quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Wroclaw 

A INTELIGÊNCIA E O JUÍZO



"Uma consequência suplementar é que o desfasamento entre a idade em que o espírito humano está mais desenvolvido e aquela em que se pode ter adquirido o conhecimento exigido a um especialista competente se torna cada vez maior à medida que passamos dos assuntos inteiramente teóricos àqueles que concedem a maior parte ao concreto. Cada um de nós vive provavelmente a maior parte da sua vida das ideias originais que concebeu quando era muito jovem. Daí decorre que um matemático ou um lógico podem realizar as suas obras mais brilhantes aos dezoito anos, enquanto que, para passar ao outro extremo, um historiador pode ter que esperar pelos seus oitenta anos para nos dar o seu melhor trabalho."

"Essais de philosophie, de science politique et d'économie" (Friedrich Hayek)

Hayek explica a grande diferença entre as chamadas ciências da natureza e as ciências sociais. As primeiras podem ser cada vez mais especializadas e "produtivas" nas suas aplicações práticas, como no-lo confirma a história do Ocidente. Pode dizer-se que o sucesso dessa especialização não é passível de limite, nem, realmente, de compreensão, enquanto não for confrontado com um ideal, qualquer que ele seja. Mas com Deus tendo morrido todo o ideal, só os efeitos a prazo da tecnologia nos proporcionarão algo de semelhante a um limite. De facto, não é preciso ter vivido muito para atingir a máxima força da inteligência, como o comprova o exemplo da teoria da relatividade.

Mas o concreto é do domínio, não da inteligência, mas do juízo, que é a função do espírito mais característica do humano, porque pressupõe a liberdade e a pluralidade (Arendt).

Hayek diz também: "Mas ninguém pode ser um bom economista se só for economista. E sou mesmo tentado a acrescentar que o economista que é só economista se arrisca a tornar-se um empecilho, senão positivamente perigoso."

É por isso que, sempre que falam os jovens prosélitos das teorias económicas e de gestão em voga, devia acender-se uma luz vermelha.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

(José Ames)

O PASSO DA VACA





O Wilde (1997-Brian Gilbert) interpretado por Stephen Fry é magnífico.

A tomada de consciência da sua identidade sexual, a certa altura da sua vida, permite-lhe invocar a inocência nas relações com a mulher e os filhos, ao mesmo tempo que, sob a fatal influência de Lord Douglas, desce de degrau em degrau até ao poço de onde soltará o seu "De Profundis".

As contradições em que se enredou no tribunal têm o cunho da verdade psicológica. Para justificar o "amor grego" perante uma assembleia puritana e bem-pensante era preciso mais do que o seu génio mundano e as brilhantes réplicas do seu teatro.

Mas é o próprio Wilde que, na metáfora do "Dorian Gray", reconhece a realidade do vício e os perigos de se afastar das convenções.

Alain dizia que não se deve apressar o passo da vaca, porque ela nos mostra logo os cornos. Foi o que fez a sociedade puritana nesse processo infame.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

(Afurada)

A AMIZADE SEGUNDO MARCEL


Jacob Burckhardt (1818/1897)


"Eu disse (...) o que penso da amizade: a saber que ela é tão pouca coisa que tenho dificuldade em compreender que homens de algum génio, e por exemplo um Nietzsche, tenham tido a ingenuidade de lhe atribuir um certo valor intelectual e em consequência recusar-se a amizades a que não estivesse ligada a estima intelectual."

"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Proust admira-se que um homem como Nietzsche tenha deixado o seu trabalho "para ir ver um amigo (Jacob Burckhardt) e chorar com ele, tendo tido conhecimento da falsa notícia do incêndio do Louvre." e compara esse "apoio exterior", essa "hospitalização" numa individualidade estranha à embriaguez.

É surpreendente o pouco caso que faz dos sentimentos, nesta opinião, alguém de uma sensibilidade quase mórbida e de uma dependência dos afectos tão irresistível. Mas, a certa altura, a sua vida tornou-se o casulo exclusivo da grande obra. Compreende-se, a essa luz, que o valor intelectual de uma amizade só podia concorrer como o trabalho da escrita, sem nunca atingir mais do que a superficialidade.

