domingo, 30 de novembro de 2008


Covilhã (José Ames)

NOVOS E ANTIGOS RITUAIS


O sofá de Freud na Bergasse, 19


"Receio muito já não estar em condições de assegurar a intendência nocturna -, mas atendendo à honra que me concede e ao reconhecimento que sinto por me terem permitido servir tantos anos as damas da família imperial..."

"O Romance do Genji" (Murasaki Shikibu)


A "intendência nocturna" de que fala o Prelado é a obrigação de permanecer, "separado da almofada do imperador por um painel divisório", "perto do local onde o seu senhor dormia, de modo a que este pudesse gozar da influência benéfica das suas preces durante o sono" (nota da tradução).

Note-se como é importante, neste ritual apotropaico, a proximidade do capelão da cabeça do imperador adormecido. Como se a eficácia da oração se perdesse alguns metros ao lado, pois é para ser ouvida.

E evoca imediatamente um outro ritual, moderno esse, do psicanalista sentado atrás do sofá em que o analisando "se confessa" e dá livre curso às suas associações mentais.

O sono do imperador de Heian pode ser perturbado pela "ira celestial" (por ter contribuído, voluntariamente ou não, para a desordem nos "reinos do céu e da terra"), que só pode ser afastada pela prece e pelos rituais.

A análise só produz os mesmos resultados se o paciente conseguir fazer sentido da sua incoerência interior, isto é, se puder racionalizar as tensões que ameaçam dividi-lo.

sábado, 29 de novembro de 2008


(José Ames)

O PADRE ATEU


Joseph Fouché (1759/1820)

"Fouché decretara a supressão da miséria e lançara enormes contribuições sobre os ricos para sustentar os pobres. Os ricos contavam que Robespierre os libertasse de Fouché."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Naqueles tempos, era possível acreditar-se que um decreto podia suprimir a miséria. Ainda não tinha sido inventada a economia. Não se falava ainda em modo de produção, nem a ideia de sistema tinha ganho os espíritos.

Hoje toda a gente deve saber que a distribuição é apenas uma parte da economia. Tirar a uns para dar a outros está muito bem, desde que se continue a produzir, senão depressa se chega à igualdade na miséria.

Claro que os ricos nunca serão bons cristãos, nem bons socialistas. Os que ainda existiam na França de 93 não pensavam em restabelecer a economia, mas em restabelecer os seus privilégios. Sabiam, porém, que um espírito jesuítico como o de Robespierre, na posição que ocupava, os podia livrar de um demagogo que se estava nas tintas para o interesse do povo. Eis o retrato que dele nos dá o historiador: "A figura deserdada de Fouché (se bem que inteligente) assustava pela sua aridez. O padre ateu, o duro bretão, o pedante reprovado pela escola, todos estes traços eram repelentes no seu rosto atroz. Conseguir foi o seu símbolo. Era, no fundo, um homem muito frio, de um positivismo horrível. Fizera-se hebertista, acreditando que era a vanguarda. Sucessor de Collot em Lyon, foi destruído por Robespierre, veio conspirar contra ele, e trabalhou mais do que ninguém para o 9 Thermidor."

sexta-feira, 28 de novembro de 2008


Aquileia (José Ames)

O HOMEM NA SELVA


"O Processo" (1962-Orson Welles)


"A coisa mais importante, se se quisesse conseguir alguma coisa, era rejeitar à partida qualquer ideia de que ele pudesse ser de alguma maneira culpado. Não havia culpa. O processo não era mais do que uma grande organização, tal como já tinha concluído em benefício do banco muitas vezes, uma organização que escondia muitos perigos emboscados que o espreitavam, como é seu costume, e era desses perigos que precisava defender-se."

"O Processo" (Franz Kafka)


Estas observações são tanto uma genial premonição do regime burocrático como a extrapolação de uma experiência vivida, no mesmo espírito da descrita por Robert Musil, por exemplo, na sua Cacolândia.

A descrição do sistema de justiça como uma máquina, cega em relação a qualquer norma, a não ser a da coerência dos seus interesses funcionais, enquanto "grande organização", nesse sentido, igual à banca ou ao comércio, encontra um eco perfeito nas teorias de Niklas Luhmann.

A culpa é uma arma contra si próprio. Perante a grande máquina, para quem essa distinção é indiferente, K. decide prescindir dos serviços do seu advogado e bater-se como um homem perdido na selva. O máximo de civilização torna-se, assim, no seu contrário.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008


(José Ames)

UM ROCHEDO NO CÁUCASO



"Lenine, ali (na Rússia), tinha publicamente reivindicado um Estado onde não haveria nem exército, nem polícia, nem burocracia distintos da população. Uma vez no poder, ele e os seus puseram-se, através duma longa e dolorosa guerra civil, a construir a máquina burocrática, militar e policial mais pesada que alguma vez pesou sobre esse povo infeliz."

