segunda-feira, 31 de outubro de 2005

IMAGENS E TEMPERAMENTOS



Cavaco não se sente bem na sua pele, contorce-se, fica inteiriçado diante das câmaras. Responde com esforço e um sorriso postiço aos jornalistas. Refugia-se num discurso estudado e em algumas frases batidas. Mas geriu com inteligência a apresentação da sua candidatura, tentando relançar uma imagem sem os defeitos que os peritos lhe apontaram e que lhe terão custado já uma derrota eleitoral. É assim que parece ter-se convencido da utilidade da comunicação social (com um típico exagero, aliás) e da inconveniência de mostrar um excesso de confiança que poderia passar por arrogância. Cometeu um erro ao pretender cavalgar a onda de descrença nos partidos.

Soares é a sua antítese. Animal político (no bom sentido), sem problemas com o seu corpo, dado ao improviso e aos ímpetos do coração, apresentou-se no seu estilo de sempre, transformando os erros da sua candidatura em desafios à fidelidade dos seus apoiantes e em crises de esclarecimento.

Não são as ideias que separam os candidatos, nem a forma como vêem o cargo presidencial.

Os eleitores votarão numa família política e numa história dividida.

O facto de existir uma tão grande diferença de estilos e de temperamentos vai ajudar à decisão, embora não queira dizer nada e os temperamentos soaristas e cavaquistas abundem à direita e à esquerda.

Para além disso, se os portugueses acreditarem na situação de crise (e os media, para o bem e para o mal, criaram uma imagem de crise), a figura do "pai severo" fará provavelmente pender a balança para o seu lado, em desfavor da figura do mestre na arte de viver.

A perda de influência do pensamento corrobora a ideia de que política se transferiu para a virtualidade das imagens.

domingo, 30 de outubro de 2005



A Póvoa, com as suas esplanadas desertas neste dia de chuva, as mesas e as madeiras a brilhar contra a linha das gaivotas que poisam na cabeceira dum divã de areia, mais as lojas chinesas da marginal e os prédios, cada um com o seu estilo e o seu formato, numa demonstração de que também no urbanismo existe uma "mão invisível" para tornar o conjunto sofrível e o pormenor insuportável.

sábado, 29 de outubro de 2005

Na circunvalação, o vento sacode os plátanos e as folhas andam pelo ar. No chão, por entre as árvores, nos sítios onde a fila automóvel congestiona, vêem-se os habituais vestígios da impaciência e da falta de civismo (pontas de cigarros e papéis). Só depois da rotunda dos "Produtos Estrela" o relvado se mostra em todo o seu viço, como num jardim inglês.

Rodo sobre o langor do "Liebstod" wagneriano. Vem-me à ideia a polémica platónica contra o "modo lídio" na música. Esta atmosfera entorpecedora pelo menos devia ser prescrita com peso, conta e medida. Mas há alguma música cujo excesso não incapacite para a acção? Era a prevenção de Lenine contra a música, que o podia levar às lágrimas.

Mas logo a seguir, contra o horizonte marinho a anémona de rede ondula como se mergulhasse nas nuvens.

quinta-feira, 27 de outubro de 2005

Já viram como certas palavras se tornaram esconderijos (que deixam o rabo de fora ao gato), que outras querem dizer o contrário do que dizem que, enfim, estamos em plena "selva escura"?

Por exemplo, dignidade, na voz de certos grupos quer dizer, infalivelmente, dinheiro.

E já se viu tanto a palavra democracia na boca dos tubarões?

quarta-feira, 26 de outubro de 2005

" O coração ficou escondido no escuro e duro como a pedra filosofal."

Paul Celan ("Contraluz")


Os que voltaram do Inferno e que viram o seu ser destruído, numa língua que não morreu disso, estranham.

A poesia não seria possível depois de Auschwitz (Adorno).

Mas Celan diz que essa língua atravessou os acontecimentos sem gastar uma palavra.
Não devemos esquecer e, contudo, a língua já nos leva por novos e velhos caminhos, como a fénix.
"Ich bin der Welt abhanden gekommen." (vénia a "dias felizes")

terça-feira, 25 de outubro de 2005

DIREITOS POR LINHAS TORTAS

O 52 ed Lirba




« Contrariamente ao que se diz no « Sermão da Montanha”, se tens sede de justiça, terás sempre sede.”
Jules Renard (1864/1910)





Teremos então de admitir que há profissões com menos direitos do que outras e que, pela função, pelos meios de que dispõem contraem certas obrigações que importam alguma restrição àqueles direitos? Mas de que direitos estamos a falar? 

