 'boa nova' aos companheiros da caverna.

Ora, só sentirá essa necessidade de abandonar a 'verdade', de a trocar pelo dever de a comunicar, o filósofo, tal como o via o 'homem dos ombros largos'. Não o amor pelo outro, quando esse amor é que é a verdade, segundo o Evangelho.

Mas não oferece dúvida o facto de se perder algo de essencial na comunicação, no fundo, na conversão em história ou mito da clarividência do sujeito. E é outro belo mito pensar que o indivíduo é alguma coisa por si só.

A clarividência talvez nem esteja ao alcance dos humanos...



segunda-feira, 26 de maio de 2014

Sem título

(José Ames)

 

METAMORFOSES

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"A quantidade geral da violência mantém-se sempre igual na terra, enquanto os pensadores tomam o caos das suas metamorfoses por uma evolução."

("Tudo passa", Vassili Grossman)

 

Mas essa é uma das crenças que vale a pena sustentar. A de que o mundo evolui para uma situação de menos violência, por causa das comunicações, da tecnologia ou seja lá do que for.

Porque se eu sei que em consequência de uma lei da natureza ou da sociedade humana, não pode existir tal progresso e, como diria o Eclesiastes, tudo continua imutável 'debaixo do sol', não tenho refúgio contra o fatalismo.

Pior fatalismo, na verdade do que o do optimismo histórico, para o qual, com muita sageza, Marx encontrou a ideia do parto antecipado, através da luta de classes.

O que impede o outro fatalismo de ganhar os espíritos é que ninguém pode provar que exista sempre uma dada quantidade de violência no mundo. O século XX, porém, deitou por terra a esperança de que haja uma evolução contínua.

Só temos respostas novas porque temos problemas que nunca tivemos. A publicidade da Oracle para Java, a célebre linguagem de programação criada por James Goslin, diz que corre em 3 biliões de aparelhos, ou seja, quase metade da população do globo.

Isso não nos torna mais 'evoluídos' do que os filósofos da Luzes. Mas nenhum desses filósofos alguma vez pensou no nosso 'problema'.

domingo, 25 de maio de 2014


Museu Capitolino (Roma)

A DESPROPORÇÃO DO VÍRUS


Gilles Deleuze (1925/1995)



"Duma ou doutra maneira, a nossa época descobre a teologia. Não é preciso de modo nenhum acreditar em Deus. Procuramos antes a "estrutura", quer dizer a forma que pode ser preenchida pelas crenças, mas que não tem de o ser para que possamos dizer dela que é teológica. A teologia é agora a ciência das entidades não existentes, a maneira como essas entidades, divinas ou anti-divinas, Cristo ou anti-cristo, animam a linguagem e lhe formam esse corpo glorioso que se divide em disjunções."

"Logique du sens" (Gilles Deleuze)


Desde que o terrorismo deixou de ter como alvo exclusivo o poder estratégico e militar, sob as suas diversas formas, para atacar os símbolos, correctamente entendidos como o que melhor atinge o âmago que anima a carapaça, devemos perceber que tudo é militar.

E tratando-se de "quebrar a espinha" a essa parte mole, oculta nos refolhos duma pseudo-segurança e que por de mais confia nos efeitos especiais da tecnologia, todos os alvos são permitidos e o terror é a estratégia mais adequada, porque ataca o sistema com a desproporção dum vírus, ultrapassando todos os níveis de protecção.

A teologia do não-real e do não-existente cria a assassina disjunção do Nós ou Eles.

Deixemos que só o terrorismo caia nessa armadilha da lógica.

sábado, 24 de maio de 2014


(José Ames)

CLOACA MAXIMA

www.murrayarmstrong.com

"Era nesse subterrâneo que eles iam fazer as suas necessidades. Fiquei logo a saber com o que contar. E a coisa até se passava numa sala de mármore. Uma espécie de piscina, mas esvaziada de toda a sua água, uma piscina infecta, invadida apenas pela luz filtrada, amortecida, do dia que ali vinha acabar sobre os homens desabotoados no meio dos seus odores e basto vermelhos de puxar a sua sujeira diante de toda a gente, com ruídos bárbaros.

Entre homens, assim, sem formalidades, perante o riso dos que se encontravam em volta, acompanhados dos encorajamentos que se davam como no futebol."

"Voyage au bout de la nuit" (Louis-Ferdinand Céline)

Lembro-me que em Kafka ("America") há uma cena semelhante. A felicidade deste convívio excrementício aproxima dos antigos romanos estes americanos do período da construção do seu império .

Em Éfeso, na Ásia Menor, o turista pode imaginar o convívio dessas latrinas, em que os senhores se sentavam, tão seguros da sua superioridade que nenhum problema de "imagem" se punha perante os seus escravos, a quem, aliás, encarregavam, uns minutos antes de lhes irem aquecer os assentos.

sexta-feira, 23 de maio de 2014


Vila do Conde

DEATH COUNTRY




Ao ver num filme de 1950, de Nicholas Ray ("In a lonely place"), Humphrey Bogart e Gloria Grahame puxarem tranquilamente do cigarro, servindo-se dele como um subterfúgio no amor, cabide de atitudes, pausa deceptiva e sei lá que mais, tenho de admitir que alguma coisa boa vai desaparecer com o tabagismo.