"Réflexions pour déplaire" (Simone Weil)


Isso foi assim porque não podia ser de outra maneira se Lenine queria conservar o poder. Teve de se meter na pele do fogueiro na máquina do Estado czarista, que era a única que se sabia capaz de funcionar, mas, evidentemente, com toda outra ideologia. Se aplicarmos a esta situação a fórmula de Marx de que as condições de existência ditam a forma de pensar, a ideologia, naquele caso, só podia ser o czarismo virado do avesso.

Sokurov, em "Taurus" (2001), mostra-nos como foram os últimos meses de vida do líder bolchevique. A sua completa dependência física e o meticuloso isolamento a que o sujeitou o seu sucessor são propícios a amargurar mesmo um optimismo como o seu. Tal qual o herói grego que roubou o fogo dos deuses, está preso ao seu rochedo e o abutre georgiano, ao mesmo tempo que lhe vem bicar o fígado, mostra-lhe como o futuro se há-de resolver em violência.

Para dar um ideia do carácter do homem, Sokurov oferece-nos o seguinte diálogo:

- Lenine: Se ao atravessares a floresta, visses um ramo caído em cima da estrada, que fazias? Podias fazer duas coisas: esperar que ele apodrecesse, mas isso demorava um tempo infinito, ou removê-lo do caminho.

- Staline: Há uma terceira solução.

-Lenine: Qual?

-Staline: Destroçá-lo à machadada.

Lenine parece concordar. O Terror está todo naquela resposta.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008


Évora (José Ames)

O ÚLTIMO BILHETE

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"Nunca me inquieto com o dia de amanhã; sei por exemplo que em breve terei de deixar esta casa para um destino sobre o qual não tenho a menor ideia; e as finanças nunca estiveram pior, mas não me preocupo comigo: sei que "alguma coisa" se apresentará. Quando projectamos antecipadamente a nossa inquietação sobre todo o género de coisas por vir, impedimos que estas se desenvolvam organicamente. Tenho em mim uma imensa confiança. Não a certeza de ver a vida exterior correr bem para mim, mas a de continuar a aceitar a vida e a achá-la boa, mesmo nos piores momentos."

"Une vie bouleversée" (Etty Hillesum)


Alguns meses depois, Etty deixava-nos para sempre, com um bilhete atirado do comboio que a deportava para Auschwitz.

Este texto é uma variante do "Olhai os lírios do campo" (Mateus, 6:28) e a palavra aceitação é a chave para esta sabedoria. Mas ela aplica-se ao "destino", ao que nos coube em sorte, e não à política. O mesmo evangelho nos dá o exemplo na expulsão dos vendilhões do templo. O não é inseparável do sim. Se aceitamos, também rejeitamos.

O destino duma judia na Holanda de 1943 não tinha nada de pessoal. Etty soube conservar até ao fim a liberdade do espírito, impedindo o ódio de penetrar.

Sabemos pelas suas últimas mensagens que a morte próxima não a impediu de escrever no seu diário: "Tornamo-nos seres marcados pelo sofrimento, para toda a vida. E, no entanto, esta vida, na sua profundeza insondável é espantosamente boa."

terça-feira, 25 de novembro de 2008


(José Ames)

DEMOCRACIA FUNCIONAL

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"Todas as reflexões de Luhmann sobre a democracia têm um mesmo fio condutor. Este é, nomeadamente, que todos os atributos característicos das democracias modernas são produzidos pelo próprio sistema político, de molde a servir e a ir ao encontro das suas próprias necessidades funcionais."

"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law" (Michael King e Chris Thornhill)


Isto é, aspectos como a "limitação do poder pela lei, a necessidade de legitimação, a diferenciação plural do sistema político, a existência de mecanismos para produzir e testar o consenso popular" não seriam para Luhmann definidores da democracia, mas traços obrigatórios do sistema político na sociedade moderna, através dos quais "se confronta com uma crescente complexidade externa" e procura aliviar a sua própria "complexidade interna".

Neste sentido, se poderiam classificar as sociedades de hoje menos pelos seus regimes do que pela funcionalidade do seu sistema político.

As vantagens daquilo a que chamamos democracia são mais evidentes num ambiente de complexidade em mudança acelerada, como é o das sociedades ocidentais.

No fundo, é o problema da comunicação entre os vários sistemas e subsistemas que estaria em causa, sendo o consenso dos cidadãos um dos aspectos mais importantes da comunicação. Torna-se, assim, evidente por que têm de falhar os regimes autoritários quando, incapazes de mudar, se têm de proteger da complexidade negando-a através duma linguagem artificial com curso apenas no seu mundo anacrónico e separado.

E por que, por outro lado, esses regimes têm condições para durar e produzir consenso em condições de imobilidade histórica.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008


Covilhã (José Ames)

A ESTUFA


"O carro de bois" (Van Gogh)


"O certo é que a situação não mudara, pois o Genji tivera sempre de se contentar em vê-la na penumbra ou atrás de um kichó. No entanto, pelo pouco que pudera entrever, chegara à conclusão de que a jovem devia ser a encarnação da beleza e assim a idealizava cada vez mais."

"O Romance do Genji" (Murasaki Shikibu)


Esta penumbra, estes véus protegem a jovem de quê?

