sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008


Dubrovnik (José Ames)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

UN PROMENEUR


"Les rêveries du promeneur solitaire"
- René Magritte



Estendido na relva do parque, leio. Mas surge-me a figura dum homem que procura repouso e não sabe como. O inesperado encontro não consegue ensombrar-me porque o céu é azul e tudo brilha. Assim, levanto-me depois duma imperceptível hesitação. Primeiro explicamos o que andamos a fazer por tão solitários recantos. O livro aberto ainda fala por si, e é como se eu tivesse que voltar à cama a todo o momento.

Ele está com baixa há longos meses e o médico mandou-o distrair o espírito. Eis uma pessoa com quem não teria espontaneamente uma conversa se não fosse aquela afinidade do lugar e a presença benfazeja das árvores. Quantas vezes me limitei a saudá-lo no autocarro e nas escadas da empresa! O seu caso é um daqueles incompreensíveis efeitos da política.

Ao fim de trinta anos de trabalho, a profissão nunca é simplesmente a actividade remunerada, necessária pela força das circunstâncias, mas que se pode esquecer como os anos de sono. Mesmo o frívolo procura resgatar o tempo do trabalho. É como que o monumento duma vida erguido insensivelmente pelo esforço quotidiano. Não parece que isso se salve do passado, mas é preciso ter vivido para lhe conhecer o significado. O homem não pode desprezar nada do que foi, e eu rio-me dos que dizem só pensar na reforma. Agora, a este doente imaginário, os anos de África e na província são o melhor do seu esforço dado ao patrão. Fala-me em sacrifícios e horas não pagas, quilómetros por sua conta. Tudo para ser ultrapassado pelo amigo de fulano que nem quinze anos de casa tem, e toda a gente sabe o que vale.

Foi tirar um electrocardiograma. Não se deve falar no trabalho porque se exalta logo, e eu que desculpe ter-me interrompido a leitura. Fecho o livro para mostrar as minhas intenções e convido-o a atravessar o parque, porque é quase meio-dia.

A família que veio escolher plantas para casa já leva o saco atulhado. O homem vai à frente com a faca. Sinto-me responsável por cada flor e cada pé de erva e, no entanto, sei que os verdadeiros vândalos não são estes. A cidade ainda não usa o seu parque e é isso talvez que me seduz. O meu azedo interlocutor quer ouvir a minha opinião sobre o que se passa na empresa: a gestão, os externos, as promoções. Bem vejo que o meu diagnóstico o justifica, porque o apaixonado quer ver tudo da mesma cor, e se o mundo tiver que ruir só para lhe dar razão, ele não hesita. Ora a empresa vai mal na opinião corrente. Isso, porém, não quer dizer que já alguma vez estivesse melhor de saúde. É uma crise da liberdade de palavra que, evidentemente, pode ter efeitos económicos. Recorrer à baixa para não ter de enfrentar uma situação que se considera vexatória é um expediente usado por muitos, e eu confesso a minha intolerância. Porque é fugir pela primeira porta aberta.

Um maior rigor da lei e mais coragem da parte de alguns médicos forjariam outro tipo de dignidade, com o resultado de haver mais respeito nas empresas pelas pessoas. Mas eu digo ainda que essa luta com os homens era muito melhor para a saúde do que esta reforma perseguida por fantasmas. Vontade de se condenar.

DA DISCUSSÃO NASCE O MESMO?


http://marxismo.files.wordpress.com



"É possível dizer de quase todas as teorias que elas estão de acordo com muitos factos; esta é uma das razões pelas quais uma teoria apenas se pode considerar corroborada se não conseguirmos encontrar factos que a refutem, e não se conseguirmos encontrar factos que a sustentem."

Karl Popper ("A Pobreza do Historicismo")


Também é por isso que numa discussão com outra pessoa uma única contradição vale contra toda a suposta confirmação dos factos.

Mas não é difícil evitar a contradição lógica, dentro do discurso, e é impossível encontrar um facto que refute uma ideia suficientemente imprecisa, como são aquelas que se esgrimem numa contenda de palavras.

Daí que as discussões só convençam os que já tinham começado a mudar de opinião, mesmo sem o saberem.


(José Ames)

A PROMESSA NA TERRA



"A desaparição duma dependência ontológica em relação ao além pode ser substituída por uma presença de Deus na identidade política, como foi o caso nos Estados Unidos ("One people under God"), na Polónia, na Irlanda, onde um certo tipo de pertença religiosa se tornou constitutiva da identidade política."

Charles Taylor (citado por Philippe de Lara)


É talvez o mais impressionante nas manifestações religiosas de massa nos EU que nos chegam do cinema e da televisão.

Nenhum Jeová para arrebatar o povo eleito aos outros deuses e castigá-lo pela sua cerviz dura. Nenhum profeta ou quem os guie através do deserto.

Os Americanos estão desde sempre na Terra Prometida e o sucesso material do seu país confirma-os na qualidade de eleitos.

Sem esses elementos da tradição religiosa, sentir-se-iam o que os outros acham, às vezes, que eles são: os bárbaros modernos.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

LICENÇA PARA INOVAR


"Alphaville" (1965-Jean-Luc Godard)


"Não podemos tentar aqui contar a longa história de todas as boas causas que acabaram por ser reconhecidas, somente depois de pioneiros solitários terem devotado as suas vidas e fortunas a erguer a consciência pública, das suas longas campanhas até que, por fim, ganharam o apoio para a abolição da escravatura, a reforma penal e das prisões, a prevenção da crueldade em relação às crianças e aos animais, ou um tratamento mais humano dos loucos. Todas estas foram por muito tempo as esperanças de apenas alguns idealistas que lutaram para mudar a opinião da esmagadora maioria em relação a certas práticas aceites."

