terça-feira, 31 de janeiro de 2012

(José Ames)

O ROSTO DO FBI



A função determina o órgão ( e o contrário também é verdade, até certo ponto). Era preciso um homem afectivamente disfuncional, eriçado contra o seu próprio corpo e preso de corpo e alma na órbita materna, para organizar e centralizar  a investigação criminal americana, com a  paixão maníaca necessária.

É claro que Hoover ajudou a pôr de pé uma outra América, a do Estado da superpotência, no que foi muito ajudado por todo o tipo de extremismos e de desordem, em que via, sobretudo, o espírito anti-americano.

Mas o filme de Eastwood é muito mais do que a história do FBI. Sem a íntima fraqueza do homem que esteve à frente dos destinos da organização durante várias décadas e atravessou sucessivos mandatos presidenciais, sem o caso de amor frustrado, mas vivido no próprio impasse, com o seu "braço direito" Clyde Olson, não teríamos o seu dinamismo essencial.

DiCaprio passou por uma metamorfose impressionante para nos dar o sabor último da frustração e da derrota, no momento mesmo em que as homenagens fazem dele passado, e o novo empossado, conhecido por Tricky Dicky, o considera,  para os próximos, um "looser" e um empecilho aos seus planos de dominação.

Em entrevista, o actor que encarna a personagem, diz que Hoover foi "um bom americano". Com todos os seus defeitos, que Clyde é o único a confrontar, o rosto do FBI durante 36 anos é bem a imagem dum pobre homem apanhado na voragem do poder. E a sua única "tábua de salvação", a sua oportunidade de redenção é aquele amor inconfessado, perseguido pela maldição materna.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

No comboio (José Ames)

A ARTE SEQUESTRADA

Henri Barbusse


Depois de ler, no "Expresso", a entrevista de António Pinho Vargas, em que ele fala da situação dos criadores de música "contemporânea", divorciados da sociedade  e dependentes das instituições culturais, como outrora os compositores o estavam dos príncipes, deparo-me com esta citação de Henri Barbusse, incluída na vida de Picasso de Wilfried Wigand: "O florescer da pintura contemporânea em França tem como primeiro objectivo a criação de valor para os negociantes de arte, como acontece com os proprietários de minas, caminhos de ferro e bancos."

A "Cultura" ao mesmo tempo que presta uma homenagem ao espírito criativo, salvando esses compositores, nem que seja por um único contacto com um avatar do público, de inteiramente comporem "para a gaveta", não é menos interessada do que aqueles negociantes que até podiam execrar a pintura do malaguenho, mas não deixavam de se entregar à "acumulação primitiva" adquirindo os seus quadros para os chorudos negócios do futuro.

Tais "homenagens" geralmente configuram um período de decadência. É o que se passa com o investimento das câmaras municipais em vistosas bibliotecas numa altura em que os leitores se procuram à lupa.

Embora tudo isto seja um sinal dos tempos de mudança tecnológica, é-o também das debilidades da nossa democracia. Os produtos formatados para as massas, que têm além do mais o inconveniente de obedecerem à norma do império anglo-saxónico, condenam o que é mais genuíno e mais relevante para o espírito a uma espécie de sequestro.

Nos EUA, parece que só há democracia com campanhas milionárias. A arte, entre nós, tem a mesma fraqueza.

domingo, 29 de janeiro de 2012

(José Ames)

SEGURANÇA

"Sentry" (http://itairose.com/tag/marvel-comics/)



"Os funcionários da fé regularmente pagos pela comunidade não permitem que se brinque com os regulamentos."

"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)

O rendimento dum homem explica muito do seu pensamento. Nem é precisa a má consciência. De tão longe quanto é possível à atalaia do nosso instinto de sobrevivência ( mesmo na sua forma menos dramática ), contornamos o exército dos argumentos contrários, de modo a que nem sequer cheguem à consciência.

E quando não é possível contorná-los, saímos armados dos pés à cabeça para o encontro. Na irritação duma pessoa, perante uma ideia nova, por exemplo, podemos distinguir o tilintar do metal.

Se me perguntarem se isso é bom, eu diria que, sem isso, seríamos verdadeiros cataventos, sem ideias próprias e desinteressadas, no mau sentido. Os interesses são uma amarra que nos prende à terra e cuja resistência é necessária para qualquer voo de alma.