O tempo do cinema é já outro, com estes heróis abstinentes do fumo, mas não necessariamente de outros narcóticos, invisíveis na tela e talvez menos poluentes.

O cigarro no filme negro é como que o ectoplasma da actividade cerebral e a expressão da universal camuflagem.

Dito isto, devo acrescentar que não tenho qualquer tolerância em relação ao fumo que me obriguem a engolir.

E poesia, claro que há no cigarro, mas também, como se sabe, na morte.

quinta-feira, 22 de maio de 2014



(José Ames)

O PROGRESSO

http://www.greenbookblog.org

"O estudo da 'mão fria' mostrou que não podemos confiar plenamente em que as nossas preferências reflitam os nossos interesses, ainda que sejam baseadas na experiência pessoal e ainda que a recordação dessa experiência tenha sido obtida no último quarto de hora! Os gostos e as decisões são moldados pelas recordações e as recordações podem ser erradas. A evidência apresenta um profundo desafio à ideia de que os seres humanos têm preferências consistentes e que sabem como maximizá-las, uma pedra angular do modelo do agente racional."


(Daniel Kahneman)


Preferimos manter a mão no gelo, desde que a temperatura vá aumentando, mesmo ligeiramente, a tirá-la de uma vez. Quer dizer, prestamos mais atenção ao pico da dor e ao fim dela, do que à sua duração ('peak-end rule').

Kahneman conclui que somos maus avaliadores do nosso próprio interesse, e lá se vai a 'teoria dos jogos' que confia nas escolhas racionais do indivíduo.

Mas se partirmos do princípio contrário, de que essas escolhas pouco têm a ver com a razão (para não dizer que são irracionais, o que seria um manifesto exagero), então justifica-se a regra da menoridade política dos 'cidadãos'. Já o primeiro dos filósofos considerava necessário contar histórias ao povo, em vez de se pretender que compreendesse a verdade.

Essa tradição, de facto, é muito antiga, e o próprio Evangelho recorre de preferência ao discurso por parábolas. A teoria da vanguarda política é um exemplo muito mais próximo. É a eternização da célebre desculpa de Salazar: o povo não está ainda preparado para a democracia.

Mas, afinal, a democracia é uma regra e não uma teoria da verdade. O importante é que o jogo seja aceite por todos (ou pela maioria) e que dele faça parte a possibilidade de destituir o governo, sem derramamento de sangue (como dizia Popper). Quem espera que a 'vontade popular' seja directamente expressa nas decisões da elite política não vive neste mundo.

O Grande Animal (expressão platónica) não tem condições para governar e, como colectivo, só pode 'agir' passionalmente.

A psicologia e as 'ciências humanas' estão, por isso, na linha da frente da desmitologização do indivíduo criado por um mais do que duas vezes centenário Iluminismo. A economia é o território mais 'Iluminado ' desse combate.

A questão que se coloca é, então, o que é que podemos considerar um progresso em relação ao individualismo das Luzes?

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Sem título

Salgueiros (José Ames)

 

O ENVOLVENTE

Michel de Montaigne

 

"Para quem não moldou, pelo todo, a sua vida com vista a um certo fim, é impossível dispor as acções particulares. É impossível alinhar as peças, a quem não tem uma forma do todo na cabeça. Para que serve a provisão de cores a quem não faz ideia do que pintar?"

Michel de Montaigne ("Essais", Livre II)

 

Parece o bom-senso mesmo e ir ao encontro do que diz Platão: a ideia da mesa precede a execução. Mas hoje podemos ver as coisas de outra maneira. O exemplo mais à mão é o da arte. Muitos poemas começam pelo encontro de duas palavras, por um som ou uma imagem, sem qualquer ideia de como tudo vai concluir. A pintura pode cingir-se à paleta e encontrar nisso uma regra estimulante, como a rima de um verso. E a primeira cinzelada pode mudar a ideia prévia, o que se soma à 'disciplina' da própria pedra.

Então a vida de qualquer um de nós é a demonstração viva de que não sabemos por onde vamos, nem para onde ( a morte não é destino nenhum por falta do viajante). Um poema segundo a lógica não é poesia, e uma vida de acordo com um plano tão-pouco é vida.

Não é tal, porém, que obsta a que a razão e o 'bom-senso' possam defender o contrário disso. De facto, o racionalismo é 'auto-justificante', isto é, não depende dos valores.

A ideia da centralização absoluta, por exemplo, é o que há de mais racional. Daí todos os planos quinquenais para introduzir na economia mais eficiência e justiça. O resultado foi mais do que contraproducente, o que levou o líder chinês Zhao Ziyang, em 1987, a declarar que a planificação já não seria considerada "como a natureza do socialismo". ("On China", Henry Kissinger)

É que não existe uma ideia do todo na complexidade social que corresponda à realidade ( embora seja sempre preciso uma ideia qualquer ). Nem se trata aqui de alinhar as peças de um tabuleiro.