A teoria dos direitos em abstracto filia-se numa certa tradição revolucionária e significa uma espécie de reparação catártica feita aos injustiçados da História, que em princípio seriam os trabalhadores. 

Mas há trabalhadores e trabalhadores e há as profissões que são como um manto de misericórdia que não distingue o explorado do explorador. Salgado de Matos dizia há dias, com justeza, que ser banqueiro também é uma profissão (como juiz e militar).

E não podemos ficar por aí, porque na classe dos trabalhadores encontramos um mundo de diferenças, de estatuto, de segurança do emprego e de poder sobre outros trabalhadores.

De facto, não podemos desligar a questão dos direitos da posição face aos poderes (incluamos aqui os privilégios, mesmo relativos, e o poder estratégico ligado à função). É assim que a ideia de justiça pode servir aos fins de alguns grupos que apenas visam usufruir dum estatuto que em tudo os separa dos “injustiçados”. O lugar preferido do diabo é detrás da cruz. 

Por outro lado, quando se comparam os meios de luta dos trabalhadores em geral e os desses grupos que ocupam posições estratégicas, verificamos que a eficácia destes é desproporcionada ao seu número, o que nos leva a pensar que alguma espécie de equilíbrio deveria ter lugar para se restabelecer a justiça e a democracia. Se não for obtido pela auto-contenção e o sentido de obrigações particulares, deverá sê-lo através das leis. 

Porque, invocando-se a justiça, o que está aqui em causa é o exercício dum poder, e é bom de ver que a democracia não é compatível com o livre oportunismo dos grupos de força (sejam eles corporativos, empresariais ou políticos). 

Por exemplo, o diferencial de poder dos maquinistas da CP em relação aos outros trabalhadores nunca os impediu de usá-lo, sempre com sucesso garantido. No caso das forças armadas, por que não se utilizariam os tanques para um sequestro do governo? 

Entre este putsch surrealista e um putsch a sério, a diferença é que naquele se jogaria, talvez, com a almofada europeia, conjurando-se o perigo insurreccional. Em qualquer caso seria um descalabro moral e o fim de qualquer governo.

VERDE-CESÁRIO


Com o céu e o mar dum cinzento carregado, toda a luz se concentra na espuma que se abre. E aos indícios de azul em cima responde a cor de jade das ondas.

Quem só sabe apreciar o verão e a primavera não sente como um ocidental.

Aqui há “tal soturnidade, tal melancolia”...

sexta-feira, 21 de outubro de 2005

WE ARE THE PEOPLE


"As vinhas da ira" (1940-John Ford)

We are the people. A depressão não trouxe à tona apenas fezes. Na adversidade acabrunhante, uma família do Dust Bowl revela que o verdadeiro heroísmo é o dos simples mortais e que a coragem é feita de tripas como as de toda a gente.

Uma ideia social como a verdade a descobrir é atribuída ao personagem de Tom Joad que se comporta no fim como um convertido à religião da humanidade. A mensagem ingénua não tem menos força depois das amargas verdades do socialismo e do itinerário ideológico do cineasta e do romancista.

O papel da mãe é tudo menos realista, mas também é a coisa mais pura do filme. Quando surge a oportunidade de vinte dias de trabalho, o que resta da família abala para começar tudo de novo, guiados por esse pensamento sublime que é “we are the people”.

quarta-feira, 19 de outubro de 2005

Andar pela areia ainda não pisada e só penteada pelo vento é quase como caminhar sobre as águas. A sombra desliza como uma cobra de duna em duna.

Esta manhã, havia uma luz espectral sobre o Porto.

O granito do corpo tinha absorvido o sol e era agora uma gambiarra desfalecente voltada para os farrapos de céu.

segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Da mesa em que me encontro vejo no plano inclinado da vidraça uma escriturária.

A geometria variável da Casa da Música pode ler-se como um comentário moderno ao monumento da guerra peninsular.

O jardim está salpicado de folhas envolvendo a coluna com o leão poderoso sobre a águia, da qual uma asa parece ainda esvoaçar. É a energia alada vencida pela massa.