Por isso, não me choca que todos os funcionários, estejam eles na Igreja, no Estado, num partido ou num sindicato, não gostem que se discutam os "regulamentos".

Os regulamentos parecem coisa de somenos, e são-no para os outros, mas para os que deles dependem fazem parte da sua segurança. E a segurança não é coisa menor, porque, como dizia Alain, até o tirano precisa de quem vigie enquanto dorme.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Antas (José Ames)

A DECLARAÇÃO


 
"E, apesar disso, esta simples página impressa, que pesa mais do que bibliotecas e que é mais forte do que os exércitos de Napoleão, não é obra de espíritos superiores, nem tem a marca da garra do leão. O selo da clareza Cartesiana está ali, mas sem a lógica, a precisão, a inteireza do pensamento Francês. Não há nela  indicação de que a Liberdade é o objectivo, e não o ponto de partida, isto é uma faculdade para ser adquirida, e não um capital para investir, ou que dependa de inumeráveis condições, que abrangem toda a vida do homem. Por isso, é justamente acusada de defeituosa e os seus defeitos têm representado um perigo e uma armadilha."

 
"Lectures on the French Revolution" (Lord Acton)

 
A página em causa é a "Declaração dos Direitos do Homem". "A Declaração passou no dia 26 de Agosto, depois dum debate apressado e sem ulterior resistência. A Assembleia que tinha abolido o passado no princípio do mês, tentou, no final, regular o futuro." (ibidem)

De facto, o "processo revolucionário" tem sempre carácter de urgência, como dizia Daniel Filipe, a propósito do amor.

Já foi um grande progresso o texto original, de Lafayette, ter sido reduzido à sua forma "ilógica e imprecisa" nas palavras de Acton. A Declaração começa por um apelo a Deus, o que a tornou logo exportável para a América puritana que, ainda hoje, invoca Deus nos seus dólares.

No entanto, com todos os defeitos que lhe podem ser assacados, essa folha de papel mudou o mundo para sempre. Outra questão é perguntarmo-nos por que é que um discurso cuja ideia mais insistente é o princípio da igualdade convive, sem qualquer embaraço, com a desigualdade extrema.

Uma primeira abordagem pode levar-nos a dizer que aquela insistência teve um carácter temporário e de ocasião ( tratava-se, apesar de tudo, de acabar com o Privilégio aristocrático) e que são precisamente os defeitos apontados por Acton que lhe permitem, hoje, suportar a contradição dos factos.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

(José Ames)

TUDO É NÚMERO



"A ideologia das modernas sociedades parlamentares, se a tiverem, não é o humanismo, os direitos do sujeito. É o número, o contável, a contabilidade. Espera-se de cada cidadão que seja conhecedor dos números do comércio externo, da flexibilidade da taxa de câmbio, dos desenvolvimentos do mercado de acções. Estes números são apresentados como o real por meio do qual outros números são processados: números do governo, das votações e das sondagens de opinião. Aquilo a que se chama a 'situação' é a intersecção da numerabilidade económica com a numerabilidade da opinião."
"Numbers" (Alain Badiou)


Percebe-se que não é o "tudo é número" pitagórico que aqui está em causa. Pelo tom, adivinhamos que o moralismo não anda longe.

E, no entanto, por que deveríamos estranhar, com o número, o império do económico, a "última instância" que determina tudo o resto?

Decerto não vivemos em tempos românticos para supor que as sociedades modernas se sustentam em valores sentimentais e que a nossa intuição pode lidar com a "estática e a dinâmica" das grandes organizações, enfim, com esse mundo global da velocidade electrónica.

Na incerteza, no perigo, recorremos sempre à simplificação militar. Não é o exército a própria imagem do homem feito número? É o que significa, certamente, o moderno "tudo é número" ( ou melhor, tudo é dinheiro ).

Fizemos todos, com alguma idolatria da ciência e da tecnologia, a aprendizagem necessária para entendermos doravante a sociedade como um sistema artificial, regido pelas leis que qualquer "técnico" em ideologia de massas lhe queira atribuir.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Bath (José Ames)

MISANTROPIA

(Baudelaire)

 
"É devido a uma incompreensão universal que todos concordam. Porque, se por azar, as pessoas se compreendessem umas às outras, nunca estariam de acordo."
(Charles Baudelaire)

Misantropo, o autor das "Flores do Mal"? Nem tanto. Basta pensar que a "simplificação" do que na realidade é sempre mais complexo do que aquilo que possamos julgar é a forma de nos entendermos.

