sexta-feira, 30 de setembro de 2005

DA PRIORIDADE NAS ROTUNDAS




“Não é o reforço da corrente pro-life que caracteriza em profundidade a nossa época, é o alargamento social da ausência de consenso ético, expressão da própria era democrática desligada do culto de dever.”

Gilles Lipovetsky (“O crepúsculo do dever”)



A questão é muito interessante. Poderíamos dizer então que a principal fractura de consenso é esta (a questão do aborto), por decidir sobre a definição do próprio homem.

A posição da Igreja é coerente com o Génesis literal. O homem não é um processo, nem uma totalidade, é uma criatura com um nome, do princípio ao fim. Não há célula que já não faça parte do “intelligent design”, se quisermos.

Ora, essa ideia confronta-se com a onda avassaladora do racionalismo científico e dos seus produtos, a qual parece crescer a expensas do antropocentrismo (bíblico ou outro). Quanto mais amplos são os horizontes da ciência, menos se pode isolar o que seria uma essência do Homem.

E este é um resultado que, paradoxalmente, põe em relevo os limites deste outro pensamento.

Donde, no espírito de cada humano, o desequilíbrio existencial só possa ser vencido através dum dogma.

E é por isso que a despenalização do aborto (a preposição até, que normalmente se segue, é já de ordem metafísica) não é pacífica, embora, pareça que ninguém ache que as mulheres devam ser punidas...

E é legitimamente que se resiste à redução da questão ao direito (a prioridade nas rotundas também não é um direito).

quarta-feira, 28 de setembro de 2005

NEVOEIRO NO PORTO




Dom Pedro IV e Dom Miguel



 
Hoje, na ponte da Arrábida, atravesso um cúmulo e parece-me que se saltasse aterraria numa almofada de Fellini, como aquela piscina ao fundo do túnel, em “Julieta e os espíritos”.
 
E depois da Afurada, o Douro é como a bainha murmurante duma nuvem. Alguns barcos destroçados pelo tempo dão-se ares de naufrágio e julgo ouvir as duas margens trocarem ameaças, velhas de quase duzentos anos: - ó carcunda!; - ó pedreiro!

Sim, porque temos uma guerra civil no sangue, misturada, felizmente, à água-pé do Porto e do Benfica.

PORQUE EXISTEM AS FADAS




Há coisas pelas quais nunca sentimos qualquer espécie de gosto. Parece que não foram feitas para nós, por razões que nunca esclarecemos bem. Até ao dia em que, tendo que as fazer, descobrimos que se as fizermos ao nosso jeito, e segundo a nossa agenda, rapidamente nos afeiçoamos a elas. 

Esse nosso zelo tanto se pode aplicar a fazer um cozinhado como a escrever uma carta a um amigo. 

Por isso compreendo como é que a casa se pode tornar a paixão quase exclusiva de algumas mulheres. Porque elas transformam as tarefas domésticas em algo de pessoal, subordinado ao seu ritmo e comando, fazendo delas muito mais do que um emprego do tempo.

Entre o gosto de fazer bem e de arranjar conforme se nos dá e o cumprimento duma função ou dum dever pode ir a distância da liberdade à servidão.

domingo, 25 de setembro de 2005

CAMPANHAS

Desde os espectaculares frescos com que a Igreja Católica combateu as ideias da Reforma, a “tradução”, plástica ou não, não tem parado.

Já não são as baladas “engagées” doutros tempos, mas o rock e o puro “music hall” que anima as campanhas.
Hoje, ouvi dum carro de som uma nova letra. Cantavam-se as virtudes dum candidato: porque ele é o mais competente, e porque é sua a transparência ...

sábado, 24 de setembro de 2005

PANIS ET CIRCENSES

"Pollice verso" (Jean-Louis Gérome)





Depois de ver na televisão a inenarrável apoteose popular de uma autarca fugida à justiça, apetece fazer a seguinte pergunta: existirá um instinto popular seguro, que seria o guardião dos valores, e no fim de contas a “voz de Deus”?

E não é essa a justificação última da democracia? 

Não era essa a ideia de Platão, mas ele era um aristocrata que escarnecia de qualquer tipo de sabedoria estatística.

Rousseau teme as paixões colectivas, que obnubilam o juízo, mas confiava num jogo de compensações dos instintos individuais e de grupo.

O que acontece é que hoje se acredita sobretudo no consenso sobre a instância soberana. É a regra sem o que a legitimidade iria nua como o rei da fábula.

Com a sagração popular, os políticos não têm ainda uma ideia de governo. Mesmo quando testam as suas ideias nas eleições, não podem estar certos de que no momento seguinte elas, ou a mesma política, deixem de ter cobertura, como os cheques. O que eles têm é o poder legitimado, até novo acto eleitoral. 