Dir-se-ia que esta cultura ( a China do período Heian) tinha chegado a um tal refinamento que se sabia tudo sobre a imaginação poética, que a beleza venerada no palácio era toda artificial e a própria luz do dia podia corrompê-la. Temiam-se, sobretudo, os sentidos, a natureza que, fora dessa delicada liturgia, se precipitavam sobre a ilusão da realidade.

Assim, ao Genji se poupa o desencantamento e, pelo contrário, a força do ideal tira dele o melhor de si mesmo.

O palácio é uma grande estufa, longe do sol e da existência comum. Cultiva-se a caligrafia, com um quase perverso amor da forma e trocam-se curtos poemas de cerimónia. E, como em Homero, a limousine dos nobres é o carro de bois.

domingo, 23 de novembro de 2008

A MONTANHA


O Fuji-san


"Eu não podia pensar nos Gregos sem ver montanhas diante de mim e, bizarramente, essas montanhas assemelhavam-se muito àquelas que eu tinha quotidianamente sob os olhos. Elas pareciam mais ou menos afastadas, segundo as condições atmosféricas; rejubilávamos quando estavam bem visíveis, falávamos delas e sobre elas cantávamos, eram objecto dum verdadeiro culto."

"Histoire d'une jeunesse" (Elias Canetti)


Que símbolo exprime melhor a altura solitária do que uma montanha? Nietzsche teve a sua visão no caminho das nuvens de Engadin e os nipónicos fizeram do Monte Fuji um ícone do sagrado (e do turismo).

O homem que entra em si mesmo à procura da verdade precisa de igual modo subir à montanha simbólica e, pela tensão do espírito, por essa atenção expectante que tem sempre resposta, de que falava Simone Weil, caminhar também entre as nuvens.

Nem o espectáculo grandioso da natureza, nem a montanha mais alta são, contudo, portas abertas. É difícil reconstituir o sentimento original dessa beleza porque ela se encontra sepulta, como a Tróia de Schliemann, debaixo de várias camadas de cultura. Não são só o cliché e o must fotográfico, o nosso próprio passado se interpõe e faz ecrã.

Procurem imaginar o encontro do primeiro homem com o mar.

sábado, 22 de novembro de 2008

O SEGURO E O GOSPEL



"Os Estados Unidos da América foram o único país moderno a não ter enveredado pelo caminho que leva ao Estado de prevenção e de seguros, com a consequência de que, nele, a religião ou, em termos mais gerais, a "disposição fundamentalista" conservará uma significação atípica da modernidade - opuseram-se às Luzes, que desagregaram a religião, como a todas as tentativas de retirar aos cidadãos as suas armas de fogo."

"Palácio de Cristal" (Peter Sloterdijk)


A lógica do seguro, de acordo com Sloterdijk, face aos riscos da existência moderna, mostrou-se "muito menos onerosa e muito mais praticável do que a justificação última da metafísica".

A excepção americana compensaria a falta do seguro com um zelo religioso que não se encontra em mais lado nenhum, no Ocidente.

Mas, em face do plano Paulson e da impunidade de todos quantos beneficiaram com a especulação e os desmandos que estão na origem da presente crise, temos de nos interrogar se a técnica dos seguros não prevaleceu também nesse país. Porque, os riscos tomados por alguns acabaram, de facto, por ser cobertos e os que se guardaram de correr riscos e ativeram à prudência acabaram por sofrer os danos.

Por isso, o televangelismo e o Gospel têm ali ainda um grande futuro.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008


(José Ames)

O ESPÍRITO E A CARNE


"A festa de Babette" (1987-Gabriel Axel)



Nesse maravilhoso filme de Gabriel Axel, "A festa de Babette" (1987), a refugiada (Stéphane Audran), ignorado chef do Café des Anglais, em Paris, recebida como criada pelas filhas do pastor protestante duma vilória da Jutlândia, converte um prémio da lotaria num jantar nunca visto, que oferece à comunidade de velhos fiéis na festa do centenário do pastor. Martina (Birgitte Federspiel) e Philippa (Bodil Kjer) (em honra de Martinho Lutero e do seu biógrafo e amigo Philip Melanchthon), sacrificaram o amor terreno à via estreita apontada pelo falecido pai.

É quando a visão, na cozinha, da tartaruga que fará a famosa sopa louvada pelo general (o bergmaniano Jarl Kulle ) provoca em Martina um pesadelo de cedência ao demónio da carne que a leva a obter dos fiéis a promessa de comerem, mas sem qualquer prazer, o que for que Babette lhes apresente.

Mas nessa espantosa ceia, como diz o general, num emocionado discurso, o físico e o espiritual confundem-se, tal é o nível da dádiva e da arte da cozinheira. No final, a congregação, na sua euforia, esquece as quezílias e o espírito mau que os afastava uns dos outros.

Não se pode deixar de admirar a ideia duma astúcia do Amor, fintando com a arte de viver francesa, a vigilância desses espíritos perdidos no seu labirinto e fazendo neles entrar a virtude essencial da caridade.