A ideia é, assim, perfeitamente consequente com as necessidades do criador, embora não deixe de ser perturbadora a indiferença, senão a ingratidão, com que o narrador corresponde aos testemunhos de amizade. Há, talvez, que imaginar aqui uma contaminação retrospectiva dessa indiferença.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

(José Ames)

SUBLIME FEALDADE

Georges Danton (1759/1794)

Quando Paris se mobilizava para a guerra sob a direcção da Comuna, depois dos acontecimentos de Agosto de 1792, "um bando de mulheres furiosas encontrou Danton na rua e injuriou-o como quem injuriara a própria guerra, acusando-o de toda a Revolução, todo o sangue que ia ser derramado, e da morte dos seus filhos, pedindo a Deus que tudo recaísse sobre ele."

Danton não se espantou. "Pôs-se em cima de um marco da rua e, para as consolar, começou por injuriá-las na sua língua. As suas primeiras palavras foram violentas, burlescas, obscenas. E ei-las pasmadas. O seu furor, verdadeiro ou simulado, desconcerta o furor delas. Este prodigioso orador, instintivo e calculado, tinha por base popular um temperamento sensual e forte, feito para o amor físico, onde dominava a carne e o sangue; Danton era em primeiro lugar um macho; havia nele muito de leão e de mastim, e também muito de touro. A sua máscara assustava."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)

Michelet termina este episódio dizendo que "as mulheres não aguentaram; choraram pela França em vez de chorar pelos seus filhos, e, soluçantes, fugiram, escondendo o rosto no avental."

Sentimo-nos com o orador e a sua "sublime fealdade" frente a esse grupo de mulheres, numa rua de Paris. A vivacidade da descrição dá-nos uma compreensão intuitiva do clima revolucionário.

As forças que actuam por detrás destas figuras já são demasiado abstractas e sujeitas a caução. Mesmo esta pitoresca psicologia sexual oferece resistência, podemos apoiar-nos nela. A anedota poderá ser dispensada quando pretendemos atingir o particular e o individual?

Não há aqui nada a deduzir (de uma hipotética lei), mas tudo a interpretar. Dir-se-ia que se há uma lei é a da não literalidade, por isso os mitos nos dizem mais sobre o que aconteceu do que a notícia.

Porque, como alguém disse, se pressupõe um sentido antes mesmo de o termos encontrado. Coisa que falta à notícia, mas que é o principal no mito.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Foz (José Ames)

A RAZÃO À DEFESA




"Para todos os géneros de sistemas reais que existem no mundo, quer se trate de unidades físicas ou biológicas, para as pedras, as plantas ou os animais, o mundo é demasiado complexo: ele contém mais possibilidades do que aquelas a que o sistema pode reagir, ao mesmo tempo que se conserva. Um sistema posiciona-se face a um "ambiente" constituído de maneira selectiva e quebra-se ao contacto de contradições que se produzem entre o mundo e o meio ambiente."

"La Confiance" (Niklas Luhmann)

Depois que os limites da razão foram postulados por Kant, esta ideia de que o mundo é mais complexo do que aquilo que podemos racionalizar e compreender impunha-se por si própria.

Mas Luhmann dá uma volta ao problema, consequente com a sua expulsão do sujeito, o qual depois de ter de abandonar o paraíso deixa de estar no centro das coisas. A razão não seria já o instrumento para desbravar o desconhecido e acrescentar novos conhecimentos à herança da humanidade, como o indómito explorador cuja pesquisa não conhece limites. Não, agora ela aparece-nos ao serviço de uma estratégia de sobrevivência, protegendo a vida humana dos "raios" da complexidade.

Os seus maiores feitos não são no sentido de nos aproximarmos do conhecimento da verdade, num progresso ilimitado de raiz iluminista, mas, à medida que a nossa organização se complica, nos protegermos da nossa ignorância face ao que nunca poderemos sondar na sua verdadeira profundidade.

A redução da complexidade defendida por Luhmann seria assim como que o regresso a um antropocentrismo defensivo e sem ilusões.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017


Wroclaw 

A MÁSCARA CARNÍVORA


"O retrato de Dorian Gray"


A ideia, expressa no romance de Oscar Wilde, "Dorian Gray", de uma imagem que imediatamente revelasse a qualidade da alma de uma pessoa é muito interessante e é aparentada com a feitiçaria.

Como se sabe, Dorian vendeu a alma pela juventude (como Fausto): ele conservaria sempre os seus vinte anos e, em sua vez, o retrato envelheceria, expressando não só a decadência física, mas a própria degradação moral a que está associada a transacção com o diabo.

Tendo levado uma vida criminosa, menos em função desse pacto do que da nefasta influência de um cínico, Dorian, no final, põe termo à vida atacando o retrato e trocando ambos as máscaras.