A ideia de que o povo governa, sobretudo quando se perdeu a dimensão da ágora e se desaguou no espaço mediático global, é duma inocência que faz rir.

O povo ocupa aquele trono fantasmático da “Sombra do guerreiro” (Kagemusha), o filme de Kurosawa.

E às vezes perde a cabeça como qualquer mortal, como aconteceu agora na Alemanha, com o país paralisado entre o querer e o não querer.

terça-feira, 20 de setembro de 2005

A ROSETA DA NECESSIDADE

Champollion (1790/1832)


 

Hoje, ouvi o motorista do autocarro mandar trabalhar um velho que o censurava, já no passeio, por não ter aberto a porta quando lho pediram.

Felizmente que esta prepotência não ficou sem resposta, o que se notou nas hesitações da condução. A certa altura, parecia que o monstro de aço, ferido no seu ego, ia tomar o partido do condutor, entrando em “panne”.

Mas o que me interessa neste “fait divers” é a presunção, fundada, certamente, na ética judeo-cristã, de que se ofende alguém acusando-o de não estar a trabalhar. Mesmo neste caso, em que, aparentemente, o idoso já teria dado à sociedade o contributo que se lhe podia pedir, a injúria funciona, pelo menos na cabeça de quem a profere.

Ao mesmo tempo, são tantos os inactivos, forçados ou não, legítimos ou não, que a injunção de “ganhar o pão com o suor do seu rosto” parece já uma legenda a pedir a perícia dum Champollion.

Há todo um debate por fazer à volta das modernas figuras da Necessidade.

segunda-feira, 12 de setembro de 2005

TUDO É POSSÍVEL

Hannah Arendt



 
“As predições do futuro nunca são mais do que projecções dos presentes processos e procedimentos automáticos, quer dizer, de ocorrências que provavelmente acontecerão se os homens não actuarem e se nada de inesperado sobrevier.”

Hannah Arendt (On violence)


Desde a televisão ao telemóvel e à Internet, e desde os espectaculares ataques terroristas, a tsunamis e furacões devastadores, as últimas décadas têm sido férteis em acontecimentos inesperados, e de enormes consequências a todos os níveis.

O futuro do mundo parece não ser menos imprevisível do que o do indivíduo, cuja condição física e social está sujeita à roleta russa das doenças, acidentes e crises de todo o género.

Não tira que se continuem a fazer projecções e a sentenciar, com convicção aparente, sobre o que nos espera se continuarmos na mesma rota, de baixa produtividade, défice orçamental, etc., etc.

Ora, nem os profetas da desgraça, nem os Pangloss do governo que estiver em exercício, podem saber do que falam.

Nós é que temos de saber que TUDO é possível.

sexta-feira, 9 de setembro de 2005

O DIREITO ÀS PERSIANAS

Evgueni Zamiatine





Devo a um dos blogs que mais aprecio o conhecimento de Evgueni Zamiatine (1884/1937), emigrado russo que escreveu em 1920, na aurora duma época que para tantos significava a realização da Utopia, “Nós”, uma distopia que mergulha no mais negro pessimismo.

Percursor de Huxley e Orwell, mas por sua vez influenciado pela ficção de H.G.Wells, Zamiatine extrapolou para o ano 3000 (um salto mais prudente do que o de Orwell, em “1984”), a tendência que julgava já visível na sociedade bolchevique e que, no seu entender, corresponderia, mais do que a uma lei social e política, a uma lei do cosmos (“A história do mais importante”).

O método para nos confrontar com a “alienação” do indivíduo inteiramente submetido ao poder do Estado é o da inversão do sentimento. O polícia que nos causaria horror e revolta, por exemplo, é-nos apresentado na mais natural das missões, inspirada pela benevolência sem limites do poder:

“É muito agradável sentir o olhar vigilante de alguém sobre o nosso ombro, alguém que está ali para evitar que dêmos um mau passo, que façamos disparates. Pode ter o seu quê de sentimental, mas penso sempre na mesma analogia: a dos anjos da guarda com quem os antigos costumavam sonhar. Quantas das coisas com que eles se limitavam a sonhar se materializaram na nossa vida!”
 
Outra intuição luminosa:
O indivíduo, quando “uma alma se forma dentro de si” só pode meter baixa, como dizemos. Se o pensamento é o crime por excelência, resta-lhe adoecer ou fingir que adoece, e opor à razão infalível do “Big Brother” a Criação. A proposição do corpo é uma maneira de invocar Deus. E o médico é Hermes Psicopompo, Condutor de Almas, que estabelece a comunicação entre os dois mundos. É o relé da subversão.

Ainda vou a meio, mas já encontrei coisas deliciosas, como esse “direito às persianas” (num mundo em que tudo se devia fazer diante dos outros), que só podia ser requisitado no “Dia Sexual”, também ele controlado por um cupão.

quinta-feira, 8 de setembro de 2005

OS VALORES DO GINÁSIO

Leptis Magna (Líbia)




“Um cavalo de corrida genial confirma em Ulrich o sentimento de ser um homem sem qualidades.”