Karl Popper explica como a própria física que julgamos mais simples do que os factos sociais, é na verdade mais complexa porque, em princípio, não deveria conter nada de humano, enquanto alguma racionalidade existe sempre no social, algo que é próprio de nós e que podemos melhor compreender. O sucesso da física fica, pois, a dever-se a à drástica "simplificação", para os nossos fins, a que temos de submeter os dados físicos que, afinal, mais do que complexos são transcendentes.

Pelo contrário, na sociologia, avançamos pouco, não por causa de qualquer transcendência mas devido à sua real complexidade. Mas a nossa solução é sempre a mesma: simplificar.

O que se passa, no espírito do outro nunca o poderemos saber ( e ele próprio, até certo ponto, não o sabe). Digamos que compreender o outro para além dos seus actos ( e das suas palavras) é impossível e até inútil para os fins duma sociedade.

Basta por isso que estejamos de acordo no primeiro grau.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

(José Ames)

NOVAS TATUAGENS

Rooney Mara


O primeiro enigma em "The girl with the dragon tattoo" é saber o que terá levado David Fincher a fazer, talvez, o primeiro 'remake' dum filme recente e tão perfeitamente conseguido ( o do dinamarquês Niels Oplev ).

É verdade que o tema é congenial ao autor de "Seven". Mas em que é que o cinema ganhou com isso?

Pergunta ociosa, em face da força do estilo. Talvez a aposta de Fincher fosse a de superar Oplev, provando que a perfeição não existe e fazendo um filme pessoal com o guião dum outro que, porventura, terá "demasiado" seguido o romance de Stieg Larsson...

E é como a mesma ópera dirigida por maestros diferentes e cantada por diferentes vozes. Mérito também do "libretto" que se presta a sucessivas interpretações. Rooney Mara não faz esquecer Noomi Rapace, e é estupenda.

A história de Martin Vanger (Stellan Skarsgard), o "homem que não gostava das mulheres"  e do império económico que dirige, depois do pai, apresenta, pelo seu lado, uma conhecida característica do regime nazi que é o da incompatibilidade entre os objectivos políticos ( o extermínio dos judeus, aqui substituído pelo assassínio em série de mulheres, de acordo com a geografia da empresa) e os da produção económica.

Isto é, a denúncia dum certo capitalismo por parte da revista Millenium, encabeçada por Mikael Blomkvist (Daniel Craig), continua através da revelação dos crimes da família Vanger, quase se confundindo a "especulação" e a "lavagem do dinheiro" com a irracionalidade do auto-canibalismo sexual.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Manhouces (José Ames)

A PERSPECTIVA

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"Bem entendido, não há um único especialista hoje que faça depender as suas controvérsias das da teologia e da filosofia, mas sob a forma de perspectivas, quer dizer, vazias como o espaço e, não obstante, como ele encaixando os objectos, essas duas rivais na corrida às últimas verdades em todo o lado se imiscuem na óptica dos especialistas."
 
"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)


É natural, afinal de contas, que Musil recorra à óptica para dar uma ideia da "visão do mundo" que até o mais gongórico dos especialistas precisa de ter para "explicar" como o objecto da sua ciência se enquadra no mundo que o rodeia.

Ora, esse mundo, ou antes, essa perspectiva, visto que não temos meio de o fixar na sua "integralidade", enfrenta os mesmos problemas que estão na origem da metafísica e do filosofar. Nesse aspecto, Einstein não está mais avançado do que Newton, como Descartes o não estava em relação a Platão.

Temos agora uma perspectiva mais adequada à percepção dum mundo mais complexo. Mas não se pode considerar o aumento da complexidade ou uma maior percepção dela como um verdadeiro progresso, senão relativamente à eficácia da nossa integração no mundo.

Mas não é certo que em determinadas épocas não tenhamos atingido, nesse estado, um menor grau de imperfeição.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

(José Ames)

A ARISTOCRACIA EXANGUE



"'Ora este sujeito!', pareciam dizer uns aos outros. 'No fundo, não sofre de nada. Mal tem o direito de estar aqui. Nem sequer tem cavernas...' Tal era o espírito que reinava no sanatório; era aristocrático à sua maneira e Hans Castorp inclinava-se diante dele, por um inato respeito à lei e à ordem, fosse qual fosse a sua natureza.»