Por muito que os olhos sejam o "espelho da alma", conservam sempre o ambíguo da profundidade. No pacto de Dorian Gray, o retrato é, sob o aspecto de uma fealdade crescente, o espelho que diz toda a verdade, mesmo a mais secreta, o espelho que todos nós precisamos de esconder. E é o que faz a personagem, levando o retrato para o sótão e passando longas horas diante dele, sem testemunhas.

Se pensarmos bem, é o segredo que nos concede a liberdade de mudarmos, pois nos protege do juízo definitivo dos outros e de, com isso, nos tornarmos a própria máscara.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

(José Ames)

O GRANDE PLANO


David Griffith (1875/1948)


"A lenda pretende que Griffith ficou tão emocionado pela beleza de uma actriz durante a rodagem de um dos seus filmes, que fez de novo filmar, de muito perto, o instante que acabava de o deslumbrar, e que, ao tentar intercalá-lo e conseguindo-o, inventou o grande plano. A anedota mostra bem em que sentido se exercia o talento de um dos grandes realizadores do cinema primitivo, como ele procurava menos agir sobre o actor (modificando o seu desempenho, por exemplo), do que modificar a relação deste com o espectador (aumentando a dimensão do seu rosto)."

"Esquisse d'une Psychologie du Cinéma" (André Malraux)


Como o teatro foi o primeiro modelo do cinema, e há autores (como Oliveira) que pretendem ser isso o essencial, a liberdade da câmara quanto ao espaço (por exemplo, a distância em relação aos actores) e ao tempo (pensemos só no uso da montagem paralela em "Intolerância" do mesmo Griffith) teve que ser descoberta.

Que o desejo esteja na origem do "close-up" está, assim, na ordem das coisas. Malraux, mais adiante, acrescenta: "é, portanto, da divisão em planos, quer dizer a independência entre o operador e o realizador em relação à própria cena, que nasceu a possibilidade de expressão do cinema - que o cinema nasceu enquanto arte."

Welles disse qualquer coisa de parecido reconhecendo o primado da montagem. Mas como não podemos imaginar um filme feito, por exemplo, de sequências avulsas, retiradas daqui e dali, temos de considerar como um exagero esta opinião.

Quanto ao grande plano, que permite dirigir o olhar e a atenção do espectador, tem muito de manipulação. Talvez seja por isso, e devido às reduzidas dimensões do ecrã, que as telenovelas fazem dele uma tão generosa utilização.

E aqui é a sugestão, medium quente, contra o princípio interactivo da televisão formulado por Mc Luhan.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

O rio Vístula 

ENTROPIA

Entropia (http://www.techfak.uni-bielefeld.de)

"Assim um organismo vivo aumenta constantemente a sua entropia, ou cria entropia positiva e assim tende a aproximar-se do estado perigoso de entropia máxima, que é a morte. Não pode manter-se afastado dela, quer dizer, permanecer vivo, senão retirando continuamente do meio ambiente entropia negativa. Logo, um organismo "alimenta-se" de entropia negativa."
"What is life?" (Erwin Schroedinger)

Em que é que nos ajuda uma definição da vida como esta? A força enigmática, sobrenatural, com que os Antigos explicavam o fenómeno (mas também havia quem defendesse, como Demócrito, que tudo era uma questão de átomos) mantinha uma barreira de superstição que "protegia" o homem do avanço temerário no experimentalismo e na manipulação.

A entropia é o grau zero do materialismo. O conceito brotou espontaneamente da árvore de Demócrito logo que se esvaziaram os templos.

Não foi por acaso que Marx escolheu este filósofo para assunto da sua dissertação académica.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017


(José Ames)

O FANTASMA NA MERCADORIA



"A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando se faz uma mesa. A mesa não deixa de ser de madeira, coisa sensível e ordinária. Mas a partir do momento em que ela entra em cena como mercadoria, transforma-se numa coisa supra-sensível. Ela não está apenas assente com os pés em terra, mas põe-se de cabeça para baixo, face a todas as outras mercadorias, e sai da sua cabecinha de madeira toda uma série de quimeras que nos surpreendem ainda mais do que, sem nada perguntar a ninguém, se ela se pusesse a dançar."

"O Capital" (Karl Marx, citado por Jacques Derrida em "Spectres de Marx")

Derrida recorda a vaga espiritista que se espalhou na Europa, na segunda metade do século XIX, o interesse de Max Stirner, por exemplo, pelos "Mistérios de Paris" de Eugène de Sue e as "tentações espiritistas de Victor Hugo", para situar o devaneio fantasmático, naquela passagem, do autor de "O Capital".