Um ou dois erros de casting, se se pode dizer assim (o general é o mesmo actor que fazia de tio da personagem - talvez se queira com isso dizer que o velho tinha cometido os mesmos erros do jovem; as filhas do pastor, envelhecidas, parecem ter trocado de aparência física: os olhos azuis, tão expressivos de Martina deviam pertencer, de facto, à sua irmã) não chegam para prejudicar esta obra-prima vinda do país de Dreyer.


quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O LAÇO DO GENJI


Akikonomu


"Escrevera com arte refinada, de modo a captar a atenção de uma jovem. A Princesa não soube o que responder, mas como as suas damas a pressionavam, dizendo-lhe que seria uma grande falta de cortesia fazê-lo por interposta pessoa, pegou finalmente numa folha de papel cinzento que fazia sobressair os traços de tinta, impregnou-a com um suave perfume e escreveu (...)"

"O Romance do Genji" (Murasaki Shikibu)


A esterilidade e a solidão seriam o destino duma natureza tão fechada e tímida, não fosse o papel das alcoviteiras do palácio, embora a essas damas certamente repugnasse a denominação.

O interesse dessas vozes insinuantes, que invocavam os deveres e a cortesia, em fazer a jovem cair no laço do temível sedutor, não era platónico, visto que a sua própria situação melhoraria muito com a protecção do Genji.

O poema enviado por este, graças ao inestimável serviço das intermediárias, não falhará o alvo. E a resposta de Akikonomu, mesmo que ela ainda não o saiba, selará o seu destino.


Douro (José Ames)

UMA EVOLUÇÃO SEGUNDA


Marshal McLuhan (1911/1980)


"E assim como um animal que desenvolva um órgão novo e diferente pela evolução natural passa a ser um animal diferente, também um homem que desenvolva um utensílio novo e diferente expande a sua personalidade e transforma-se num homem diferente."

"Memórias de um economista" (Peter Drucker)


Drucker fala do seu encontro com Marshall McLuhan e da paixão deste pela tecnologia, que considerava a "auto-perfeição do homem".

No limite, podemos imaginar uma substituição completa das funções do nosso corpo pela tecnologia. Claro que, nesse caso, já não poderíamos falar em humanidade. Não se aplica o exemplo do navio Argos, porque ele não mudou de composição, apesar das peças deste serem todas novas.

E é curioso o quanto, insensivelmente, avançámos no uso dessas invenções que, como dizia McLuhan, prolongam os nossos órgãos, ou que completamente os substituem.

A filosofia moderna, desde Nietzsche, preparou a nova mentalidade que nos faz ver o homem cada vez menos como o molusco dentro da casca da tecnologia, mas como um epifenómeno da forças do universo, sob a forma duma realidade cultural e histórica.

Essa visão facilita mais do que a migração no espaço uma migração nas formas da tecnologia que pode ser como que uma evolução de segundo grau.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008


(José Ames)

A NOVA FÍSICA DO TRABALHO


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t


"O gesto actual que exprime da maneira mais perfeita a passagem à era que se segue à da experiência é o download. Encarna a libertação relativamente à exigência de fazer experiências. Com ele, perfila-se um regime de cognição pós-pessoal, pós-literário, pós-académico."

"Palácio de Cristal" (Peter Sloterdijk)


Já a leitura é uma experiência que passa sem a experiência. Mas, enfim, ainda é uma "viagem à volta do meu quarto".

O download não é apenas uma experiência de segundo grau, mas um diferimento de toda a experiência. É uma nova forma do valor e uma nova capitalização.

Além disso, como sugere Sloterdijk, há a velocidade a que o mundo se converte em informação que nos "liberta" da necessidade de o soletrar.

Não é só o conhecimento que se arrisca nesse novo tipo de alienação, nesse fetichismo da informação pela ilusão do controle.

A noção de trabalho (a experiência do esforço e da pena) perde o seu modelo e a sua justificação natural perante esta física do instantâneo.

Como quando andávamos ao colo dos nossos pais, parece-nos transpor todos os obstáculos duma penada.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

O SOL



O imperador Hirohito, em Agosto de 1945, quando ordena ao seu povo a cessação de todas as operações militares é ainda o descendente da deusa do sol, Amaterasu.

Sokurov mostra-nos em "O Sol" (2005) os interiores glaucos duma renúncia. Os tiques e os passatempos, a sua paixão pela biologia, o seu culto de Darwin (talvez isso o ajude a encarar a necessidade duma evolução para o seu país , consentânea com os desígnios dos Americanos, mas também remete para um respeito totalmente exterior pelo ritual que não envolvia a maneira de pensar do homem moderno).

McArthur aparece grandalhão e mal educado diante do homenzinho que era alma desse génio militar terrível e fanático.

Mas em resposta ao general que se descarta da atrocidade das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki com um envergonhado: "- Não dei essa ordem", Hirohito replica que também ele não mandou atacar Pearl Harbour.