"A Montanha Mágica" (Thomas Mann)

Neste exemplo, vemos como não é necessária qualquer vantagem material, ou de ordem física ou intelectual, para se ter um sentimento de  superioridade. 

Aqui a "aristocracia" é um produto da organização do sanatório de Davos, tal como é descrito no romance, e, infalivelmente, esse sentimento se desvaneceria no indivíduo isolado, que é o que acontece, por exemplo, num hospital com as relações de doente para doente. Quanto ao pessoal e aos médicos, nem mesmo nessa Davos mítica, seria concebível que o doente concebesse outra coisa que uma espécie de temor sagrado.

Esta aristocracia da doença só funcionava em relação aos que não estavam mesmo mal e,  por assim dizer, já condenados. Embora se possa objectar que o sentimento da morte não é o mais propício a segregar ideias de desigualdade, não é absurda a ideia de que os próprios cuidados que esse estado inspira devem, até certo ponto, ser "merecidos" com a iminência da morte.

Transposto para a política, isto parece-se muito com o direito que "as duras provas" e o heroísmo passado subjectivamente conferem a alguns homens que chegam ao poder para imporem uma espécie de resgate do seu passado. E esse é um escolho inevitável para uma democracia sem parto natural.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Cáceres (José Ames)

A FRAQUEZA DE PIERRE



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"(...) 'além disso,' pensou, 'todas essas 'palavras de honra' são coisa convencional, sem significado definido, especialmente se uma pessoa considerar que amanhã pode estar morta ou que alguma coisa de tão extraordinário poderá acontecer que a honra ou a desonra serão tudo o mesmo.' Pierre, era muitas vezes indulgente com reflexões deste género que anulavam todas as suas decisões e intenções. E foi a casa de Kuragin."




"Guerra e Paz" (Leão Tolstoi)




Tolstoi considera a personagem ( sem dúvida com alguns traços dele próprio, em relação, por exemplo, ao seus instintos "genesíacos") como uma pessoa fraca. Mas é Pierre que procurará, em vão, um ideal na loja maçónica e que vai conceber o plano de assassinar Napoleão.


A promessa feita ao príncipe André era pouco mais de uma palavra para quem tinha uma tão pobre ideia de si próprio para opor à força dos seus maus hábitos.


Não tinha, como Dolohov, apesar deste ser pobre, a paixão do orgulho a imprimir-lhe uma direcção. A virtude não se planta no ar, e o que Pierre fizera de si era terreno mais propício a deixar-se conduzir por uma vontade mais forte e a cair na armadilha do seu casamento com a mais fútil das mulheres do seu meio.


Por este exemplo se vê que há paixões úteis (ou tornadas úteis, como diria o Descartes do "Tratado"). E a fraqueza desta personagem resulta de, até ali, ter feito tudo o que queria (regressara, havia pouco, do estrangeiro) e de ter as anémicas paixões de quem nunca encontrou resistência.


sábado, 21 de janeiro de 2012

(José Ames)

RESPONSABILIDADE



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jamesnava.com



"Decidir-se por tomar a responsabilidade por alguma porção do mundo na ausência dum fundamento metafísico convincente é parte do que significa crescer nele."



(Susan Neiman)




Nenhum "fundamento metafísico" seria suficiente, de facto, para motivar uma tal decisão. É o estar já no mundo, com uma identidade, que nos obriga à coerência. 



Tomar, nesse sentido, a responsabilidade, é não trair o sistema de crenças de que fazemos parte.



Para alguém que já está assim motivado, a metafísica daria, certamente, asas para voar mais alto. De resto, é o que acontece com a religião pensada.



A religião "natural" é apenas outro nome para aquele sistema de crenças. Por isso é que o antropomorfismo é a religião natural.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Toledo (José Ames)

A LUZ AO FUNDO DO TÚNEL





"Passante do futuro, sabe que nós vivemos aqui como sub-homens, mas orgulhosos ainda assim por edificarmos um mundo que não conhecerá jamais o inferno da prisão."

Esta mensagem, entre muitas, foi gravada  na rocha, em 1949,  por um dos prisioneiros que escavaram uma montanha perto do lago Baikal (Jean Marabini).