"The Constitution of Liberty" (Friedrich Hayek)


As boas causas, defendidas ao princípio por poucos, estão decerto na origem dos grandes avanços da civilização e podem interpretar-se, na perspectiva evolucionista, como uma estratégia bem sucedida de adaptação ao meio. Razão por que a liberdade está longe de ter apenas consequências políticas.

Mas deve-se também observar que na Era da Técnica prevalece um outro tipo de progresso, que não está ligado de maneira nenhuma às "boas causas". Os motivos que levam a determinada descoberta com implicações profundas na vida das pessoas, enriquecendo-as, aliviando-as de certos esforços, proporcionando-lhes maior mobilidade e mais capacidade de comunicação, esses motivos podem ser afastados, o mais possível, de tais consequências.

Há, seguramente, muito de não previsto e de indesejado nos efeitos da tecnologia.

Também face a estes desenvolvimentos, em boa parte automáticos e inconscientes, podemos imaginar uma situação em que a liberdade possa ser severamente restringida, sem que a produção da novidade tecnológica se ressinta.

Aquilo a que há alguns anos atrás se chamou de tecnocracia caracteriza-se por uma grande concentração dos meios ao dispor duma comunidade tecno-científica, compatível com uma total licença de experimentação e de troca de ideias dentro de cada especialidade, sem que isto implique, de modo nenhum, a liberdade geral.


Santiago de Compostela (José Ames)

O DESERTO EM XANADU


O globo de neve de Charles Foster Kane

"Mesmo quando já não nos importamos com as coisas, não é absolutamente indiferente termo-nos importado, porque era sempre por razões que escapam aos outros. A recordação desses sentimentos, sentimos que está em nós; é em nós que é preciso entrar para os ver."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


O discurso "idealista" de Swann refere-se às mulheres da sua vida.

Ele está a morrer e, nessa recepção do príncipe de Guermantes, encontra-se cercado de anti-dreifusistas, pelo que se sente duplamente marcado, pela doença e pela raça.

Mas é numa outra e mais secreta diferença que se apoia a sua força de alma. No sentimento de nunca ter estado todo na personagem social. De ter em relação aos outros o exclusivo dum acesso à realidade.

Cada homem possui essa chave, que não serve a mais ninguém e, em muitos casos, nem a ele próprio.

Xanadu é um palácio deserto

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

MÚSICA DO ESPAÇO

http://home.wangjianshuo.com/archives/2003/10/16/screen-music-by.jianshuo.png


"A música exprime as paixões, mas à sua maneira, tomando-as a partir debaixo, e imprimindo ao corpo humano um regime de movimento que o põe em harmonia com todas as coisas. Ombreia com o ruído e o grito; são dois inimigos que sempre a ameaçam. Eis porque se atém firme ao ritmo, à simetria, à imitação, à variação, à forma, numa palavra, como a uma arma."

"Propos de Littérature" (Alain)


A música já foi assim. Mas a expressão da subjectividade revelou-se um outro inimigo da música que a levou, para lhe fugir, a paragens como as do radicalismo dodecafónico e deste a uma segunda vida da tradição, como natureza e linguagem.

É preciso dar razão a Foucault quando reúne as várias linguagens, formas e estilos duma época num único paradigma.

Esta música que já nada diz ao sentimento estético, nem se inspira na natureza mais secreta do nosso corpo, tem a mesma filiação da ciência que já vê o homem dum ponto longínquo do espaço.


(José Ames)

A IRREDUTIBILIDADE DOS MITOS


http://pagespro-orange.fr/sheila.klinger


"Para Claude Lévi-Strauss, os mitos são, muito simplesmente, os instrumentos da sobrevivência do homem como uma espécie pensante e social. É através dos mitos que o homem compreende o mundo, que o experimenta de modo coerente, que consegue enfrentar a sua presença irremediavelmente contraditória, dividida e estranha.

(...) Não consegue, diz Lévi-Strauss, resolver estas antíteses formidáveis e conflituosas recorrendo a processos puramente racionais. Encontra-se em ambos os extremos do tempo concebível, confrontado com o mistério das suas origens e, logo a seguir, com o mistério da sua extinção."

"Nostalgia do Absoluto" (George Steiner)


Do orgulhoso domínio da Natureza à compreensão do mundo necessária à sobrevivência, a filosofia percorreu um longo caminho. Que recentra o papel da razão nos limites já estabelecidos por Kant.

É claro que dispomos de muitos outros recursos, além dos racionais, para compreender o mundo, se compreender não significar uma drástica redução da realidade.

Mas é verdade também que só a razão nos permite descolar da forma humana e alcançar um outro género de compreensão, que não tem já como objecto a "realidade", mas o nosso próprio pensamento.

Como a música se pode desprender da natureza e dos sentimentos e evoluir segundo as suas próprias leis, estaremos nós, no que à ciência diz respeito, a viver um análogo processo de autonomização, em que o Cosmos, mais do que estar a ser interpretado pela Física, nos interpretaria, de modo a que, através dos sucessivos avatares de explicações primordiais, nos encontrássemos sempre a nós mesmos?

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

O CONDE



Ao passar por uma travessa com o nome dum conde, vieram-me à memória os tempos em que conheci um rapaz bonacheirão que se dizia de sangue azul, mas mais como quem nos revela uma curiosidade física sobre si próprio do que outra coisa.

Eram os anos da recruta, arrancados ao ramerrão do emprego, atrás duma secretária, em que nos sentimos mortalmente responsáveis pelo que fazemos e estamos bem cientes de ter de pagar pelos nossos erros.

Ali não. Tomavam conta do nosso destino e davam-nos um papel, o mais afastado possível da profissão. É por isso que a recruta se parecia tanto com umas férias grandes, em que em vez de flanar e de fazer o que nos apetece, tivéssemos uma tarefa árdua pela frente, como o de escalar uma montanha, não para ver a vista, mas para a obediência nos entrar no corpo.