Na sequência da derrota, toma a decisão histórica de renunciar à divindade da sua pessoa. A mulher, autorizada a reunir-se-lhe, arrasta-o pela mão para ver os filhos e assim sai de cena, como um homem igual aos outros, sem a maldição de Amaterasu.

E a democracia pôde, com êxito, estrear-se nesse país insular, paradoxalmente oriental, visto que a sua identidade se teve sempre de forjar contra a cultura do continente asiático.


Tibães (José Ames)

AS CORES DO CORPO


Maurice Merleau-Ponty (1908/1961)


"O pintor 'oferece o seu corpo', diz Valéry. E, com efeito, não se vê como poderia um espírito pintar. É emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor transmuta o mundo em pintura."

"O olho e o espírito" (Merleau-Ponty)


Mas a pintura automática e os programas para "pintar" no computador põem um problema.

Não está longe o dia em que a máquina analisará uma série de quadros dum autor e extrairá a fórmula do seu estilo que aplicará depois, por exemplo, a uma fotografia.

É o que fazem os falsários, como aquele que vemos em "Fake" de Orson Welles.

E não se pode dizer que na origem tenha de estar um "corpo" ou um trabalho pessoal. A certa altura, não poderemos distinguir.

O que torna a pintura, ou pelo menos uma certa ideia sobre ela, num caso tão interessante de fronteira entre a arte e a não-arte é a sua função "sibilina", à escuta dos "sons" do mundo, como uma percepção mais desenvolvida, que a imaginação quase sempre transforma, depois, em jogo de formas.

Há, porém, outra pintura que não se pode reduzir ao "corpo", nem à transformação perceptiva. Mas pergunto-me se não é antes um monstro poético ou literário perdido no mundo das cores.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008


(José Ames)

ADMINISTRAR E GOVERNAR

"A Turma" (2008-Laurent Cantet)


"A administração é semelhante a uma razão mecânica. Tudo nela é irrepreensível e tudo é inumano. O princípio, de bela aparência, é o de que é preciso saber antes de agir; somente que saber não é pouca coisa; saber é fazer o inquérito a tudo e as contas a tudo; é deliberar sobre os inconvenientes, sobre as vantagens, sobre o provável, sobre o possível. É regulamentar mil golpes de picareta antes de dar o primeiro. Saber, é ter olhos em todo o lado; é unificar, é reunir. porque pode ser que se tenha, aqui lenha a mais, além carvão a mais, que as batatas apodreçam num ponto enquanto que faltam noutro; adivinhais os papéis e as estatísticas; e isso é razoável, demasiado razoável."

"Propos d'Économique" (Alain)


Pode-se administrar o mais racionalmente possível, uma empresa falida sem que com isso se faça mais do que condená-la ao seu destino. O exemplo perfeito é a administração militar, que sendo ruinosa, não deixa de calcular tudo ao pormenor, em função das suas necessidades, em termos de armas e munições, rações e botas.

É este espírito que deita a perder um processo de avaliação, como o que o governo definiu para os professores. Está demasiado bem regulamentado e tem certamente em conta os factores mais relevantes, mas com o resultado de se desmultiplicar em efeitos perversos que põem em causa o mais importante que não é saber quem são os melhores professores, mas educar melhor os alunos. O inquérito pode prejudicar, embora muito racionalmente, a função principal, como parece que acontece.

À noção do que é mais importante corresponde um juízo e uma decisão que distinguem uma política racional duma administração racional.

De resto, talvez que a crise do ensino seja um fenómeno cultural que pese menos sobre a competência de quem ensina do que no que se ensina e a quem. O professor François Martin de "A Turma", o filme de Cantet, não podia ser mais diligente, nem conhecer melhor a matéria. Não tira que, realmente, o seu melhor resultado seja administrar, nem sempre com êxito, a disciplina.

Mas porque a questão da competência não é despicienda, devia dar-se uma verdadeira oportunidade à avaliação, descentralizando-a, abdicando o Ministério da óptica da Intendência militar.

domingo, 16 de novembro de 2008


Lisboa (José Ames)

DESMESURA


Némesis (Alfred Rethel)


"Tal como no Inferno, não havia compaixão. Eles curvavam-se sobre os corpos estendidos e lançavam aos cães o despojo de caça a que estes tinham direito. Voltavam depois a acorrentar as feras, ao cabo de grandes esforços."

"Sobre as falésias de mármore" (Ernst Jünger)


A "canalha" trucidada pelos mastins neste primeiro embate nocturno no matagal do país simbólico ameaçado pela tropa do couteiro-mor, não tem espessura humana, e o leitor compraz-se na embriaguez duma violência que a defesa da liberdade parece reclamar.

É este mecanismo que transforma os idealistas em torcionários, porque os meios fazem o homem, qualquer que seja o lado da barricada em que se encontre.

Mas, com isto, que é da prudência dos povos, nada está ainda dito.