No edifício de Koolhaas, parece-me ver também o mármore cego pesar sobre a camada de ar roubada ao cubo.

sábado, 15 de outubro de 2005

Miramar é o nome duma praia de Gaia, perto de Francelos. Um passadiço feito de velhas traves da linha férrea ondula junto ao mar e os rochedos, ao lado dos arames do campo de golfe, com a capela do Senhor da Pedra a atrair todos os raios.

Aquele piso imediatamente transforma a paisagem num espectáculo. Falta-nos a massagem da areia nos pés.

A mesma sensação que uma mudança de velocidade. Um automóvel abole o espaço em mais de um sentido.

sexta-feira, 14 de outubro de 2005

À hora do almoço, numa pequena cidade limítrofe, que tem um jardim novo, sobre o triângulo da relva, não maior do que 15 m2, assanham-se dois homens e duas máquinas, pisando a verdura em todos os sentidos para aspirar algumas folhas murchas dos plátanos e endoidecendo com o ruído os incautos que, como eu, vieram procurar um minuto de sossego na esplanada.

Que belo exemplo da pressão do emprego sobre a teta camarária!

E tanto gasóleo e tanta poluição para nos tirar da vista a melancolia do Outono! Suponho que trocar o tractor pelo ancinho seria passar de cavalo para burro...

Mas quem disse que é a eficiência que se procura?

quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Há canais menores, por detrás dos palácios, onde o passado não é mais do que uma ruína sombria e por onde não se aventuram as gôndolas.

A Sereníssima aqui não esconde a sua idade, nem aquilo em que se tornou o esplendor de outrora.

Quem sobe do rio, no Porto, encontra uma rua que desperta igual melancolia. Poucos são os edifícios habitados ou que a lepra do abandono não comeu.

É a de Mouzinho da Silveira.

Passo no 500 (era o 1) e pasmo. Até quando, no coração da cidade, esta necrose que nos oprime e desalenta?

No autocarro, ao longo do rio, o som da língua alemã. Já um destes dias a voz de Ângela Merkel me tinha feito pensar em como seria fácil render-me aos encantos deste áspero gorjeio, se não fosse o século XX.

Esqueço o tempo em que a bruteza dos germanos os designava de antemão para a guarda pretoriana do imperador. Ah! Mas quando eles eram românticos sonhadores, apaixonados pelo helenismo, como Winckelmann ou Goethe!

Será possível que as ressonâncias daquela língua alguma vez se libertem das inflexões paranóicas de que toda uma geração de mortos foi possuída? E, talvez tão difícil, do cinema da guerra?

terça-feira, 11 de outubro de 2005

A NOSSA PARTE MALDITA



“O declínio do paganismo acarretou o dos jogos e dos cultos cujos custos os romanos ricos deviam obrigatoriamente cobrir; é por isso que se pôde dizer que o cristianismo tinha individualizado a propriedade, dando ao seu detentor uma disposição inteira dos seus produtos e abolindo a sua função social.”

“A noção de despesa” (Georges Bataille)

Como o autor diz a seguir, essa despesa tornou-se livre, através da esmola e das doações às igrejas e aos mosteiros ( e, hoje, às fundações ).

É assim que um grande industrial, envolvido num célebre processo judicial e acusado por uns de rapacidade na condução dos seus negócios e por outros admirado como um moderno “tycoon”, com o toque de Midas, talvez para surpresa de todos, legou ao mesmo povo de que parecia tão distante e cujas escolhas políticas desprezava os vultosos milhões duma fundação benemérita.

Não será uma boa ilustração da tese de Bataille de que existe sempre no “conjunto da matéria viva” um excesso de energia que deve ser delapidado em pura perda.

O desperdício que constantemente se assaca à nossa administração pública talvez seja um melhor exemplo.

Queimamos a nossa gordura numa suave ineficiência, em vez de erguermos novas pirâmides ou de desencadearmos tempestades no deserto.

Esta cauda da tempestade parece nem perturbar o sono paradoxal da natureza. Respira-se o vento do largo, que já só nos convida às viagens interiores.

Na areia lavada, transparece aqui e ali uma venosidade de alcatrão. O céu é cor de chumbo, abençoadamente e os aguaceiros vêm sarar as feridas do verão.