Na altura, não me punha, verdadeiramente, a questão da finalidade de tudo aquilo. Quando voltamos a pensar nisso, muito tempo depois, encontramos muitas semelhanças com qualquer situação humana enredada nas "malhas que o império tece".

Mas aos vinte anos, aquele congresso de iguais, vindos de todos os cantos do país, que a coerção transformava numa fraternidade de destino, com todos os interesses próprios suspensos, as relações familiares e sociais suspensas, era quase inteiramente que estávamos disponíveis para a amizade. Até as ideias, assim partilhadas, depois dos exercícios, tinham algo da simplicidade homérica.

Nunca mais voltou a ser assim.


Baião (José Ames)

OS PERIGOS DA LIBERDADE



"Como Bertrand Russell observou ("John Stuart Mill" Proceedings of the British Academy, XLI [1955] 55): "Se se acreditasse, como já se acreditou, que a tolerância em relação a um tal comportamento poderia expor a comunidade ao destino de Sodoma e Gomorra, a comunidade teria todo o direito de interferir." Mas onde tais crenças factuais não prevalecem, a prática privada entre adultos, por mais detestável que seja para a maioria, não é um tema de acção coerciva para um estado cujo objecto é minimizar a coerção."

"The Constitution of Liberty" (Friedrich Hayek)


O comportamento em causa é, evidentemente, a homossexualidade e, no caso das cidades bíblicas, até a hesitação ou a saudade foram punidas na mulher de Lot, transformada em estátua de sal por olhar para trás, na direcção da terra a que a ligavam tão doces memórias.

Os tempos de hoje, com o fanatismo religioso à solta, permitem-nos imaginar a que extremos um estado, mesmo baseado no princípio da coerção mínima, poderia chegar, só porque determinadas crenças prevaleceriam.

Não foi isso o que aconteceu durante o McCarthysmo nos E.U.A.?

Uma certa conjuntura internacional, articulada com um movimento de opinião interna, apoiado, senão manipulado, pelas organizações nisso interessadas, podem por completo destruir a tolerância, tornando problemático o regresso do país a uma tradição democrática.

A sobrevivência da liberdade depende só duma apreciação, suficientemente massiva, do perigo, ainda que esta possa ser ilusória.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

CALL CENTERS: ALPHAVILLE EM LINHA



A imagem da coorte dos 500 (os trabalhadores que ganham 500 euro por mês nos call centers) sob o "chicote" dum Kapo que, dum estrado mais elevado, controla ao minuto o tempo das chamadas e a eficiência dos operadores, parece saída dum cenário futurista, como o de "Alphaville", em que as máquinas já dominaram definitivamente os homens.

É esta coorte o inglório destino de boa parte dos licenciados deste país, o que é a medida da qualidade do nosso ensino ou da do desperdício do saber.

Só quem se lembra de quando o atendimento pessoal era um direito de todos e não uma prerrogativa dos grandes clientes pode julgar o muro dos call centers. Este é um dos aspectos em que a democracia regrediu em nome duma eficiência abstracta.

Simone Weil dizia que os engenheiros deviam preocupar-se em desenhar máquinas que respeitassem a forma humana, em vez de se limitarem a responder aos problemas técnicos propostos por empresários mal formados. E acrescentava que esse progresso seria muito mais sensível do que o obtido pela maior parte das reivindicações operárias.

É óbvio que a ideia destes parques dos 500 responde só à questão técnica e que, noutras paragens, como na Índia, eles podem até constituir um verdadeiro progresso.

Mas ainda que a globalização tivesse só consequências como esta não poderíamos impedi-la.

Só que as doutrinas talvez nos estejam a impedir de criar um sistema imunitário que nos evite dar passos atrás em termos de civilização.


(José Ames)

TRABALHAR SEM REDE



A precariedade, aplicada ao mundo do trabalho, é uma daquelas palavras carregadas de um significado moral que, numa sociedade pacificada, parecem estar condenadas à nascença, por sugerirem uma punição ou um destino injusto.

Foi certamente por isso que os peritos nestas questões de forma, tão importantes para se evitarem desnecessários conflitos, inventaram uma palavra equivalente, mas suficientemente abstracta: a flexisegurança. É a precariedade com rede prometida.

Sei de dirigentes sindicais que dizem, alto e bom som, que os contratos a prazo são um acto de gestão das empresas. E por aí se ficam.

Outros, mais responsáveis, combatem-nos à luz duma alegada ilegalidade que, naturalmente, não existe para os perpetradores. Mas, sendo a tendência política a de se adaptar a lei à prática, os abusos deixarão de o ser, tornando-se este em mais um caso em que o sentimento de injustiça é abandonado pelo direito.

Tão importante como isso é o facto da acção desses sindicatos não ser desejada pelas vítimas do sistema, que preferem colaborar em falsos contratos a termo ou na renovação, para além do devido, de contratos em que às vezes só muda o nome da empresa de outsourcing, para terem trabalho em vez de caírem no desemprego.

E aqui talvez pareça a alguns que esta é uma luta inglória para pôr ordem numa situação em que a anarquia é o menor dos males.

O problema é que esta é uma falsa solução de mercado, e os políticos que a favorecem demonstram apenas estreiteza de visão. Porque é só porque não se contabilizam todos os custos, sociais e económicos, desta anarquia, devendo ser-nos presente, num futuro mais ou menos próximo, a respectiva factura, que este sistema parece viável e funcionar, tant bien que mal, com os protestos do costume e o medo ou a apatia das suas vítimas.

Por isso um grande investimento deveria ser feito no cálculo dos efeitos a prazo desta prática e desta política, através dum estudo credível.