Na segunda guerra mundial, quem tinha razão: os pacifistas, entre os quais Émile Chartier, formados na experiência da guerra de 1914/1918, que viam heróis nas trincheiras de um lado e do outro e uma burocracia demente na retaguarda, aliada aos "fabricantes de canhões", ou os que, como Simone Weil, abandonaram o seu pacifismo inicial por entenderam que Hitler e o Estado moderno representavam uma outra lógica e que a própria noção de campo de batalha tinha perdido o sentido, que não havia mais heróis enganados, mas um jogo de engrenagens e uma ideologia assassina?

Foi, sem dúvida, por já se encontrarem no Inferno que os Aliados, sem qualquer necessidade militar, destruíram uma cidade como Dresde.

Mesmo sabendo que Hitler não era eterno, nem o seu Reich milenário, os cães de Jünger foram açulados, obrigando o couteiro-mor ao suicídio.

Não se pode "avaliar" os milhões de mortos que resultaram do conflito, nem no outro prato da balança a ideia de liberdade pode fazer o peso. O massacre não pode ser explicado pela defesa da liberdade. E só nos mitos da Antiguidade clássica encontremos algo à altura dos acontecimentos. Em Némesis, talvez, a deusa educada pelas Parcas, que castigava toda a desmesura.

sábado, 15 de novembro de 2008

O PENSAMENTO DA ELITE


Alan Greenspan


"A frivolidade da elite atemoriza; eles nem sequer ousam formar um pensamento sério; em vez disso, olham sempre para onde é que aquilo os vai levar; é a dança dos ovos; e isso desfaz o próprio estilo. Eles já não sabem falar consigo próprios virilmente. Não se atrevem. Assim, a mola real se gasta ainda mais depressa do que as outras. Que me mostrem um pensamento da elite que não encerre uma precaução contra esse mesmo pensamento. Pelo contrário, aquele que nada tem não tem medo de pensar."

"Propos d'Économique" (Alain)


A prudência governa as "alturas". Então por que é que acontecem coisas como esta crise financeira?

É que a elite dos negócios não sai dos trilhos "seguros". Greenspan acreditava que o sistema ia continuar assim por outros 40 anos.

Mas quem não tem nada, era preciso que tivesse pelo menos a liberdade do filósofo ateniense, sem que os passarões da ideologia o abocanhassem. De resto, é tudo muito mais complexo de usar sem guia. Quem compreende alguma coisa sem ter a informação certa?


(José Ames)

A BELEZA COMO DESTINO


O Romance do Genji


"É verdade que a bebé recém-nascida era de uma beleza sobrenatural, quase inquietante; quando a ama a viu foi a primeira a entender que a ansiedade do Genji era mais do que justificada e todas as apreensões que sentia quando se lançara naquela via incerta dissiparam-se como um sonho."

"O Romance do Genji" (Murasaki Shikibu)


A beleza humana neste romance incomparável nunca é de ordem estética, como a que está presente na arte e nas paisagens do mundo. A começar pela do Genji, ela é um destino, uma intimação dos deuses que causa uma espécie de terror (sobrenatural, quase inquietante).

Tanto na literatura como na vida há inúmeros exemplos da beleza como maldição, em que é uma distinção que parece designar para o sacrifício aqueles que a possuem. E quantos, para conservar a vida ou a honra, não tiveram de se disfarçar e tornar num exemplo do contrário?

É ainda a ideia de que aquilo que somos fisicamente nos permite uma vida e não outra e que uma diferente curvatura num certo nariz faria com que os deuses não tivessem abandonado António...

sexta-feira, 14 de novembro de 2008


Gloucester (José Ames)

A ESPERANÇA DE NÍOBE


Apollo and Diana Attacking Niobe and her Children (Lemonnier)


"Níobe viu matar os seus dez filhos. A sua dor fez chorar as pedras. Mas, à medida que a dor se acalma, ela começa a alimentar-se. Homero insiste nisto. É uma interposição da verdade iluminada, também fundamental em Shakespeare. O orgânico é tragicómico na sua essência. O absolutamente trágico é, portanto, não penas insuportável para a sensibilidade humana: é falso para com a vida."

"Paixão Intacta" (George Steiner)


Nada em demasia. O sentido grego da proporção revela-se aqui.

Mas se isso foi dito é porque podemos viver sem ter em conta os limiares da sensibilidade e com um respeito pelo orgânico mínimo, por assim dizer.

O absolutamente trágico é então a realidade. E a esperança em abundância, mas não para nós, de que fala Kafka, citado por Steiner, a única esperança.

O risco é tanto maior quanto parece termos deixado para trás o antropocentrismo, a medida humana, por ser incompatível com a do universo.

Perante todo o excesso, só podemos olhar para trás à procura da referência perdida.

O século XX deu-nos a ver o triunfo da Máquina, que culminou no Estado dos regimes "milenários".

"A possibilidade da guerra termonuclear e biológica e a devastação do planeta significam que a eventualidade da autodestruição da humanidade e do fim do equilíbrio ecológico deixaram de ser fantasias macabras." (ibidem)

Podemos então caminhar para o absolutamente trágico, como que sedados e com todos os alarmes desligados.