Esses homens viviam já o futuro utópico que lhes aliviava as penas presentes. Viam a luz ao fundo do túnel. Essa esperança forneceu-lhes "o quarto de hora de heroísmo" necessária aos objectivos da produção. Mas o cinismo é retrospectivo, de quem sabe o que se seguiu e como acabou a experiência revolucionária, e não era decerto partilhado pelos "olheiros" da obra,  nem pelo capataz-mor, no Kremlin.

É ainda o mesmo espírito dos chamados Processos de Moscovo que levou os acusados a confessarem uma culpa "objectiva". Num primeiro grau, sabiam que estavam inocentes, mas num segundo grau, condenava-os um silogismo da doutrina.

Este é um exemplo do poder impressionante das ideias. E são certas ideias que traçam o nosso destino e o duma Europa prisioneira de dois ou três dogmas.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

(José Ames)

ALMAS MORTAS




"Ele tinha uma propriedade independente, de cerca de mil almas, para calcular segundo o velho estilo. A sua esplêndida herdade ficava nos arredores da nossa pequena cidade e confinava os terrenos do nosso famoso mosteiro, com o qual Pyotr Alexandrovitch começou um interminável processo judicial, quase logo que chegou à sua propriedade, e que se relacionava com os direitos de pescar no rio ou de cortar lenha nos bosques, não sei exactamente o quê."
 "Os irmãos Karamazov" 
 (Dostoiewski)


Medir a propriedade rural pelo número de servos (almas) era a regra, na Rússia imperial, antes da reforma de 1861 que aboliu a servidão. Os proprietários pagavam, nessa base, os seus impostos, mas devido à desactualização do censo, eram tributados muitas vezes por servos que já tinham morrido. Gogol imaginou uma personagem, Chichikov, que se propôs desembaraçar esses proprietários duma base tributária fictícia, em troca dum valor simbólico. Mas o que parecia ser do interesse dos proprietários encontrou dificuldades inesperadas. Esse é o tema do romance "Almas mortas". Chichikov não era  benemérito. A sua ideia era enriquecer graças ao crédito que lhe grangeariam as almas que tinha comprado aqui e ali. O boato de que eram almas mortas esvaziou a sua quimera.

A história é muito adequada a ilustrar o que se passou com a crise do "sub-prime" e os esquemas Ponzi que nos levaram à presente situação.

O problema com o crédito é que precisa que a ilusão se mantenha ao abrigo das "bocas do mundo". 

Podemos aplicar ao crédito o que diz Musil sobre o "grande homem integral"  e a beleza: é que  nem um nem a outra suportam o menor desmentido, "tal como não se pode furar um balão sem dano".


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Leça (José Ames)

PROMISCUIDADE



"Era, como ele tinha pensado, um quarto de arrumações.
Velhos formulários inutilizáveis, tinteiros de pedra vazios jaziam espalhados pelo chão atrás da entrada. Mas no quarto em si, com o aspecto dum armário, estavam três homens, agachados sob o tecto baixo. Uma vela fixada numa prateleira iluminava-os. '- O que é que vocês estão a fazer aqui?", perguntou K., calmamente, mas zangado e sem pensar."

"O Processo" (Joseph Kafka)




K. saía tarde do escritório, nesse dia, quando daquelas bandas ouviu alguém suspirar. Eram aqueles três homens à espera de castigo por parte do juiz de instrução, por causa da queixa apresentada por K.

A promiscuidade da situação é hilariante e Kafka foi o primeiro a rir. Mas a lógica do "Processo" não tem nada a ver com o raciocínio normal de qualquer um de nós. Tem mais a ver com a sintaxe dos nossos sonhos ou com a dos contos infantis.

Assim, não temos nenhum critério para distinguir onde se encontra K. " realmente", se aquela promiscuidade é a maneira usual das coisas se misturarem quando sonhamos, ou se as cenas se passam fora da cabeça da personagem.

Tudo começa por um enigma, como o da esfinge de Tebas, para acabar na tragédia, como no final incompleto deste romance, ou com a precipitação da esfinge e o desenrolar do destino de Édipo.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

AUTORIDADE




"A palavra "auctoritas" deriva  do verbo "augere", "aumentar", e o que a autoridade ou aqueles que comandam aumentam constantemente é a fundação. 
 
(Hannah Arendt)


A democracia previne-se desse aumento "automático" da autoridade com eleições livres e a liberdade de expressão, e essa é uma das causas por que os valores da fundação (no caso de Roma, como diz Arendt, a expressão "ab urbe condita" designa a origem do poder patrício) perderam quase toda a importância.