Aposto que, na estação que se aproxima, haverá menos depressões e úlceras gástricas. Só por não se amaldiçoar o tempo...

segunda-feira, 10 de outubro de 2005

À hora do almoço, num restaurante da Baixa, alguns ecrãs chatos diante do balcão. Passa sem som um programa que é suposto ter alegria. Estranho! Os actores (não são todos?) parecem ilusionistas de quem se expusessem os truques.

domingo, 9 de outubro de 2005

UM PRECURSOR TEM SEMPRE RAZÃO


O Moisés de Miguel Ângelo

“Não posso crer, a respeito do teu fidelíssimo servo Moisés, que lhe tenha sido dado por ti um dom menor do que eu gostaria e desejaria para mim próprio, se tivesse nascido no tempo em que ele nasceu e me tivesses colocado no mesmo lugar, a fim de que, mediante o ministério do meu coração e da minha língua, fossem dadas a conhecer aquelas páginas (...)”

Santo Agostinho (“Confissões”)

É lógico o raciocínio do santo. Se acreditamos na figura do precursor, cremos também na sua inspiração.

Se Moisés gaguejava, tal como Homero era cego, isso era uma marca de “servidão” para com o seu Deus, o que o ajudou, talvez, a transmitir-nos o ditado do “Génesis”.

Mas o mediador permite-nos medir com ele a existência.

Nesse sentido, não há nenhum homem que, depois de morto, não possa transformar-se em oráculo e em servidor de enigmas.

FALTA DE TONER

Andamos a tirar imagens deslavadas que mal se conseguem ver. Manchas aqui e ali arruínam-nos o zelo.

Não temos auto-crítica. Temos uma sarna que não paramos de coçar. Há alguma coisa que esteja bem? Em desespero de causa jogamos o nosso amor-próprio nos mundiais de futebol.

Onde errámos? O vate nacional diz de Afonso, no cerco de Badajoz : “Agora não lhe deixa ter defesa/ Da maldição da mãe, que estava presa.”

Ao dividir o mundo em Tordesilhas, incorremos nalguma falta contra Júpiter?

De qualquer modo, é Camões o único que não contribui para a depressão geral.

sábado, 8 de outubro de 2005

A PIRA DE UM DEUS

Sobre a praia de Esmoriz, há um céu sulfuroso. Nem falta uma sugestão de malefício. Pela direita baixa, entra no meu campo de visão o cão negro que perseguia Fausto.

Cheira ou parece-me cheirar a queimado. Os incêndios deste ano horrível espalharam metástases por toda a parte.

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

A IMPORTÂNCIA DE SER HONESTO



Tenho um bom amigo em Lisboa que sempre me surpreende pelo seu inconformismo “boutadiste”.

Desta vez, sobrevoávamos os últimos acontecimentos políticos como num balão que já tivesse visto melhores dias e paragens mais interessantes.

No Campo Grande, os patos negros corriam chapinhando pela água, enquanto ele dizia que o partido mais à direita (porque não teria que contradizer a sua doutrina) era mais honesto do que o partido socialista, mesmo concedendo que este não tinha grande margem de manobra para fazer outra política, dado o espartilho europeu e a situação económica.

Assim, o que ele implicitamente propunha é que só deveriam governar os partidos pragmáticos, com o mínimo de ideias a que a realidade resistisse (porque também os ideais da direita implicariam um retrocesso não praticável).

Estava um autêntico dia de verão e o sol começava a dardejar sob a orla do chapéu.

Fiquei a pensar com os meus botões naquele aparente bom senso. Mas concluí que um partido conservador nunca é o mais indicado para a mudança possível, pois não a deseja, e que, pelo contrário, só quem quer o impossível, mas conhece a máxima do príncipe de Salinas de que é preciso mudar tudo para tudo ficar na mesma, pode mudar por pouco que seja.

Claro que os partidos têm muito de história natural e os seus nomes podem não satisfazer já à razão.

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

O PARAÍSO NÃO VAI AO FORNO

Atravesso a Serra da Boa Viagem com o coração apertado. É costume convocar-se Dante para descrever uma paisagem destas (anti-paisagem, donde o homem foi expulso?), em que a cinza e os tições dos ramos tudo cobriram.

Há fumo a sair do chão por toda a parte, como nas furnas.

A Figueira acaba de perder a sua jóia da coroa, e todos nós uma porção do paraíso.

Os paraísos na terra não podem de facto competir com o verdadeiro.

terça-feira, 4 de outubro de 2005

QUE COISA É A PINTURA?


Francis Bacon ("Self-portrait")

A hecatombe florestal continua (ardem os caminhos silvestres da minha adolescência, em S. Pedro da Cova). Esta manhã, o Porto estava irrespirável. Fugi para a beira-mar, mas o próprio mar tinha fumo.