Porque não se trata apenas de uma abstracção, segundo a qual devêssemos pensar o objecto e o seu "valor de uso", enquanto mercadoria. Marx sente a necessidade de efabular uma vida própria, enquanto "espírito", desse alter ego da mesa.

E isso era necessário, talvez, para transmitir a essa metamorfose do "valor de uso" em "valor de troca" a qualidade moral adequada à visão profética da obra.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017


(Burgos)

O OPOSTO DO CÍNICO

(Charles Chaplin in "The Tramp")


Charlot é um gentleman que vive abaixo dos seus pergaminhos. Não abdica duma indumentária formal, da sua cana e do chapéu de coco, quando não das luvas. Essa aparência exprime a reivindicação de ser tomado pelo que não é, ou uma adesão ingénua aos valores da sociedade que o põe à margem?

Ao mesmo tempo que limpa os ouvidos com o guardanapo, serve-se do chapéu para um ballet de vénias no registo da "delicadeza". Porque tropeça em toda a espécie de obstáculos, anda munido de uma escova para limpar o pó do fato e tudo lhe serve para cumprir os preceitos higiénicos a que se sente obrigado pela sua imitação da dignidade. Mesmo a cana lhe pode ser útil para limpar as unhas.

Esta rigidez iconográfica é compensada por uma incrível agilidade física que lhe permite escapar por entre as pernas dos polícias ou esquivar-se ao murro do brutamontes.

Era preciso que a sociedade arrogante e preconceituosa da sua origem fosse confrontada com este vagabundo que insiste em ser, mesmo nos maiores apertos, uma paródia do aristocrata.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

(José Ames)

UMA QUESTÃO DE CONFIANÇA




"A descrição das relações entre os membros do Congresso e os funcionários aquando da preparação do orçamento federal americano é disso um bom exemplo. O funcionamento real da administração pública é demasiado complexo para que os membros do Congresso possam dela ter uma visão geral e para que possam avaliá-la. Eles não podem agir sem ter confiança na integridade pessoal dos funcionários que dominam os detalhes. Na prática, os representantes não controlam, portanto, os factos, mas somente a sua confiança, e é só através dela que podem controlar os factos. E, sob esse constrangimento, ao menor sinal de desonestidade, eles reagem com uma grande intensidade emocional, retirando a sua confiança ou ainda por meio de outras sanções."

"La Confiance" (Niklas Luhmann)

Este é um bom exemplo para desobnubilar os espíritos crédulos na possibilidade de uma democracia que faça jus ao seu nome e às suas origens. E isto por nenhum vício constitucional ou por nenhuma relação de forças adversa.

Tal como a representação política, que é uma assimptota cada vez mais divergente, o poder democrático é ainda mais indirecto e afastado das efectivas decisões do que os seus críticos sempre disseram. É, de facto, o pior dos regimes "à excepção de todos os outros".

Que a complexidade da "coisa pública" torne os políticos dependentes de uma coorte de técnicos e de especialistas que dominam os detalhes que eles não podem dominar, e que só possam julgar as opções pelos seus resultados práticos é uma situação muito próxima da monarquia constitucional.

O soberano não sabe, nem tem de saber. Basta que esteja rodeado das pessoas certas, as quais premiará ou castigará, conforme os êxitos ou os insucessos.

Não muda nada que este monarca seja eleito de quatro em quatro anos e que tenha tantas cabeças quantas as do governo e o parlamento reunidos.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Burgos 

A ÉTICA DA SAÚDE



Hipócrates (460/377 AC)


"Contudo, é movido pela mesma necessidade que leva a Medicina a não ser apenas a teoria do Homem são, mas também a do homem enfermo, quer dizer, patologia e terapêutica, que o conceito platónico da política abarca as formas degeneradas do Estado juntamente com as normais. Já no Górgias se via isto claramente. O que na República há de novo é a aplicação deste conceito da ciência, segundo o qual o conhecimento de um objecto implica ao mesmo tempo o seu contrário."

"Paidéia" (Werner Jaeger)

Platão não dispunha do conceito moderno de sistema, nem do de meio ambiente ou de evolução, que são outras tantas objectivações do espírito para interpretar a política num sentido normativo. A teoria da evolução, por exemplo, parece dar razão a uma teoria do progresso. Outros, vêem na História e na sucessão de sistemas um sentido a priori que é a continuação, noutra linguagem, da ideia do Juízo Final.