Por outro lado, é certo que, em teoria, a solução de mercado para os contratos a prazo poderia ser "flexibilizar" todos os contratos sem termo certo, sobretudo, no capítulo dos despedimentos.

É esse o desiderato dos ideólogos. Mas o mercado puro é uma ficção, mesmo nos países que se arrogam de campeões do liberalismo.

E a anarquia deverá manter-se enquanto houver mais buracos do que rede. Os nossos trabalhadores gostam tão pouco do risco como aqueles que os empregam, mas têm mais razões para isso.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

SÍMBOLOS


O Simpósio dos Deuses


"O regresso ao irracional é, antes de mais nada, uma tentativa de preencher o vazio criado pela decadência da religião. Sob este grande acesso de irracionalidade encontra-se aquela nostalgia do absoluto, aquela fome de transcendente que observámos nas mitologias, nas metáforas totalizadoras da utopia marxista da libertação do homem, na visão freudiana do sono absoluto de Eros e Tanatos, na punitiva e apocalíptica ciência do homem desenvolvida por Lévi-Strauss."

"Nostalgia do Absoluto" (George Steiner)


Steiner fala em desilusão a propósito destas "teologias substitutas" e aponta a alternativa das ciências filosóficas e exactas, sem contudo estar certo de haver um futuro nesse caminho.

Para algumas religiões orientais, é a vida que é uma ilusão. E nem mesmo os mais realistas e crentes na verdade científica podem deixar de reconhecer que é legítimo pensar que, na infinidade do Cosmos, o que tomamos por realidade possa ser uma ilusão. Até a história da ciência pode ser vista como uma aproximação da ilusão à verdade.

Para além dos "correlatos genéticos" da fome de absoluto a que Steiner alude, de passagem, haverá, porventura, outro limite à alternativa estritamente racionalista.

E, como em Platão, é o mito que melhor corresponde a uma compreensão não completamente elucidada.

No "Banquete", o mito do andrógino pode servir-nos para formularmos essa fome de absoluto, como a fome do todo de que estamos separados, pela cultura e pela consciência, em primeiro lugar. Fome de que a morte é a solução de continuidade.


Leiria (José Ames)

O TRIUNFO DE CANDIDE



Quando pensamos nisso, a ideia da selecção natural, que elimina as soluções menos viáveis por uma contínua adaptação, parece-se muito com o conceito do "melhor dos mundos possíveis".

E, numa altura em que se fazia das capacidades da razão e da vontade inteligente uma estimativa por de mais ingénua, aquilo que Voltaire, com tanto êxito, ridicularizou no "Candide" tornou-se uma espécie de pedra filosofal que tudo explica ou promete vir a explicar.

Mas é bom de ver que se Leibniz é, neste caso, o último a rir, com a ideia da selecção natural vemos agora o trabalho do tempo, onde antes se acreditava no milagre e, como no exemplo de Dawkins, a gradual escalada da evolução, em vez da parede a pique da Criação.

E é como se disséssemos ao projeccionista para correr o filme mais devagar, para melhor fixarmos os pormenores.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

OS PENSAMENTOS NA ÁGUA


Heráclito, segundo Rafael

"O tio não põe aí nenhuma hipocrisia, iludido que está pela faculdade que têm os homens de crer em cada nova circunstância que se trata de "outra coisa", faculdade que lhes permite adoptar erros artísticos, políticos, etc., sem se aperceberem que são os mesmos que eles tomaram por verdades, há dez anos, a propósito duma outra escola de pintura que condenavam, dum outro caso político que acreditavam merecer o seu ódio, donde eles vêm, e que desposam sem os reconhecer sob o novo disfarce."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


O barão censura no sobrinho, Robert de Saint-Loup, os seus próprios defeitos.

Pois, como no rio de Heráclito, as águas nunca são as mesmas. As próprias opiniões fluem, sendo substituídas, incessantemente, por outras que têm mais a ver com connosco, tal como somos agora, do que com a sua etiqueta na nossa memória.

E, tal como podemos sempre fugir a um juízo de analogia que nos compromete, dizendo que o caso é diferente, também os nossos antigos "cavalos de batalha" nos podem parecer pacíficas montadas, se a idade e o temperamento ajudarem.


(José Ames)

O ESQUECIMENTO DAS ALMAS


TOTH E ÍSIS COM A CRUZ ANSATA NAS MÃOS

"O mito da invenção da arte da escrita, isto é, dos sinais escritos, pelo deus egípcio Toth serve para esclarecer isso. Quando o deus acorreu a Thamos de Tebas com a sua nova descoberta, gabando-se de com ela oferecer aos homens um recurso salvador para a sua memória e portanto para o seu saber, Thamos retorquiu-lhe que a invenção da escrita serviria, ao contrário, para desleixo da memória e para levar o esquecimento às almas, pois os homens confiariam na escrita em vez de gravarem na própria alma a recordação viva."

"Paideia" (Werner Jaeger)


Que melhor exemplo de que o progresso da tecnologia é independente do progresso do homem?

As várias galáxias de Mc Luhan mudaram a nossa forma de ver as coisas, mas não sem o sacrifício de outras vivências.

A resposta do rei de Tebas, por outro lado, aponta para uma perda de autonomia do indivíduo implícita no uso da nova ferramenta. Não é que dependamos mais dos outros num mundo transformado pela tecnologia do que na sociedade primitiva. É que essa dependência assume a forma duma dependência dos objectos.

Com a "recordação viva" perde-se a medida, e se isso permite a expansão da "memória", sem fim à vista, também desintegra qualquer ideia do homem.

Pode-se ver ainda nas palavras de Thamos uma crítica ao saber dessa memória fora de nós, um saber que ele equipara ao esquecimento.

Será, então, a ciência esse esquecimento porque já não tem o homem no seu centro?

