domingo, 31 de outubro de 2010

Paris (José Ames)

A RAZÃO FERIDA




“Sob o aspecto teórico, não nos aproximamos minimamente da convicção da existência de Deus, da existência do soberano bem e da perspectiva de uma vida futura pelos mais estrénuos esforços da razão, pois não nos é dado conhecimento algum da natureza dos objectos supra-sensíveis. Sob o aspecto prático, porém, nós próprios formamos estes objectos, da mesma maneira que julgamos que as nossas ideias são favoráveis ao fim último que, por ser moralmente necessário, pode muito bem suscitar a ilusão de tomar por conhecimento da existência do objecto adequada a esta forma o que, do ponto de vista subjectivo, a saber, para o uso da liberdade do homem, tem realidade, porque se exibiu em acções da experiência que são conformes às leis de tal liberdade.”

“Os Progressos da Metafísica” (Immanuel Kant)


Uma estrela que só pode ser objecto do nosso cálculo (como, por um tempo, o foi o planeta Neptuno) e que os nossos sentidos, por mais potente que seja o telescópio, não alcançam, não é um objecto supra-sensível no sentido kantiano. Tal estrela é como a projecção dum sistema físico que podemos verificar.

Kant não diz que aqueles objectos são apenas ideias e que só existem pela razão, além disso, pressupõe uma harmonia entre o universo e a nossa razão, pelo que a sua filosofia é ainda teológica.

Pelo contrário, no outro díptico, o da razão prática, Kant toma o partido de voltar a colocar a razão apeada pela primeira Crítica no seu pedestal, como pressuposto da liberdade humana. Aqui não importam as certezas, mas as realidades, sejam elas as da ilusão humana.

Deus regressa, não sob a forma de verdade absoluta, mas de experiência subjectiva. E sob essa forma, a sua realidade já pode ser objecto duma convicção que não se distingue da fé.

sábado, 30 de outubro de 2010

(José Ames)

AS LIBERDADES

  


“Se os Gregos não tinham ideia das liberdades, não professavam menos que a cidade deve proceder pela via geral da lei, que se impõe a todos, governados e governantes; como o cidadão moderno, o cidadão antigo dispunha, aliás, de uma esfera de actividades livres e independentes do Estado, e sobre certos pontos (justamente em matéria de impostos), a sua liberdade ia bem para lá daquilo que o liberal mais decidido ousaria sonhar nos nossos dias. A única diferença de princípio é que as liberdades modernas são expressamente reconhecidas pela lei, enquanto que as liberdades antigas se impunham por si próprias. Os Gregos tinham um direito, mas não uma teoria do direito.”

“Le pain et le cirque” (Paul Veyne)


Por que haveriam os Gregos de ter as liberdades na lei e de desenvolver uma teoria do direito? Eles não tiveram que se confrontar “contra uma monarquia absoluta ou contra um Igreja”. O próprio duma democracia artificial (como a do Iraque depois da intervenção americana) é não ter tido raízes no terreno, nem um desenvolvimento adequado às circunstâncias.

Mas é um erro, sem dúvida, pretender que o “enxerto” não se modifica em contacto com a cultura a que é imposto. Assim se passou com as conquistas de Alexandre (não se pode dizer que Alexandria seja uma cidade grega, nem no ambiente do “Quarteto” de Durrell) e com o marxismo na Rússia ou na China.

As liberdades “espontâneas” de que gozavam os cidadãos na Grécia correspondem a uma espécie de idade de oiro. Como antes do pecado, não tinham ideia das liberdades, limitando-se a vivê-las.

Nós, pelo contrário, sabemos bem o que são (embora esqueçamos frequentemente a sua importância), como são frágeis e como dependem das instituições. Enfim, como é fácil tornarem-se uma mera ideia.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Aquileia (José Ames)

MAIS DO QUE INCORRUPTÍVEL


Saint-Just
 

“Mas o mais estranho era o seu andar, duma rigidez automática que era só sua. A rigidez de Robespierre não era nada em comparação. Devia-se ela a uma singularidade física, ao seu excessivo orgulho, a uma dignidade calculada? Pouco importa. Ela intimidava mais do que parecia ridícula. Sentia-se que um ser de tal modo inflexível de movimentos o devia ser também de coração. Assim, quando no seu discurso, passando do rei à Gironda e deixando ali Luís XVI, ele se virou como uma só peça para a direita, e dirigiu sobre ela, com a palavra, a sua pessoa inteira, o seu duro e assassino olhar, não houve ninguém que não sentisse o frio do aço.”

“Histoire de la Révolution” (Jules Michelet)


Do ridículo ao sublime vai apenas um passo. Numa assembleia democrática, a rigidez de Saint-Just ter-lhe ia valido o epíteto de “múmia paralítica”. Mas é evidente que o retrato pintado por MIchelet tem um outro ambiente, onde as palavras têm a eficácia e a velocidade de execução das máquinas.