Na falta destes conceitos, Platão inspirou-se na ideia de ordem cósmica que, no homem, é desfeita pela doença e a morte. Por isso a Medicina foi a primeira ideia do que deve ser e do que não deve ser em política. Depois da sociedade humana ter evoluído como evoluiu, podemos perguntar-nos se essa ideia "iatrológica" faz ainda algum sentido.

Mas se reconhecermos que o homem da medicina hipocrática perdeu, entretanto, tudo o que fazia dele uma natureza individual e que o conceito de saúde é, cada vez mais, político e dependente da organização social e até do estado do planeta, a norma platónica continua válida (de qualquer modo, mais do que uma limitação da política à pura influência das ideias).

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

(José Ames)

A TRANSPARÊNCIA


http://www.mark-grosset-photographies.com


"A autoridade é sempre a representação-delegação (vertretung) de uma complexidade que não é explicitada de uma forma detalhada. O seu estilo depende da maneira como é representada esta possibilidade de explicitação."

"(...) a autoridade não é questão de um saber que seria o objecto de um dom e seria apenas acessível a um pequeno número; releva antes de uma competência específica que se aprende e se exerce no modo da divisão do trabalho."

"La Confiance" (Niklas Luhmann)

Isto seria, segundo Luhmann, consequência de não existir mais a verdade do ser por revelar, mas apenas afirmações possíveis e processos de tratamento da informação, processos "instituídos de uma maneira independente em relação a estruturas sociais determinadas, independentemente, sobretudo, de um estatuto superior repousando sobre outras funções, quer se trate, por exemplo, de funções religiosas, políticas ou económicas."

A "transparência", por oposição à complexidade, permitir-nos-ia dispensar as decisões problemáticas e não consensuais. Porque, em primeiro lugar, se o futuro fosse previsível, poderíamos trocar toda autoridade pelo "piloto automático", ou colocar à frente da administração do Estado a cozinheira de Lenine.

O problema é que o estado seguinte do universo nunca pode ser transparente nesse sentido, e a autoridade é, precisamente, o que nos permite agir como se o fosse, como se soubéssemos o futuro e pudéssemos sempre honrar as nossas promessas.

A autoridade é um exemplo daquilo a que Luhmann chama de mecanismo para redução da complexidade.

domingo, 6 de agosto de 2017

(Czestochowa)

A RAIZ DA INSPIRAÇÃO



Paul Cézanne (1839-1906)


"Entre esses quadros, alguns dos quais pareciam os mais ridículos às pessoas mundanas interessavam-me mais do que os outros ao recrearem essas ilusões de óptica que nos provam que não identificaríamos os objectos se não fizéssemos intervir o raciocínio. Quantas vezes de carro não descobrimos uma comprida rua clara que começa a alguns metros de nós, quando foi apenas uma parede violentamente iluminada que nos deu a miragem da profundidade! Então, não é lógico, não por artifício de simbolismo mas por sincero retorno à própria raiz da impressão, representar uma coisa por essa outra que, no relâmpago de uma primeira ilusão, nós tomámos por ela?"

"Le Côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Proust entendeu perfeitamente a pintura moderna nestas linhas. Aquele raciocínio que nos permite a identificação das coisas é o inimigo da arte depois de Cézanne. Por isso tantos pintores encontraram a inspiração no titubear das crianças e nos primitivos.

Mas como a variação das formas "ingénuas" é limitada, foi preciso dar outro passo para algo que já não tem nada a ver com a percepção.

O "raciocínio" continua proscrito, por infecundo, e a própria imaginação não é tão livre como promete. O automatismo dos dadaístas e dos surrealistas já não garante a diferença. O passo decisivo foi tornar o sistema da arte (que inclui as obras do passado, os museus, a internet e a bolsa de valores) na única fonte de inspiração.