Como não se pode prescindir de toda a autoridade, o "banho lustral" do voto popular abastece desse carisma as principais funções do Estado.

Onde a autoridade tradicional perdeu o crédito, mas mais na escola do que na família, porque nesta actua,  naturalmente, o princípio da fundação (é por isso que um pai ausente não tem autoridade), não há eleições nem palavra que lhe valham. Musil lembra o facto de que "é muito mais tranquilizador simplesmente procurar as leis (ou a tradição) do que o próprio as ter de criar, como é o caso da moral e da jurisprudência."

A crise da cultura que vivemos é o sinal desta nova insegurança.


(José Ames)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Bolonha (José Ames)

OS CÉRBEROS

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camphalfblood.wikia.com


"Quando esta crença se esgotou, para a qual não há justificações nem cobertura, a bancarrota não pode tardar; as idades e os impérios desabam como os negócios quando o seu crédito se esgotou."

"O Homem Sem Qualidades" ( Robert Musil)




Milhões de utilizadores do livre-arbítrio não fazem uma comunidade. Sem algumas crenças comuns (que estão longe de se confinarem às directamente religiosas, pois que, como diz Musil, até para apertarmos os botões do casaco, precisamos de acreditar que isso faz algum sentido), não existe sociedade. 

O deus do crédito tem, pois, a mais vasta das jurisdições. O que é mais peculiar nos tempos que correm é que o cepticismo, o qual como filosofia é essencial ao progresso do pensamento, e, nesta qualidade, não pode minar a base das crenças mais comuns, se tornou numa espécie de antídoto para as "crendices" do liberalismo doutrinário.

Temos então órgãos internacionais (mas sobretudo amigos do dólar e do império declinante em que têm a sua sede) que se dedicam a semear e a amplificar o descrédito. Qualquer projecto de futuro é, assim, morto à nascença. As próprias ideias se retraem na paisagem desolada. 

Os banqueiros que nos governam descobriram, com as agências de notação, o demónio que destrói a "galinha dos ovos de oiro". Se os bancos vivem do crédito, não lhes podemos augurar um grande futuro com o seu estratagema.

É claro que existe um lado ideológico pelo qual podemos ver os banqueiros como vítimas e que talvez seja o mais verdadeiro. A ideia de avaliar os riscos do investimento é tão racional como a de avaliar, por exemplo, por parte da empresa, o mérito dum trabalhador. O problema, neste caso, é que a avaliação é um dos parâmetros do desempenho. Quando funciona ( porque em muitas casos é um pro forma burocrático que, subjectivamente, justifica a "injustiça") pode "encorajar" aquele que, de qualquer modo não precisava de "estímulos" e desencorajar todos os que se sentem injustiçados.

É um dado adquirido, em todas as ciências, que o observador influi na observação. Podemos viver com erros científicos com esta origem, mas não podemos ter uma economia de mercado que não se defenda de "avaliadores" apostados em destruir o crédito.

domingo, 15 de janeiro de 2012

(José Ames)

INSPIRAÇÃO

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Edward Gibbon (1737/1794)


"Mas depressa se chegaria à conclusão de que a vã tentativa de misturar cores tão discordantes e de reconciliar tão inconsistentes qualidades, deveria produzir uma figura mais monstruosa do que humana, a menos que fosse vista na sua própria e distinta luz, pela cuidadosa separação dos diferentes períodos do reino de Constantino."


"The History of the Decline and Fall of the Roman Empire" (Edward Gibbon)



O carácter de Constantino, idolatrado pelos cristãos que chegaram ao ponto de fazer dele um santo, odiado pelo partido vencido que o julgava fraco e vicioso, indigno da grande tradição romana, não pode ser julgado, segundo Gibbon, pelo que o homem era, para uns e outros, num dado momento, mas recorrendo ao que foi a sua vida, a sua experiência e a evolução das suas ideias. É o esboço do que mais tarde se chamaria de processo histórico.

Gibbon diz ainda que um povo eufórico pelo orgulho duma vitória ou acabrunhado pelo infortúnio não está em condições de julgar da sua verdadeira situação. Assim, os Romanos caminhavam para o irremediável declínio no auge do seu domínio do mundo. A decisão do imperador de abraçar o cristianismo inaugurava o triunfo dum novo sistema com outros princípios e resultava na perda de crédito dos anteriores princípios.