Níobe levará o pão à boca, mas será insensível.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008


(José Ames)

AVALIAÇÕES


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Começo por dizer que não gosto de avaliar nem de ser avaliado. Experimentei ambas as coisas na empresa e tenho de concluir que há muito de pró-forma e de ritual nessa prática. Apesar disso, o sistema impôs-se e ninguém, a não ser que queira ser considerado socialmente retrógrado, se atreverá a contestá-lo. E o que é mais sintomático ainda é que nem de si para si encontrará os argumentos necessários para contrariar uma ideia tão... imperiosa.

A ideia é, de facto, muito racional. É a crítica e a auto-crítica exercidas para obter um melhor desempenho. Embora estes conceitos sejam de origem filosófica e tenham encontrado na prática de certos partidos a sua consagração e o seu túmulo, todos percebemos como é importante essa tensão e esse espírito de emulação numa organização, qualquer que ela seja.

A experiência, contudo, dificilmente permitirá dizer-se que em algum caso a prática corresponda à sua justificação teórica. Talvez isso se deva à natureza inter-pessoal do meio em que tem de se exercer, que não se sujeita a simplificações.

Como, porém, o sistema parece funcionar, temos de encontrar alguma explicação para o paradoxo. Eu sugiro que o sistema de avaliação, mesmo se não avalia objectivamente a realidade inter-pessoal e os desempenhos diferenciados como eles são, tem um outro grande interesse para as organizações: o de legitimar a racionalidade da própria organização. Assim, a avaliação é uma "ideologia" que serve às empresas para se reverem na sua racionalidade e modernidade e para estabelecerem um perfil mais técnico e profissional.

Claro que isto vem a propósito da avaliação dos professores que agora agita as escolas e a comunicação social.

Ponho de lado a natural resistência à mudança e a sobrecarga de trabalho que, pelos vistos, será incomportável. E acredito, a julgar por alguns testemunhos, que a tarefa do ensino sairá, com isto, grandemente prejudicada, o que é já um motivo suficiente para rever o processo da avaliação.

Mas, para além disso, importa compreender o espírito da medida. Ela é a natural extensão à escola dos princípios da racionalização organizacional, há muitos anos vigente no sector económico. Pelo que digo acima, isso só pode provir da necessidade para o sistema de ensino, cuja falência tantos dizem estar à beira de se concretizar, dum novo fôlego com um reforço da sua legitimação. O Estado e o poder político vêm, assim, credenciar a organização do ensino com um certo tipo de racionalidade que já deu provas noutro lugar. Sabemos como, infelizmente, a razão pode levar longe um erro.

Por outro lado, não me parece que, não ser que a figura do professor passe a ser secundária e que o ensino "pós-moderno" o transforme num ajudante do computador, a organização, ao nível da escola ou ao nível do país deva influir na relação de pessoa a pessoa que é a educação. É claro que tem de haver organização, mas não é o essencial. E quando se privilegia este aspecto está, então, a comprometer-se a função da escola. Ou, se quiserem, a preparar-se um novo paradigma em que o professor sai pela esquerda baixa e entra a eficiência interactiva, mas impessoal.

Para contentar Gregos e Troianos, respondendo aos professores que não querem admitir que não precisam de ser avaliados e ao Governo que não prescinde de levar a eficiência empresarial às escolas, devia-se expurgar o sistema da sua loucura racionalizante que se traduz em hiper-reunite, papelada e avaliações em cadeia. Legitimar sim, mas sem desvirtuar.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008


Porto (José Ames)

AS INFOBERTAS


Óleo de Carlos Alberto Santos


"Como, porém, mesmo para os terroristas islâmicos, é demasiado tarde para rever a repartição das coisas e dos territórios no globo, confiscam grandes terrenos no espaço amplamente aberto da informação mundial. É nele que erguem os seus pendões, da mesma maneira que, antigamente, após os seus desembarques nas costas de África e da Índia, os Portugueses erigiram os seus padrões."

"Palácio de Cristal" (Peter Sloterdijk)


Os nossos Descobrimentos parecem estar a ter uma segunda vida na filosofia moderna, graças ao fenómeno da globalização.

A primeira rede foi, de facto, a daqueles que puseram as partes distantes do mundo em contacto umas com as outras, mesmo se esse contacto teve, algumas vezes, a forma do choque traumático.

Com a rede tem a ver a presente crise da multiplicação dos activos financeiros sem nenhum pé na realidade, da qual a ganância dos homens só pode ser uma causa secundária, porque o crescente divórcio entre a realidade e a sua representação está no código mesmo da última das revoluções: a da informação. Esta crise é como o excesso de tensão num cérebro em sobrecarga que, além disso, tem uma actividade cada vez mais independente do corpo.