Mais virgem do que o inconsciente do artista individual é o efeito da reacção em cadeia das obras de arte "conversando" umas com as outras.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

(José Ames)

ENTRE AS GUERRAS

Bertolt Brecht (1898/1956)


"O aspecto animal e o aspecto intelectual, vindos à luz e levados ao apogeu, encontravam-se em interacção, como uma espécie de corrente alternada. Quem quer que estivesse desperto para a sua animalidade antes de chegar a Berlim tinha de a empurrar até ao seu máximo para poder afirmar-se contra a dos outros e logo se achava gasto e arruinado, se não fosse de uma solidez excepcional. Aquele que, pelo contrário, fosse dominado pelo seu intelecto e não tivesse cedido ainda à sua animalidade só podia sucumbir à complexa riqueza do que era proposto ao seu espírito. Uma pessoa sentia-se fustigada por todas estas coisas múltiplas, contraditórias, brutais e não se tinha tempo de compreender o quer que fosse, só se sentiam os golpes. Não se tinham ainda digerido os da véspera e já os novos choviam. Arrastávamo-nos assim em Berlim como um pedaço de carne estragada, não nos sentíamos todavia batidos o suficiente e estava-se à espera dos novos golpes."
"Le flambeau dans l'oreille" (Elias Canetti)

Era assim que o jovem Canetti via a capital da Alemanha nos anos vinte do século passado. O homem dividido pela aceleração das coisas e o desequilíbrio espiritual. Faltava o tempo de pensar.

Alguns, como Brecht, atravessavam o turbilhão, secretos, aparentemente impávidos, mas retirando a sua força da verificação das profecias. "Era a custo que se acreditava que tivesse apenas trinta anos, não parecia ter envelhecido, mas ter sido sempre velho."

Esse clima sobreexcitado fez a cama do pior dos regimes, quase por necessidade física de encostar o corpo.

Vivia-se no meios dos destroços da última guerra e a única coisa que parecia firmar-se eram os músculos da próxima.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

(Toledo)

A ASTÚCIA DO PODER

(O general Petr Ivanovic Bragation)

"É assim que, no seio das grandes organizações nas quais o campo oficial das responsabilidades ultrapassa largamente, nos postos superiores, a capacidade de responsabilidade do indivíduo (nomeadamente a capacidade de tratar a informação), emergem relações pessoais de confiança muito características entre os superiores e os seus subordinados, entre os postos decisórios e o pessoal, entre os parlamentares e os altos funcionários."

"La confiance" (Niklas Luhmann)

Evidentemente, essa incapacidade de abarcar a responsabilidade nunca é admitida. A própria delegação não é, realmente, uma transferência de responsabilidade e a confiança que tem forçosamente de existir entre quem não sabe mas pode e quem sabe, mas é um subordinado, também não pode ser completamente explícita.

Há aqui, para além de uma pretensão, que não é pessoal, mas que o sistema endossa ao indivíduo, de saber aquilo que assume, uma discriminação do saber, que está sempre dependente do poder. O significado da palavra hierarquia alerta-nos para a ordem das necessidades fundamentais. Onde menos se espera, representa-se uma espécie de comédia de todos os tempos.

Era assim que o general Bragation, em "Guerra e Paz", aprovava os factos consumados como se tivessem sido ideias suas.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

(José Ames)

APOLO DE PERUCA

(Le Lever du roi Louis XIV)

"Os ministros tinham conseguido persuadir o rei do abaixamento de tudo o que fosse elevado, e que recusar-lhes esse tratamento era menosprezar a sua autoridade e o seu serviço de que eles eram os órgãos porque, de outro modo e por eles mesmos, não eram nada. O rei, seduzido por este pretenso reflexo de grandeza sobre si próprio, explicou-se tão rudemente a este respeito, que não houve outra maneira senão inclinar-se a este novo estilo, ou deixar o serviço, e cair ao mesmo tempo, os que deixavam, e mesmo os que não serviam, na acintosa desgraça do rei e sob a perseguição dos ministros, encontrando-se as ocasiões disso a todo o momento."

"Mémoires" (Saint-Simon, citado em "Le Côté de Guermantes")

Luís XIV, o rei mais poderoso da época, é nesta passagem do grande memorialista, o exemplo da ductilidade do poder sempre no sentido de se extremar.

A proverbial ignorância do monarca não o impedia de pretender que o considerassem como o deus que ilumina o mundo.

A astúcia de que deram provas os ministros burgueses fê-los beneficiar da degradação da nobreza e, agarrados à real figura de proa, guiaram a barca do Estado nos caminhos do monstro burocrático em que se tornou depois.

Luís, que era beato (porque mesmo o maior poder precisa encontrar o seu princípio fora de si próprio), não o era o suficiente para dispensar a tirania dos médicos.

E mesmo um absolutista vaidoso se tinha que render à fita métrica. Por muito que disputasse as dimensões de uma janela, a medida punha fim à régia pretensão.

É o exemplo oposto do escravo no "Menon" (Platão).