 

terça-feira, 20 de maio de 2014

Sem título

(José Ames)

 

OS DOIS QUAISQUER

Hua Guofeng

 

" A principal contribuição de Hua (Guofeng) para a teoria política chinesa pós-Mao foi a promulgação por si em Fevereiro de 1977 do que viria a ser conhecido como o "Dois Quaisquer": "Defenderemos resolutamente quaisquer decisões políticas que o Presidente Mao tenha tomado, e seguiremos de forma inabalável quaisquer instruções que o Camarada Mao tenha dado."

Henry Kissinger ("On China")

Hua Guofeng foi o sucessor de Mao na presidência do PCC. O 'seguidismo' das suas palavras surpreendem se forem tomadas como uma declaração política. É impossível cumprir esse programa, e o próprio Mao teria de 'baixar os braços'. Supondo que todas as suas decisões e instruções estivessem registadas, seria um quebra-cabeças procurar nelas a regra de uma conduta 'inflexível'.

O que fez Hua foi uma manifestação de fé que não olha a detalhes como as contradições e os erros clamorosos do Grande Timoneiro, no momento em que a China se preparava para 'virar a página' e embalsamava o pai da revolução no seu mausoléu. Esse optimismo desesperado fazia parte das homenagens oficiais e, na prática, aplanou o regresso ao poder de Deng e a sua nova política.

Ninguém pensou em caricaturar o discurso de Hua numa espécie de "Conde de Abranhos" à moda chinesa. Um povo que ensinaram a brandir o célebre livrinho vermelho e a endeusar o seu autor tinha de guardar as suas distâncias em relação à ironia. E a censura não nos permitirá nunca perceber esse dilema.

 

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Sem título

Leça da Palmeira

 

O ENCANTO PERNICIOSO

 

"Alguns dos seus vizinhos trocaram olhares, e um deles - uma dessas pessoas mal-educadas que sempre encontramos no estrangeiro - inclinou-se para a frente sobre a mesa e de facto intrometeu-se na discussão. Disse: 'Eu tenho uma vista, eu tenho uma vista.' Miss Bartlett ficou alarmada. Normalmente, numa pensão, as pessoas olhavam para elas durante um dia ou dois antes de falarem, e muitas vezes achavam que não o deveriam fazer até se terem ido embora."

E.M. Forster ("Room with a view")


A 'boa-educação', como se vê nesta peripécia do encontro de Lucy com a Itália, faz parte do sistema imunitário das nações. O viajante pode deixar o país com o sentimento de que perdeu algo de importante, por não abandonar, nem por um momento, o protocolo 'sanitário', mas então já será tarde.

Não foi o caso desta jovem inglesa que (era uma mudança de época nos costumes) cedeu, como o autor diz, ao encanto pernicioso de Itália e "começou a ser feliz". O que o romancista quer dizer com isso é que Miss Hobeycomb voluntariamente se esqueceu do que lhe tinham ensinado até ali, para se entregar, de alma e coração, à sugestão de uma cultura antiquíssima que parecia liberta miraculosamente da sua história, para responder à infinita expectativa de um coração jovem.

Claro que o resto da história, com o regresso a Inglaterra e o anunciado casamento fecha o parêntesis romanesco e a 'boa-educação' volta a impor-se.

O mito de Itália, como paraíso da arte e do saber-viver, foi a vacina de que Miss Honeycomb precisava para incarnar, a 'persona' que desde o início lhe estava destinada. A nostalgia dessa liberdade de prazeres e sentimento não é, afinal de contas, muito diferente de outras 'peles' que mudamos, a começar pela da juventude.

domingo, 18 de maio de 2014

Sem título

 

(José Ames)

 

O QUE SE ARREPENDE

 

"O homem que se arrepende é imenso. Mas quem é que quereria hoje ser imenso sem ser visto?"

(Chateaubriand em "La vie de Rancé")

A razão principal por que o arrependimento não nos torna 'imensos' é que quem se arrepende, quase sempre, já não é o mesmo que cometeu a 'falta'. Porque o arrependimento na hora revela sobretudo a nossa fraqueza, coisa que, por exemplo, um político não se pode permitir. E entre ser justo, mas parecer fraco, e mentir, mas parecer forte, a escolha está feita de antemão.

O povo diz que "palavra de rei não volta atrás". Em todos os seus departamentos, mesmo no degrau mais baixo, o poder não gosta de voltar atrás com a sua palavra. Como isso é impossível de conseguir no ambiente da política, onde se promete o que não pode ser cumprido, ou se sai de um aperto de campanha com palavras ocas, só para afastar as 'traças' que se aproximam de uma aura de empréstimo, faz-se um pacto não muito secreto com a mentira. A política é o lugar onde a distinção entre a verdade e a mentira é relativizada face aos fins partidários ou pessoais do mentiroso.

Mas é preciso compreender a intenção do autor do "Génio do Cristianismo". O homem que se arrepende é o mesmo que comete pecado "não sete, mas setenta vezes sete" por dia, e de cada vez, se for sincero, é perdoado. É imenso, de facto, como a sua 'impessoalidade'.


 

sábado, 17 de maio de 2014

Sem título

 

Lisboa, Abril de 2014