O poder aqui não é político. Não se trata de governar nem de nenhuma espécie de acção comum. É a mecânica sujeitando os homens, como nunca se tinha visto até ali. Que sentido de humor não seria preciso para se rir da Razão endeusada? No entanto, ela não valia mais do que qualquer fanatismo.

É verdade que Chaplin, no “Grande Ditador”, fez troça de Hitler, mas não arriscava a vida ao fazê-lo.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

(José Ames)

CERIMÓNIAS




“Jean-Pierre Cèbe assinala-me amavelmente uma anedota que se situa em 211: nos jogos apolinários, o povo assiste a uma representação cénica em que aparece um mimo; anunciam a chegada do inimigo. A multidão corre às armas, volta depois do alerta e encontra o mimo ainda em cena continuando a dançar ao som do flautista; ‘tudo está salvo’, diz a multidão desembaraçada do escrúpulo ritual (religio) que lhe teria causado uma interrupção dos jogos, e a frase tornou-se proverbial. Os homens estavam ausentes e seguramente pouco dispostos a divertir-se, mas os deuses tiveram pelo menos a sua parte.”

“Le Pain et le Cirque” (Paul Veyne)


Os deuses divertem-se, mas os homens fazem mais qualquer coisa: “solenizam a alegria colectiva, que é preciso realmente solenizar porque tudo o que é colectivo e por pouco organizado que seja, como uma festa, tem necessidade de algum cerimonial.” A matéria desse cerimonial é tirada da religião que por isso está “presente em todo o lado na vida pública e privada”. 

O exemplo do mimo a representar para uma sala vazia não seria concebível nos dias de hoje. É a prova de que os deuses estavam vivos e o espectáculo não estava perdido.

Mas para quem emitem os nossos ecrãs acesos em tanta sala vazia? Há pessoas que não conseguem passar sem essa luz artificial e sem esse fundo sonoro paranóico. A televisão não é produzida para deuses e homens, mas tornou-se ela própria uma espécie de ídolo. Ou não? Será que os nossos aparelhos de som e imagem nos fazem comungar de algum ritual colectivo e que a tecnologia vai mais longe que o simplesmente lúdico, mesmo quando pensamos que apenas nos diverte?

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Lisboa (José Ames)

ILUMINAÇÕES


"Viagem ao centro da terra"



“Desde o começo, Proust confronta esta memória involuntária com a voluntária que se encontra à disposição do intelecto. Esta relação é esclarecida nas primeiras páginas da grande obra. Na reflexão em que o dito termo é introduzido, Proust fala da pobreza com que à sua recordação se havia oferecido durante muitos anos a cidade de Combray, na qual apesar disso tinha passado uma parte da sua infância. Até que o gosto da madalena (um biscoito), ao qual volta amiúde, o transportasse uma tarde aos antigos tempos, Proust tinha-se limitado ao que lhe proporcionava uma memória disposta a responder à chamada de atenção. Essa é a memória voluntária, a recordação voluntária, da qual se pode dizer que as informações que nos proporciona sobre o passado não conservam nada deste. ‘O mesmo vale para o nosso passado. Em vão tentamos reevocá-lo; todos os esforços do nosso intelecto são inúteis’. Pelo que Proust não vacila em afirmar como conclusão que o passado se acha ‘fora do nosso alcance, em qualquer objecto material (ou na sensação que tal objecto provoca em nós), que ignoramos qual possa ser. Que encontremos este objecto antes de morrer ou que não o encontremos nunca, depende unicamente da sorte.’”

“Baudelaire”  (Walter Benjamin)


E qual é a importância de recuperarmos esse passado que o nosso cérebro  “considera” desnecessário ao ponto de o esconder de nós? A menos que vejamos nisso uma intenção que nos desafiaria a reviver o passado, mais pelo prazer dos encontros do que pela repetição impossível da experiência, resta-nos considerar que a “escolha” do nosso cérebro foi acertada, deixando-nos uma espécie de índice do passado, mas nada do passado em si.

A “Recherche” que foi mais longe do que qualquer tratado de psicologia é, sobretudo, grande literatura e as iluminações do narrador são como a descoberta das lâmpadas Ruhmkorff na “Viagem ao centro da terra” de Júlio Verne.

terça-feira, 26 de outubro de 2010


(José Ames)


O MURO DO DINHEIRO







“A oligarquia senatorial tinha mais uma razão para aceitar de bom grado a pitoresca e ruinosa tarefa de editor de jogos: os espectáculos eram, para os candidatos às magistraturas, um “muro de dinheiro” que barrava o acesso do Senado a quem não fosse rico; mais exactamente, a oligarquia não era hostil aos jogos, porque bastava, para franquear esse muro, ter dinheiro mais do que mérito; os espectáculos eram uma barreira de classe mais do que uma barreira individual; o Senado só era acessível à oligarquia e era-o a toda a oligarquia.”

“Le Pain et le Cirque” (Paul Veyne)


O princípio funciona se o aplicarmos, por exemplo, à informação se a considerarmos, como alguns, o verdadeiro poder dos nossos tempos.

