quinta-feira, 30 de junho de 2011

Cuenca (José Ames)

AVALANCHE



“Assim, pois, as avalanches fazem-se algumas vezes por meio de um calhau do tamanho da ponta do dedo.”

“Lorenzaccio” (Alfred de Musset)



Mas experimente-se provocar uma avalanche sem a massa que está suspensa desse imponderável. Sem a acumulação da pedra, nenhum calhau tem esse poder.

Há um modo de ver a história em que só se distingue o último calhau e, para o bem e para o mal, os acontecimentos ficam associados a um nome.

O que quer dizer então que não há homens de estatura na presente crise europeia? Que é precisa ainda alguma pedra ou neve para desencadear a avalanche.

Uma vez disseram-me que a Revolução era como um comboio que se podia perder, se não estivéssemos vigilantes. Que imodéstia! Como se pudéssemos escapar-lhe, se esse comboio fosse real…

quarta-feira, 29 de junho de 2011

(José Ames)

O EXÍLIO

Golfo Zuiderzee

“Onde estava o isso passa a estar o eu.’Trata-se de um trabalho cultural como a drenagem do golfo Zuiderzee.’”

(Freud, citado por Hans-Martin Lohmann)



O eu é a perspectiva. Pensar sem perspectiva é um estado de graça. Mas que progresso, de facto, haver, em vez do nada, um sujeito!

Mas este eu parece-se muito com a ideia hegeliana da astúcia da Razão, ou com a da eficácia da inexistência dos deuses, de que fala Gonçalo Tavares. Corresponde a uma apropriação do mundo que nos desapropria. Pagamos um preço pelo nosso poder, o de compreender a natureza, como avatar do ser, e o de transformar o mundo, como meio de nos transformarmos a nós próprios. Esse preço é o exílio do que verdadeiramente somos.

E o mais urgente sempre foi viver a simultaneidade do ser e do exílio e o de encontrar um caminho de ida e volta.  

terça-feira, 28 de junho de 2011

Ericeira (José Ames)

A HIPOTECA DA AMBIGUIDADE

Gonçalo Tavares



“Nunca se fala o suficiente da forma como se hipoteca a ambiguidade quando se diz sim ou não, e quais as consequências dessa hipoteca.”

Gonçalo Tavares (“Uma viagem à Índia”)



A ironia desconcertante do autor de “Jerusalém”, quando nos colocamos no plano da ética, deixa de surpreender-nos no mundo dos anti-heróis, navegando no mar do “nosso sublime ou apenas trivial e universal, anonimato”, como diz Eduardo Lourenço, onde a única transcendência é a “in-transcendência” e “onde os ícones são mais visíveis do que os ‘homens’” Aqui, por que é que a ambiguidade não seria… um valor? De resto reversível no seu contrário, se carregássemos na tecla da epopeia.

A política é, hoje, o lugar onde esse “valor” mais parece hipotecado. Não se pode fugir ao sim e ao não, mas apenas para revelar a contradição como modo de pensamento.

Gonçalo Tavares pergunta, a certa altura, se o início do mundo se pode localizar em quem é empurrado. Quando, por força do ofício, se tem que insistir no registo  “épico”, a verdade tem a forma do empurrão.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

(José Ames)

A ACELERAÇÃO DA HISTÓRIA

http://www.wunderground.com/data/wximagenew


“A história, acelerando-se, abriu o fosso entre o homem e o real, entre o homem e o homem.”

Michel Meyer (“Les Rhétoriques du XXe siècle”)



A principal causa dessa aceleração parece ser o desenvolvimento da tecnologia. A imprensa, e electricidade ou o computador anularam a distância e multiplicaram os contactos de forma exponencial.

Para o observador de Sírius, a certa altura, a colmeia humana começou a fazer um zumbido ensurdecedor, e os movimentos, de tão rápidos, deixaram de apresentar as formas individuais. Assim nos surge uma auto-estrada cheia de traços de luz em vez de carros, em algumas fotografias com pouca luz e velocidade do obturador mais baixa. É como se estivéssemos em vias de construir uma outra integração e um novo ser.