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

RESPONSABILIDADE COLECTIVA


Abraão, a esposa Sara, e Agar, a concubina egípcia


"Em particular, o prazer ou a pena que podem ser causados pelo conhecimento das acções de outras pessoas nunca deveriam ser considerados como causa legítima de coerção. A imposição da conformidade religiosa, por exemplo, foi um objecto legítimo de governo quando as pessoas acreditavam na responsabilidade colectiva da comunidade em relação a alguma divindade e se pensava que os pecados de qualquer membro teriam repercussão sobre todos."

"The Constitution of Liberty" (Friedrich Hayek)


Uma das condições para que a tolerância possa existir entre crenças adversárias é a pujança do individualismo, que leva as pessoas a libertarem-se de superstições como a da responsabilidade colectiva.

Que esse progresso não é irreversível prova-o a pratica da dizimação em tempo de guerra.

E o actual "conflito de civilizações", em que o Ocidente, céptico ou descomprometidamente crente, se encontra envolvido com a descendência de Agar, leva-nos a perguntar se alguma solução será possível sem o triunfo planetário do individualismo, ou se este e a ciência e a tecnologia, o seu fruto mais apetecido pelo tribalismo, não estão condenados a ser apenas um fulgor evanescente no céu da humanidade.


Huelva (José Ames)

A VINGANÇA DE HEFESTOS


"There will be blood"
(2007-Paul Thomas Anderson)


Daniel é um homem que julga o seu semelhante com a ponta da picareta ou da broca de percussão.

O pequeno órfão que o acompanha não é uma fraqueza: na hora da ruptura, vinte anos mais tarde, dirá que se serviu da sua inocência para convencer os que lhe vendiam as terras.

Até o vagabundo que se fez passar por seu irmão e que talvez já fosse um amigo foi sacrificado a um despotismo com laivos de zelo religioso.

É o confronto com o fanático pastor da Igreja da Terceira Revelação, que o humilha numa cerimónia de baptismo, necessária para o seu oleoduto atravessar as terras de um crente, e o seu assassinato a golpes de pino de bowling que melhor revelam a loucura da personagem.

Haverá sangue é, de facto, um juramento de vingança, cuja eficácia se pode medir em termos industriais, na energia com que arranca as lascas de pedra faiscantes da mina ou no demonismo do seu triunfo sobre o poço de petróleo incendiado.

É como se toda uma época do capitalismo se encarnasse numa paixão que "se serve fria", que faz justiça pelas suas mãos e submete a religião à mecânica dum ajuste de contas.

No papel deste Hefestos, aleijado e sem amor, Daniel Day-Lewis é magnífico.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO


Leon Tolstoi (1828/1910)


"Vejo nas Memórias de Tolstoi que aos vinte anos ele já conhecia as duas coisas que mais importam para a formação do espírito, quer dizer, um emprego do tempo e um caderno. As ideias virão em seguida, diz ele. A acção de escrever parece-me a mais favorável de todas para regular os nossos loucos pensamentos e dar-lhes consistência. A palavra convém muito menos; e sobretudo a conversação é directamente contrária ao exame reflectido. Seria preciso encarar a conversação mais ou menos como o católico encara a missa. É apenas uma troca de sinais conhecidos e um exercício de cortesia."

"Propos de Littérature" (Alain)


Estes conselhos não são para os tempos de hoje. Embora quem queira dedicar-se à literatura aproveite em os seguir, a "formação do espírito" não parece interessar a quase ninguém e, certamente, não é para tal fim que trabalha a escola moderna.

O resultado do abandono desse ideal de independência do juízo deveria ser a estagnação de toda uma cultura e o fim do desenvolvimento, à medida que o espírito se fosse obscurecendo.

Mas há um erro de perspectiva neste quadro, por não se partir do que éramos apenas há algumas décadas antes e do analfabetismo da grande maioria.

De facto, nunca no passado esteve ao nosso alcance a "formação do espírito", a não ser para uma reduzida minoria.

O que vemos hoje, por outro lado, é que as elites intelectuais se têm de formar cada vez mais apesar da escola.


(José Ames)

AS IDEIAS E A DEMOCRACIA



"Por um lado, o que impeliu Platão a escrever o Fedro foi a clareza cada vez maior com que via a ligação entre os problemas teóricos aparentemente difíceis e abstractos da sua posterior teoria das ideias e as mais simples exigências que se colocavam à capacidade de falar e de escrever, que, naquela época, constituíam um tema muito procurado e debatido."

"Paideia" (Werner Jaeger)


Haverá um modelo em pirâmide das ideias, que são mais abstractas quando mais perto do vértice e que se tornam cada vez menos reconhecíveis à medida que se aproximam da base, mas nem por isso menos redutíveis a uma origem "oligárquica", seja ela a dos especialistas nos vários ramos da ciência ou daqueles que se preocupam com as ideias gerais e os princípios filosóficos?

Esse nexo é fundamental no pensamento platónico, com a sua distinção entre a opinião e a verdade.

Mas as ideias do filósofo raramente têm influência directa numa cultura e elas só se estabelecem ao longo do tempo, através da mediação das elites intelectuais.

E hoje temos que confrontar o preconceito anti-democrático de Platão com a questão de saber se essa é a origem de todas as ideias e se aquilo que a filosofia considera a ideia não é apenas uma pequena parte do que é transmitido de geração em geração, de forma inconsciente, decerto, mas que não é menos responsável pelo êxito da nossa adaptação ao meio ambiente e, enfim, pelo próprio progresso da civilização.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O ÓRGÃO DA ADAPTAÇÃO



"As decisões maioritárias dizem-nos o que as pessoas querem no momento, mas não o que seria do seu interesse quererem se estivessem mais bem informadas; e, a não ser que pudessem mudar através da persuasão, não teriam qualquer valor. O argumento a favor da democracia pressupõe que qualquer opinião minoritária se possa tornar maioritária."