Agora, desço em voo picado das alturas gibbonianas, para o "nariz" da Europa como lhe chamava Giscard D'Estaing que foi, um tempo,  presidente da república francesa. 

Não estamos nas melhores condições para julgar do nosso futuro, por melancolia de origem político-financeira. Nem queremos ouvir o conselho de Gibbon de que o "processo" é que dá a justa medida do que se passa.

Precisamos de grandes doses de passado histórico para nos reequilibrarmos. Na altura em que se vendem os dedos, depois dos anéis, não temos quase outros "tesouros na terra" além da nossa coragem. A inspiração para esta, como sabia Simone Weil, não pode estar no presente, que não se sabe o que é (o "voo do pássaro de Minerva" ainda não aconteceu) e muito menos no futuro que pode ser qualquer coisa.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Amarante (José Ames)

O ANIMAL IMPROVÁVEL

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"Esta imagem antiga (da rede de Vénus) só deixa ver um aspecto do amor tal como o que se pode ter por uma bela escrava. Os antigos chamavam-lhe doença. É claro que as preocupações da família (trabalho, governo da casa, criação e educação) acalmam esta doença. Mas esta solução sem romanesco não agrada; não é suficiente; quando muito a pessoa resigna-se. E é o pouco de romance, no fundo, que suporta tudo o resto."
 
"La conscience morale" (Alain)
 
 
A natureza, o instinto, o desejo não chegam. Mesmo os mais refractários às coisas do espírito e que pretendem apenas desfrutar o que lhes coube em sorte precisam de pensar o amor acima do impulso mais básico.
 
Se o romanesco, como diz Alain, impede o amor de soçobrar em tudo que o nega, é porque a fealdade nos é insuportável. O homem, nem que o quisesse, não pode imitar o animal, porque o animal é puro. É o espírito que traz a contradição e a complexidade.
 
Podemos encontrar algo da inocência animal em personagens como o Woyzeck de Büchner ou o Moosbrugger de Musil, ambos, por sinal, assassinos que "julgam" a sociedade, mais do que esta os julga a eles.
 
Mas a violência no amor não é a marca dum desespero? E não se violenta ou se mata, muitas vezes, o que parece intangível e inconfundível com a "carne"? É, de facto, de outra fome que se trata. Fome que o animal nunca experimentará.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

(José Ames)

A ORDEM


"A ordem por si só já é carismática."

(Rakhmiel Kogon, citado por Saul Bellow)



É natural que a ordem existente para quem almeje substituí-la por outra melhor, mais justa, ou simplesmente mais programática, tenda a fazer esquecer o significado da ordem em si.

O carisma que a ordem, nesse sentido, possui é o efeito imprevisível e incontrolável do facto da sociedade funcionar como um todo mais ou menos estabilizado e integrando, estruturalmente, as partes que o constituem.

É claro que todos os revolucionários que tiveram algum sucesso no seu empreendimento, com o desconjuntar da antiga sociedade, imediatamente procuraram lançar os desenhados alicerces da nova ordem.

Ao contrário da sociedade "natural" que é o resultado duma dialéctica histórica que nenhuma ideia inspira, a nova sociedade deve, "armada dos pés à cabeça", como Atena, sair da "coxa de Júpiter". A saúde de Lenine não resistiu e Prometeu deu lugar aos que impuseram a ordem a qualquer preço.

A violência do "parto" está na directa proporção do tempo necessário a que se verifique o efeito carismático da ordem.

Apesar do fracasso final da experiência, a sociedade soviética teve tempo de conhecer esse carisma. A "implosão" do sistema estava tanto nos seus genes, como a queda do império romano, isto é, não é matéria do conhecimento, mas da profecia.

Neste caso, é uma tentação usar do juízo retrospectivo. Mas quando é que temos todos os dados pertinentes para julgar o futuro?

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

(José Ames)

TITÃS


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Giulio Romano (Palazzo del Tè, Mantova)
 


"Este escritor célebre era com efeito demasiado inteligente para compreender em que perigosa situação o homem se meteu a partir do momento em que deixou de procurar a sua imagem no espelho dos riachos, para a procurar nos estilhaços cortantes da sua inteligência."
 