Musil


Modernamente, o ser mais parecido com um deus pagão deve ser o jogador de futebol. Se, para além de ser requestado pelos clubes e pela publicidade bancária, tiver uma boa figura, se for escultural, é por todos adulado, desde o dirigente desportivo à revista sentimental, a ponto do pobre Apolo só não perder a cabeça se for, realmente, divino.

Ainda agora, atingido pela morte do pai, um desses ídolos, vencendo a dor natural, entendeu colocar a carreira acima do luto, pelo que, à porfia, se levantou um coro de louvores à sua abnegação e sentido profissional.

São coisas a que nos vamos habituando.

Mas claro que a idolatria é isso mesmo, e felizmente que nenhum Moisés vai descer da montanha por tão pouco.

quarta-feira, 7 de setembro de 2005

A SEGUNDA QUEDA DO REI ÉDIPO

Édipo e a esfinge de Tebas






“(...)Mas também não se deve supor nenhuma malícia, nenhum género de alma inferior, nenhum pensamento separado e como que perdido, enfim, nada do que o espírito preguiçoso reúne sob o nome de inconsciente.”
Alain (Idées)


 
No Nouvel Observateur, volta-se a debater o valor científico da psicanálise e dos seus conceitos maiores, como o do Inconsciente.

Por um lado, e segundo o testemunho do próprio fundador, nenhum dos doentes tratados no famoso divã conheceu a cura (a análise pode ser “interminável”), por outro, nenhum facto ou lei foram provados, de modo a satisfazer os critérios científicos. Popper considera a doutrina, ironicamente, como uma metafísica.

Para recriar os seus próprios mitos, Freud recorre largamente, no sistema, à mitologia grega, a começar pelo maior sucesso do seu revivalismo: Édipo.

Não se pode subestimar o papel da psicanálise como dispensadora de sentido e de racionalidade. Uma disfunção, um problema, ganham em passar a sintoma e, desde logo, a um diagnóstico compreensivo e integrador da personalidade, se bem que falso.

Mas não estamos no mundo físico e dos objectos a que se possa aplicar o rigor matemático.

A conclusão do artigo é que, não sendo uma ciência, a psicanálise não deixa de ser uma espiritualidade, a par do ioga e do tantrismo, pelo que tem o seu lugar mais do que justificado no mundo de hoje.

E embora a tradição dos Sutra ateste duma perene reflexão sobre a sexualidade, de que visão do cosmos se pode reclamar a psicanálise?

terça-feira, 6 de setembro de 2005

CONSIDERAÇÃO INQUIETA





Para Raul Brandão, o Baleal é a mais linda praia portuguesa. Mas neste domingo, ao fim de muitos anos de noite artificial, foi para mim o reencontro emocionante do céu estrelado.

No fim da ilha, por detrás da capela de S. Estêvão, cuja sombra nos protege das luzes mais próximas, enquanto o grito surpreendente das cagarras se faz ouvir nos ares e entre os rochedos, de repente, o luzeiro abissal das constelações.

Lá estava o colar de pérolas da ursa maior e as outras figuras que não soube decifrar, mas que, de qualquer modo, me prenderiam na borda do precipício. As metáforas que acorrem de muito longe no tempo, vindas de textos insignes, recriam o mais belo espectáculo do mundo.

Mas haverá aqui um sujeito diante duma cartografia identificada pelos mitos poéticos ou pela balbuciante astronomia?

É terrível dizê-lo, mas é a impaciência de que fala Musil que nos permite subtrair-nos à força aspirante e irrealizante que os nomes ocultam.

“Podia-se vê-lo sentado numa pedra, esquecido do mundo, mergulhado na contemplação, torturado por essa impaciência frenética. Ele tinha ido até ao fim, tinha acolhido tudo em si e corria o perigo de começar a falar alto na sua solidão, para contar a si próprio tudo outra vez. “ 

"O Homem sem Qualidades" (Robert Musil)

domingo, 4 de setembro de 2005

O RESPEITO DOS PARENTES



 


“Grandes primatas em vias de extinção”, diz o título da notícia. E o secretário-geral da ONU comenta que “são nossos parentes...mas não os tratamos com o respeito que merecem.”

Tal como o mundo vai, se calhar, a pior estratégia para salvar qualquer espécie ameaçada é tratá-la como parente. Porque o semelhante, nos últimos cem anos, foi mais mal tratado pela razão que classifica do que pelos cataclismos naturais.

Por isso não estou certo do que aqueles que contestam Darwin, ainda hoje, não possam ser bons aliados dos primatas, o que nada tem a ver com o respeito.

E será o respeito que salva, na Índia, as vacas do matadouro?