"The Constitution of Liberty" (Friedrich Hayek)


Hayek diz mais. Se as opiniões individuais não fizessem o seu caminho, passando de únicas, a minoritárias e enfim maioritárias, a sociedade entraria em declínio.

Isto é muito mais visível numa sociedade em desenvolvimento, como são as sociedades modernas, expostas como estão à influência da tecnologia.

Um período extático, de incubação, como foi a Idade Média não é possível, quando tudo evolui rapidamente e os novos problemas são problemas complexos de sobrevivência e de manutenção da qualidade de vida. Esses problemas já não encontram resposta no comentário dos textos sagrados, nem no conhecimento do passado, mas na actividade criativa do pensamento.

É por isso que a liberdade não é a liberdade duma classe, ou algo que diga só respeito a uma elite de privilegiados.

É tão "económica" e tão "social", como causa e consequência, como o são o trabalho, as matérias-primas ou as forças de produção.


Terceira (José Ames)

PESCADORES DE HOMENS


Redes
http://alentejanando.weblog.com.pt/arquivo/Redes.jpg

"Na realidade, Mme. de Saint-Euverte tinha vindo, nessa noite, menos pelo prazer de não faltar a uma festa dos outros do que para assegurar o sucesso da sua, recrutar os últimos aderentes, e de alguma maneira passar in extremis a revista das tropas que no dia seguinte deviam brilhantemente evoluir no seu garden-party."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Custa a crer que aquilo que em certas organizações se chama de mobilização, com as suas várias formas, desde a convocatória entregue em mão, a "pesca à linha", em que aos mais relutantes em comparecerem é sugerido um especial motivo de interesse, como a presença de alguém importante ou uma informação em primeira mão, às mais recentes como os SMS ou o correio electrónico, pudesse ser necessário num salão de nomeada, mas não de primeiríssima ordem como o dos Guermantes.

A vaidade de fazer parte da refinada selecção da duquesa explica o êxito do seu salão. Com esse critério, Oriane assegurava-se as vantagens dum monopólio que quase não precisa da publicidade.

Estava na moda, a nata da aristocracia acotovelava-se à entrada. Mas está no carácter da moda mudar sem aviso.

Também as assembleias sindicais conheceram tempos em que se "pescava de arrasto" e a comunicação se fazia através do tantã colectivo.

Mas hoje as Saint-Euverte não podem descurar nenhum dos expedientes do empresário com um espectáculo fora de cartaz.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

ASSEMBLEIAS



O melhor seria assistir a um plenário sem falar e observando apenas. Mas o espectáculo de tantos homens subitamente decapitados pela paixão é demasiado forte. Os que tomam a palavra, como se diz nas assembleias, sonham talvez em assumir a cabeça, e o orador que domina a sua voz e as suas expressões atrai imediatamente. Mas há um problema que tem de resolver: o de conciliar as vozes ou de refutar o que dizem.

Uma proposta admitida deixa de pertencer ao proponente e com razão. Ela é ordem e pensamento para o espírito colectivo que naturalmente divaga e se agita. Por isso nada confunde mais do que uma soma de propostas, ou uma oposição que não se compreende como partido. As pequenas diferenças do texto encontram sempre eco no indivíduo, feliz por emergir da massa e a analogia dispersa os votos.

Porém, quando a assembleia se pode dividir em partes reconhecidas e artificialmente inconciliáveis verifica-se um simulacro de pensamento. É o critério do partido que pensa. O zelo contrário é visto como uma prova e basta negar para ter razão. O exemplo que cita Mc Luhan do sistema bipartido no parlamento inglês, em que o deputado se vê dispensado de reflectir sobre a verdade e o erro, pois lhe basta olhar para a bancada da frente, vem ao encontro desta ideia.

Pode-se assegurar uma unidade funcional maior e mais participada através duma divisão regulada, contudo, o espírito de complacência em relação ao partido retira todo o valor intelectual ao debate. No fundo, a instituição justifica-se pelo consenso que é capaz de criar.

SOMBRAS ROMANAS


Virgílio

"Quando Virgílio desce aos infernos por sua vez, tendo na mão o ramo de oiro, e conduzido pela Sibila Itálica, as sombras, paixões mortas, estão já formadas de outra maneira, politicamente, à Romana. Segundo um futuro de conquistas; segundo o laço das causas e dos efeitos. Já não capricho exterior, conforme as intrigas dos deuses, mas inflexível determinação, onde a esperança de cada ser se encontra prisioneira e à partida esmagada."

"Propos de Littérature" (Alain)


Contra a liberdade dos heróis gregos que só é liberdade porque os deuses se contradizem, já que são eles que decidem, mas segundo paixões demasiadamente humanas, Alain mostra-nos a grande diferença dos Romanos.

Apesar do seu paganismo de imitação, a ordem do império tem de ser outra. O Direito é um deus duma outra espécie e já não discute com Júpiter. O seu mundo é sub-olímpico.

A política pesa como um destino e César confundiu o Céu e a Terra.


(José Ames)

UM PRÍNCIPE DA INTELIGÊNCIA



"Nos últimos anos da sua existência, quando ele se encontrou completamente desmunido na Suíça, Musil expiou duramente o seu desprezo pelo dinheiro. Por muito penoso que seja pensar no que essa situação teve de humilhante para ele, eu não gostaria de imaginá-lo de outra maneira. O seu soberano desprezo pelo dinheiro, que não implicava qualquer atracção pela vida ascética, essa falta total nele do dom de se enriquecer, tão espalhado e banalizado que se hesita em qualificá-lo como um "dom", revelam, parece-me, a essência mais íntima de um ser."