"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)
 
 
A Natureza já não é a mesma desde a invenção do microscópio. Não digo do telescópio porque não é a mesma coisa descobrir, no céu,  que há mais estrelas e galáxias atrás das que vemos a olho nu,  e descobrir que as coisas que nos circundam e o nosso próprio corpo têm infinitas aparências, das quais escolhemos a que convém à nossa dimensão.
 
Na verdade, a imagem no espelho já não era simples. Porque sem o social e o "outro" não haveria imagem. Mas podíamos reconhecer-nos como parte de um todo que existia fora de nós e independentemente de nós. A dificuldade que apresenta esta independência era resolvida, por exemplo, com o mito da criação "à imagem" de Deus.
 
Mas agora, à procura da nossa identidade, lançamos sondas para o céu e para dentro de nós, com os "estilhaços cortantes da nossa inteligência". 
 
A tarefa é, de facto, titânica (embora nos devamos lembrar que foram os deuses que venceram os titãs).

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Porto (José Ames)

DESTINOS

 
Poster-Mistérios-de-Lisboa
 


Raul Ruiz mostrou-nos, em "Os Mistérios de Lisboa", como pode ser interessante um universo inactual e quase inabitável para um espírito moderno, como o de Camilo. E consegue-o fora da escrita e do estilo sumptuoso do escritor, com uma arte que alia a gravidade do conteúdo à exuberância formal (pensamos no famoso travelling de "Vertigo", na cena do baile, ou no leito sobrevoado de "American Beauty", sem sentirmos que sejam exercícios gratuitos. As invenções são imparáveis como a do deslisamento dos futuros amantes, quando Álvaro encontra Silvina).
 
Devido a uma certa tradição teatral, só recentemente o "natural" chegou à fala dos nossos actores de cinema (coisa que ainda se vê em Oliveira). Este chileno cosmopolita consegue a proeza de expurgar toda a declamação da linguagem dos actores. O cinema pode dar-nos tanto o sussurro como a palavra gritada. Não precisa das técnicas teatrais para se fazer ouvir.
 
Como em quase todos os romances de Camilo, neste filme, há vidas desencontradas e revelações extraordinárias. O monge que guarda a caveira da mulher amada é afinal o pai do padre que, disfarçado de cigano, salvou a vida de Pedro, o narrador.
 
O anacronismo destas histórias esconde, no entanto, a questão quase metafísica do homem que não sabe quem é por nada saber dos seus ascendentes. Camilo responde a esta questão com a ideia duma herança amaldiçoada e com a repetição do destino.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

(José Ames)

ABRACADABRA

(Francisco Goya)


"Os economistas vêem as coisas com demasiada simplicidade", escreveu Keynes, "em tempos conturbados contam-nos que depois da tempestade vem a bonança. Mas numa situação como esta não ajuda muito apontar para uma tendência a longo prazo - a longo prazo, estaremos todos mortos". 


(John M. Keynes, citado por Reinhard Blomert)



Uma tendência económica a longo prazo é algo impossível de prever, como 'a contrario' o demonstraram tanto as profecias de Marx como os cálculos de Alan Greenspan, o homem da Reserva Federal.

Ficam as tendências a curto e a médio prazo, as quais, sem nenhuma certeza, podem ser objecto de leituras contraditórias: "já se vê a luz ao fundo do túnel", ou "temos ainda para décadas".

Se alguém estivesse seguro duma tendência não precisava de errar. Quero crer que poucos são os que mentem neste caso. Não sabem, muito simplesmente. Por isso resta-lhes a fé numa doutrina, na pura sorte, ou na intervenção do Espírito Santo. Era pelo menos o que pensava J.K. Galbraith: "Tal como é convencionalmente ensinada, a economia é em parte um sistema de fé, cujo propósito não é tanto revelar a verdade, mas mais fortalecer a confiança dos que dela comungam nos dispositivos sociais estabelecidos. (ver João Rodrigues in "Ladrões de Bicicletas" de 8/1/2012)

Tanta informação e ciência, tanta tecnologia e sofisticação não nos conseguiram tirar desta ignorância e desta obscuridade. Mas claro que se pode sempre construir “máquinas paranóicas” a funcionar ao lado da realidade, ou de costas voltadas para ela. O sistema financeiro e o da dívida pública e privada é uma dessas máquinas. Funciona se funcionar só para alguns, até se transformar num problema político. 

É isso que, parafraseando um dito célebre, faz com que os novos feiticeiros quando se cruzam na cidade não possam conter um sorriso cúmplice.