Na areia, alguns mexilhões (as cascas) em fila indiana. Mas não. Foi a onda que os distribuiu assim, elegantemente.

No café da praia, um quadro na parede, ingenuamente abstracto, lança-me num moinho de ideias. Já muito moídas, de facto.

Um “leigo”, sem talento especial para a pintura, que observe longamente um quadro do período clássico, não pode imitá-lo, de nenhum modo. Por falta de técnica, em primeiro lugar. Essas obras, às vezes, levavam anos a completar e requeriam todo um saber que podia ir desde o pigmento da cor até à anatomia da figura.

A mesma pessoa diante de alguns quadros de Monet, por exemplo, sentirá que a tarefa foi enormemente simplificada.

A abstracção deu um salto ainda maior. E uma pintura de Mondrian ou de Pollack parecem não oferecer grandes dificuldades, pela inexistência do desenho e pelo imediatismo da forma.

Claro que estas obras podem estar cifradas e apenas a posse de um código, no segredo do autor, permitirá a sua leitura definitiva. Mas isto pode-se fazer sempre, qualquer que seja a arte escolhida e envolve o problema duma falsa complexidade.

Por outro lado, temos sempre de distinguir entre a criação original e a imitação, e é aquela que, no fim de contas, confere o valor, qualquer que seja o período a que pertença o objecto artístico.

Não se pode negar, porém, a distância que a técnica percorreu, desde um Piero de la Francesca até um Francis Bacon, no sentido de se “libertar” a ideia do seu meio de expressão.

Alain considerava que uma coisa não ia sem a outra e que era a resistência da matéria-prima e o labor técnico inspirado pela ideia que davam à obra o seu cunho de originalidade.

Aquela tendência da pintura aproxima-se, na verdade, das formas ready-made e das técnicas do computador. No monitor, com certos programas, podemos imitar todos os estilos, mas nunca estivemos tão longe da pintura.

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

SINDICALISMUS ESQUISITUS


Charles Darwin (1803/1873)

As novas espécies estão sempre a aparecer entre nós ( ao contrário do que parece passar-se na Natureza ).

Vemo-las tomarem o nome de outras, já identificadas e de pleno direito, mas acabamos, cedo ou tarde, por nos apercebermos de que são aberrações e que têm de ter outro nome.

O caso é que, como já se tem dito, a greve é um direito dos trabalhadores. E se é certo que, abusivamente, se tem falado numa greve das mulheres (Aristófanes), ou numa greve dos patrões (lock-out), só podemos considerar uma greve dos juízes como uma denegação de justiça e uma destruição de poder.

Aqueles que construíram os sindicatos, ao longo da sua atribulada história, para conquista dos direitos mínimos, têm de ver numa greve destas uma caricatura que faz troça da sua luta passada e presente.

Mas há uma advertência a fazer nesta aparente consagração do sindicalismo, quando vemos os que outrora ergueram os seus casse-têtes sobre os manifestantes, manifestarem-se agora na 25ª hora, ou os juízes que aplicaram as leis repressivas brandirem hoje a arma da greve: é a de um reconhecimento tão geral e uma tão grande respeitabilidade do sindicalismo poder significar que está a perder a sua capacidade de se adaptar, confundindo-se, cada vez mais, com a defesa das espécies ameaçadas ou em vias de extinção.

sábado, 1 de outubro de 2005

NEM FACA NEM ALGUIDAR



Agora não se fala em manicómio, a não ser como metáfora bem humorada da sociedade dos mentalmente aptos.

Porque tem um ar de clausura e de segregação já não se usa, nem é politicamente correcto.

Em vez disso, temos os hospitais psiquiátricos ou simplesmente hospitais, que dão a ideia de que a loucura deve ser tratada como qualquer outra enfermidade.

Tornou-se, assim, mais difícil analisar a razão a partir do seu contrário e utilizar como figura de retórica a inversão dos mundos.

Mas um homem mata a sua companheira num desses hospitais e os jornais pouco mais dizem. Não sabemos de que lado da razão estava cada um dos actores da tragédia. Mas acrescenta-se que se tratará dum crime passional. Ora, a paixão só por si pode levar a uma acto tresloucado.

É o teatro do crime que acrescenta aqui um significado ambíguo e estranho. Como se o amor louco desertasse as paragens do romance e do melodrama para se render à segurança do clínico.