"Histoire d'une vie" (Elias Canetti)


Enquanto escrevia "O Homem Sem Qualidades", Musil viveu do apoio de alguns admiradores, zelosamente seleccionados no que Canetti compara a uma espécie de ordem de cavalaria. Mas com a ocupação da Áustria pelos nazis, a sociedade desfez-se, a maioria dos seus membros sendo judeus.

Eu sei que é demasiado fácil supor uma qualquer identidade entre o orgulho intelectual, que explica tanto do desprezo de Musil pelo dinheiro, perante o espectáculo tão comum dos que se rendem à sua sedução, e um estilo literário sem concessões e despreocupado com o facto da sua obra ser entendida por tão poucos.

O dinheiro funciona aqui, já fora da economia, como um verdadeiro equivalente geral de tudo quanto se opõe ao espírito. É ainda o "não se pode servir a dois amos".

Pelo testemunho de Canetti, vemos que Musil era susceptível como o diabo, tomando ofensa do mais ligeiro indício. De certo modo, faz-me lembrar a personagem proustiana do barão de Charlus, menos o seu vício, e substituindo os pergaminhos do nascimento pelos da inteligência.

Sem a fraqueza de Charlus, o seu orgulho podia ser mais imoderado. E chegou ao ponto de suspeitar um homem como H. Broch de ter pilhado o seu opus magnum. Este acusou-o de ser "um rei no reino do papel". Canetti diz que ele foi de facto um rei, mas em "O Homem Sem Qualidades".

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

LIBERDADE E COMPLEXIDADE




"O argumento para a liberdade de alguns aplica-se por isso à liberdade de todos. Mas é ainda melhor para todos que alguns sejam livres do que ninguém e também que muitos gozem de plena liberdade do que todos uma liberdade restringida. O ponto significativo é que a importância da liberdade para fazer algo em particular não tem nada a ver com o número de pessoas que querem fazê-lo."

"The Constitution of Liberty" (Friedrich Hayek)


Será este o núcleo mais importante da ideia liberal ou o que temos aqui é a expressão de como a natureza e a sociedade lidam com a complexidade?

Os adeptos do progresso social e os crentes na evolução natural não podem impugnar a ideia de que a adaptação inconsciente e a capacidade de experimentação jogam um papel determinante no darwinismo. E, quanto ao progresso, no mesmo abundariam não fosse a ilusão (à Bouvard e Pécuchet) de que temos o conhecimento subjectivo necessário para mudar conscientemente a sociedade.

A liberdade de uns ou de todos ( e é claro que "os benefícios da liberdade se tornam maiores quanto mais cresce o número daqueles que podem exercê-la") é a condição que nos permite, enquanto sociedade, suprir a falta de conhecimento, quando nos confrontamos com probabilidades arriscadas em vez de certezas.

Por outro lado, é certo que as condições de liberdade de que algumas individualidades gozaram para poderem perseguir uma ideia ou uma paixão reverteu na maior parte dos casos para o bem de todos e contribuiu para o crescimento da liberdade.

É de supor que o milagre da Grécia antiga não teria sido possível com a "semi-liberdade" de todos apenas, em vez de alguns terem sido completamente livres.


Ovar (José Ames)

OS CARACÓIS ALPINISTAS




"Bouvard já nem acreditava na matéria. A certeza de que nada existe (por muito deplorável que isso possa ser) não é menos uma certeza. Poucas pessoas são capazes de a ter. Essa transcendência inspirou-lhes o orgulho e eles queriam exibi-la: uma ocasião se ofereceu."

"Bouvard et Pécuchet" (Gustave Flaubert)


A imagem destes "caracóis que se esforçam por escalar o Monte Branco até ao cume" (Taine) representa bem uma ilusão que o progresso das ciências e os grandes sistemas filosóficos do século XIX permitiam.

A ambição deste dois burgueses de se apoderarem de todo o conhecimento, a própria ideia do saber enciclopédico que a pena de Flaubert estigmatizou com os traços do ridículo e da estupidez é mais universal do que parece e é representativa dum optimismo ingénuo que não nos pode parecer tal apenas porque ainda vivemos sob a sua influência.

Flaubert conclui a história na desilusão e no fracasso. Os dois caracóis só atingiram o cume para perderem todas as certezas e verem tudo o que consideravam conhecimento varrido pelos ventos da inutilidade.

No final (esboçado), Bouvard e Pécuchet voltam ao seu antigo ofício de copistas. E é como se a estupidez das personagens encontrasse naquele scriptorium medieval que mandaram construir a antiga religião dos pergaminhos.

Não há aqui uma réplica do cepticismo ao comentário das Escrituras que foi, num certo sentido, a Idade Média?

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

O REI NÃO SE RETRATA


A guilhotina

"No Templo, ei-lo justamente como um verdadeiro rei deveria ser, em comunicação com todos, comendo, lendo e dormindo diante de todos; comensal por assim dizer, e camarada do negociante, do trabalhador. Ei-lo, o rei culpado, que aparece à multidão naquilo que tem de inocente, de comovedor, de respeitável. É um homem, um pai de família; tudo foi esquecido. A natureza e a piedade desarmaram a justiça."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Luís XVI, apesar de toda esta humanidade, que tocou todos quantos puderam com ele contactar enquanto esteve prisioneiro, caminhou para a guilhotina com a convicção de ser o que era (um rei apanhado pela História como o seu predecessor da Casa dos Stuart) e religiosamente estimulado. Bebia "o cálice até às fezes".

Michelet demonstra não ter compreendido o homem ao acusá-lo de morrer sem admitir os seus "crimes" contra a Revolução e de se sentir ainda rei, quando tantos queriam ver nele menos do que um homem, nem rei, nem cidadão e que, por isso, deveria ser julgado como monstro. Tínhamos de esperar pelo século XX para ver uma vítima assumir o "juízo da História".