Isto parece contradizer a ideia do fosso, mas o real nunca foi o não-humano (estivemos sempre dentro da “nuvem” humana) e a única distância é a de homem para homem, com aceleração ou sem ela.

domingo, 26 de junho de 2011

Arronches (José Ames)

VIAGEM À ÍNDIA



“A nossa fabulosa aventura foi sempre sem sujeito como os gregos já sabiam. Mas agora navegamos pela primeira vez e a sério no mar do nosso sublime, ou apenas trivial e universal, anonimato.”

“Eduardo Lourenço no prefácio a “Uma Viagem à Índia” de Gonçalo Tavares)


Os gregos sabiam que os deuses tramaram Édipo ( Ele tudo fez para evitar a tragédia, apenas para melhor cumprir a profecia). Isso não o “libertou” do seu destino, como o faria a psicanálise reconhecendo a origem do trauma.

Quando se acolhem  o contexto social e as circunstâncias psicológicas no tribunal, procede-se como se, de facto, não existisse sujeito e a condenação, nessa medida, fosse injusta. Bloom, a personagem da anti-epopeia de Gonçalo Tavares, “não está disposto a vazar os olhos por um pecado de que não é sujeito.” (ibidem)

Ora, se a nossa viagem à Índia não foi fruto da vontade de nenhum  herói, se foi uma “gesta colectiva” como a mitologia do Estado Novo a apresentou, o seu sujeito é Portugal.

Mas hoje, desfeita essa mitologia, pode dizer-se  que a viagem não teve sujeito ou que o perdeu. E não há deuses para nos tramarem. Ou, como diz Gonçalo Tavares,

“os deuses actuam
Como se não existissem,
E assim
Não existem, de facto, com extrema eficácia.”

Isto é, somos tramados à segunda potência.

sábado, 25 de junho de 2011

(José Ames)

ER, O PANFÍLIO



“Se não houvesse injustiça, ignoraríamos até o nome da justiça.”

Heráclito



No terrível lugar onde se encontra Er, o Panfílio, personagem inventada por Platão no final da “República”, as almas separam-se, indo os bons para o céu e os maus para as profundas, numa antecipação do Vale de Josafat de que fala a Bíblia.

Pela máxima de Heráclito, os “bem-aventurados”, todos justos entre eles, e tendo perdido até a lembrança do que seria o mal, ignorarão a própria justiça. Enquanto os “desventurados”, a quem couberam as penas eternas, pelas mesmas razões, ignorarão a causa de terem ido parar ali.

Mas os mitos foram criados para os mortais, que vivem uns com os outros e que até no seu foro íntimo desconhecem a separação do justo e do injusto.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Ovar (José Ames)

O NOBEL DA ECONOMIA É PERIGOSO?



“Na natureza nunca repetimos o mesmo movimento. Em cativeiro (no escritório, no ginásio, nas deslocações quotidianas, no desporto), a vida não é mais do que uma sequência de danos de stress repetitivo. Não há nenhuma casualidade.”


(Nassim Taleb, citado in Il Sole 24 Ore)



Taleb, que advoga a abolição do prémio Nobel da Economia porque as teorias económicas podem ser devastadoras, não deveria estar mais de acordo no caso de Milton Friedman, em quem alguns vêem o arquitecto da desregulação total cujos efeitos ameaçam hoje a nossa soberania e a de outros países.

Mas não estou certo de que não abrisse uma excepção para este Nobel, dada a sua oposição às directivas de “cima para baixo” na economia, o que o keynesianismo e qualquer intervenção do Estado são claramente.

Como se entende pela citação, Taleb acredita numa lei ao nível do orgânico e do micro-social que se poderia confundir com a ideia duma catástrofe programada. O que quer que façamos condena-nos ao plano da “Providência”.

Não sei se isto não corresponde, em economia, ao regresso encapotado da “Mão Invisível”.