As “auto-estradas” da informação são apenas uma homenagem a esse poder, e em democracia não se compreenderia que estivessem fechadas a todo e a qualquer um.

Todos têm acesso à informação, mas, na prática, alguns apenas, a chamada “intelligentsia”, sabem orientar-se no meio de um tráfico aparentemente caótico.

A informação como critério do poder é mais democrática e racional, mas é também a demonstração de que a igualdade permanece uma utopia.  

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Bolonha (José Ames)

A VERGONHA





"Mas toda a acuidade da vergonha, tudo o que ela comporta de excruciante, consiste precisamente na impossibilidade em que estamos de nos identificarmos com este ser que já nos é estranho e cujos motivos de acçāo nāo podemos compreender."

"De l'évasion" (Emmanuel Lévinas)


A humilhação de não ter o controle de si próprio, de ter fora de si os comandos do seu destino, ou, descoberta mais recente, que existe dentro de si um enclave que o considera estrangeiro, é no entanto a mais familiar das experiências. Como é que a vergonha pode ter um âmbito tão irrisoriamente restrito, quase confinada ao sentimento que temos perante os outros e que o pudor ou a moral cívica parecem representar?

Talvez a vergonha perante nós próprios não seja tão natural assim e que são precisamente os outros que nos impedem que nos olhemos no espelho...



domingo, 24 de outubro de 2010

(José Ames)

TUDO ESTÁ LIGADO

Abertura dos Estados-Gerais de 5 de Maio de 1789


“As reacções à desigualdade vão da indiferença, entre passantes desigualmente afortunados que se cruzam na rua, à humildade do camponês que admira a riqueza do rajá e à comparação, a qual oscila entre o ódio e o sentimento de participação. A desigualdade parece natural quando parece irremediável, e não quando ela é justa ou funcional; não é verdade que a riqueza das classes elevadas seja aceite pelo povo enquanto os privilegiados a justificarem pelos serviços que prestam e não forem uma  nobreza de vespões como a de 1789. Os privilegiados tornam-se insuportáveis quando fazem concessões que, ao mesmo tempo que tornam os privilégios menos odiosos, revelam que os mesmos não são invencíveis.”

“Le Pain et le Cirque” (Paul Veyne)


Porque há uma desigualdade justa, ou pelo menos natural, se convirmos que é a única que funciona, embora, neste caso, como observa Paul Veyne, só possa ser reputada de justa quando não houver, no espírito de todos, qualquer alternativa. Por outro lado, uma “nobreza de vespões”, por muitas atrocidades que cometa será considerada “justa” se se acredita numa religião que declara a ordem existente como manifestação da vontade de Deus.

A ideia da Revolução, de facto, tornou toda a desigualdade odiosa, mesmo a que se pode justificar pelo bem comum, ao tornar o homem responsável pelo mundo. Assim como a ideia de sistema nos parece dotar de uma visão superior e do sentimento de que possuímos a ferramenta para o transformar. Não importa que sejam só palavras vagas e imprecisas, pois falarmos em sistema apenas nos dá, para o bem e para o mal, a ideia de que tudo está ligado.

sábado, 23 de outubro de 2010

Aljustrel (José Ames)

O OLHAR VESGO DE VÉNUS

OLHAR VESGO
Vénus de Milo


Para Descartes, aquilo que os Antigos chamavam de olhar de Vénus exerceu sempre uma espécie de atracção até ao momento em que, por anamnese, concluiu que isso se devia a um primeiro amor por uma rapariga que sofria desse defeito.

Mas o característico empreendimento cartesiano ( e de psicanálise “avant la lettre”) de elucidar a origem das nossas paixões e de a ancorar no corpo não explica a crença surpreendente no estrabismo de Vénus, como se lê no “Satyricon”.
Sugiro que aquele defeito de focagem desvaloriza a relação, hipertrofiando o imaginário, em que o outro neutralizado no olhar, sede visível da consciência, se conforma passivamente ao objecto desejado. 

Claro que poderíamos, talvez, incluir esta hipótese nas perversões da decadência romana. 

Mas, afinal, é Lacan que diz que não existe relação sexual.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

(José Ames)

VULGARIZAR

Elias Canetti


“O que mais aprecio num verdadeiro escritor é aquilo que omite por orgulho.”

“Aforismos” (Elias Canetti)



Simone Weil considerava a palavra vulgarização tão feia como a coisa que designa. Não é possível traduzir sem trair, como é costume dizer-se, mas aquele que vulgariza um belo texto faz pior do que trair, pois o degrada até a um nível que considera ser o daquele que o lê. E o que é que fica depois de lermos um resumo infligido, por exemplo, à “Guerra e Paz”? Apenas a vaidade de ter “lido” um clássico. Nada do que é exaltante e inspirado no romance de Tolstoi será assim percebido. É como se nos condenassem a ter os órgãos de um ser inferior, a viver numa sub-humanidade.

Explicar, quando um esforço da inteligência ou um “golpe de asa” nos elevariam aos céus é inculcar o mau gosto e a mediocridade. E vulgarizar não é outra coisa.