Nesse espírito, o grande historiador imagina o que deveria ser um verdadeiro rei. Com a mais desarmante das ingenuidades, descreve-nos não o futuro rei constitucional ou o rei-medalhão das monarquias modernas, mas o rei camarada, igual a todos os homens, mas preso ao sortilégio de ter de ouvir todos e de a todos falar e de viver prisioneiro numa montra de virtude e simplicidade.


(José Ames)

O ÊMBOLO DE TROTSKY


Leon Trotsky (1879/1940)


"É somente pelo estudo dos processos políticos nas massas que se pode compreender o papel dos partidos e dos líderes, o qual não estamos de modo nenhum inclinados a ignorar. Eles constituem um elemento não autónomo, mas muito importante do processo. Sem organização dirigente, a energia das massas volatilizar-se-ia como o vapor não encerrado num cilindro de pistão. No entanto, o movimento não vem nem do cilindro nem do pistão, mas do vapor."

"História da Revolução Russa" (Leon Trotsky)


Grande preconceito para começar, este de que o movimento não vem de...

Segundo Trotsky vemos de mais os líderes e os partidos e pouco as "massas", que seriam o vapor comprimido e canalizado.

Há uma boa razão para isso: é que as massas são um mero conceito político e que só os indivíduos (mas só duma certa maneira) são reais.

Não seria possível pensar em termos de meios e de fins, de conceber uma mecânica (o cilindro e o pistão) e uma dinâmica (a energia) que "compreendessem" o social como se se dispusesse dum conhecimento operatório, sem o que o termo de massas significa.

Por isso se pode dizer que a nossa fundamental ignorância sobre o funcionamento da sociedade, graças a essa terminologia, e desde os grandes sistemas, foi substituída por um pseudo domínio da questão.

E nada há de mais elucidativo do que a forma como se transmite essa versão simplificada do marxismo nas aulas de História.

Os nomes querem dizer alguma coisa se há só indivíduos, enquanto que os supostos mecanismos se esgotam na sua definição.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

TRAVAR-SE DE RAZÕES


"Poesia" (Gustave Klimt)


"O verdadeiro poema é um fruto da natureza. É o que é logo sentido pela orelha, quando se ouve, e ainda melhor pela garganta e a respiração, e mesmo pelo corpo inteiro, se se lê em voz alta. É em primeiro lugar uma espécie de música, que tem fisiologicamente razão, entenda-se que é à medida do homem, que regula como é preciso os seus íntimos movimentos, que remexe e estende, que liberta da angústia este corpo difícil."

"Propos de Littérature" (Alain)


Aqui está uma das acepções da razão.

A poesia, diz o filósofo, tem fisiologicamente razão, é feita à nossa medida e à medida do nosso corpo.

Mas a razão das ciências naturais leva-nos para muito longe do corpo. "Vemos", com os novos instrumentos, o que os nossos olhos não podem ver e "chegamos" aonde os nossos pés não nos podem levar.

Essa razão não se pode dizer já que seja à nossa medida, como um todo harmonioso, mas à medida do nosso cérebro e das suas próteses.

Esta aventura tem inegavelmente uma poesia, mesmo se fisiologicamente "não tem razão". Sugere-nos (contra a entropia) uma espécie de infinidade...


Alcácer do Sal (José Ames)

AGGIORNAMENTO OU TALVEZ NÃO



"Uma vez que se tenha por certa a relatividade do movimento, um antigo sistema de referência humano e cristão não tem direito algum de interferir nos cálculos astronómicos e na sua simplificação heliocêntrica; tem, no entanto, o direito de se manter fiel ao seu método de preservar a Terra em relação à dignidade humana e de ordenar o mundo em torno de tudo o que no mundo sempre aconteceu e acontecerá."

Ernst Bloch ("Das Prinzip Hoffnung")

"A Igreja da época de Galileu atém-se à razão mais do que o próprio Galileu, e toma em consideração também as consequências éticas e sociais da doutrina galilaica. A sentença contra Galileu foi racional e justa, e só por motivos de oportunidade política se pode legitimar a sua revisão."

Paul Feyerabend ("Wider den Methodenzwang")


Estas citações constam da obra do cardeal Ratzinger "A Igreja e a Nova Europa", escrita na altura em que era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e exemplificam o que considera a crise da fé na ciência. Terá sido, aliás, este espírito de contumaz confirmação da sentença da Inquisição, condenando o pai da ciência moderna, que terá estado por detrás dos protestos que inviabilizaram a conferência do papa na universidade La Sapienza, em Roma (e, assim, foi uma universidade a assumir a verdadeira posição teológica contra a liberdade da crítica).

Ratzinger adopta uma posição de claro contra-ataque àquela crítica que pretende ligar a Igreja ao obscurantismo ou aos sentimentos e contra a racionalidade. E, ultrapassando-a, propõe-nos uma racionalidade superior à razão instrumental e à razão cientifica.

O apoio que encontra num "marxista romântico" (Bloch), com a tese de que haveria uma razão da dignidade humana com o direito a defender-se no processo da "simplificação heliocêntrica", ou num "agnóstico-céptico" (Feyerabend), inesperado apóstolo da razão da Igreja no caso de Galileu e da superioridade da sua razão ética e social que seriam mais razoáveis do que os cálculos astronómicos, parece anunciar que estaria em aberto um debate entre a Igreja e a Ciência que nada deixaria como dantes. Se, como papa, Ratzinger pudesse ser ainda filósofo.

Pela primeira vez, a Igreja assumiu uma posição anti-científica com argumentos não teológicos, mas colhidos no próprio "espírito do tempo".

Depois do aggiornamento de João XXIII, que renovou a liturgia e a fisionomia da Igreja, um papa intelectual e declaradamente anti-moderno poderia contribuir para uma saudável separação de águas entre a religião e o poder, mesmo que não fosse no sentido de aprofundar a reforma do papa Roncalli.