Michael Crichton, recentemente falecido, vaticinava que os actuais mass media desapareceriam todos no espaço duma década, como os dinossauros. Talvez que isso signifique que a rede, ou as redes, controlarão melhor a sua tensão e que os gananciosos e os terroristas perderão o seu campo de manobra.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

DESEJOS SELVAGENS


"Savage Grace" (2007-Tom Kalin)


Tudo o que acontece às personagens de "Savage Grace" (mas o sentido é o da maldição) não lhes dá corpo nem alma. São colagens de ideias vindas de um lado ou de outro. Como a da mãe possessiva, a da mundana excêntrica em luta contra a verdade social de si própria. O que ressalta nesta deriva é a fealdade da sua pele. Mas Julianne Moore bate-se como pode.

A esquizofrenia de Tony ( Eddie Redmayne ), o filho dos Baekeland, e o crime chocante do final surgem como a conclusão do que ficou por preparar.

O título em português é o que há de mais deslocado. Desejo é o que não tem lugar nesta que podia ser uma orestíade gay.


(José Ames)

A DIVINA MATÉRIA


Ernst Jünger (1895/1998)


"Foi, pois, com alegria que adquirimos a certeza de que a destruição não penetra até aos elementos e de que a sua ilusão se limita a encrespar a superfície como fantasmagorias que não resistem à luz do sol."

"Sobre as falésias de mármore" (Ernst Jünger)


Esta devia ser a profissão de fé de todo o materialista, dialéctico ou não. A matéria é imperecível e os átomos de que os homens são feitos hão-de continuar a sua própria odisseia pelo tempo e o espaço, mesmo depois do cogumelo atómico final. Ao mesmo tempo, esta distinção entre a aparência da destruição e a realidade (da permanência) é, evidentemente, platónica.

Jünger escreveu este texto "fantasmagórico", em que a minúcia duma natureza-morta holandesa se alia ao mais profético lirismo, a pensar na situação da Europa sob a ameaça do nazismo.

Mas a distância entre as personagens literárias e os seus modelos (entre os quais se contam Goebbels e Hitler, o Couteiro-mor) é tão difícil de transpor que o ditador não se sentiu implicado e permitiu que o escritor vivesse.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

OS CÂNTAROS


http://music-arts.eu/html/trad instruments


Ó boca de fonte, doadora, ó boca

que inexaurível dizes uma só coisa, pura, -

tu, máscara de mármore ante a face

fluida da água. E no plano de fundo


a origem dos aquedutos. De longe, passando

junto aos túmulos, da vertente do Apenino

trazem-te a tua fala, que então

pelo negro envelhecer do queixo


passa e cai na concha em tua frente.

Esta é a orelha jacente e adormecida,

a orelha de mármore pra que falas sempre.


Uma orelha da Terra. Apenas pra si só

ela fala assim. Interpõe-se um cântaro,

parece-lhe que estás a interrompê-la.


Sonetos a Orfeu (Rainer Maria Rilke, tradução de Paulo Quintela)



A água como metáfora do dizer da Terra que um cântaro interrompe.

As palavras (sempre as mesmas?) brotam da eterna fonte para serem recebidas na concha de mármore.

Está assim tão longe da prosa dos nossos dias este poema?

O que fica do que dizemos uns aos outros senão o que os livros e outros cântaros transportam para o fluir mais lento da memória?

O passado inspira-nos assim contido nas suas paredes.


Bath (José Ames)

A MÉDIA PROPORCIONAL


http://image18.webshots.com


"Se um Americano, um Inglês e um Hindu estão juntos, os dois primeiros têm em comum o que nós chamamos a cultura ocidental, quer dizer, uma certa participação numa atmosfera intelectual composta pela ciência, a técnica e os princípios democráticos. A tudo isso o Hindu é estranho. Em contrapartida, o Inglês e ele têm em comum qualquer coisa que faz em absoluto falta ao Americano. Essa coisa é um passado. Os seus passados são decerto diferentes. Mas muito menos do que se crê. O passado da Inglaterra é o Cristianismo, e antes um sistema de crenças provavelmente próximo do helenismo. O pensamento hindu está próximo de um e de outro."

"A propos de la guerre coloniale" (Simone Weil)


Nesta geografia espiritual, o Ocidente absoluto seria a América e, no outro extremo, estaria o Oriente (donde vem tudo, disse o poeta, e Simone insiste: o nosso passado vem em grande parte do Oriente).

A Europa seria, assim, uma espécie de "média proporcional" entre a América e o Oriente.

Podemos, claro, apoiar-nos numa ou noutra dessas tendências. Mas já Franco dizia que os Americanos são demasiado infantis. A expressão é feliz, mesmo vinda de quem vem. Porque a infância ainda não tem passado. E "se o homem tem necessidade de um socorro exterior, e se se admite que esse socorro é de ordem espiritual, o passado é indispensável, porque ele é o depósito de todos os tesouros espirituais." (ibidem)

A americanização crescente do nosso estilo de vida, desde a cultura até aos hábitos de alimentação, levou-nos já para demasiado longe da influência oriental. E é verdade que o mais característico dessa transformação é o fetichismo do novo e do presente, ficando o passado e as tradições relegados, no melhor dos casos, para o turismo cultural.

Mas a América não precisa menos de nós do que nós precisamos do Oriente. No entanto, a Europa de que os Americanos precisam não é um subproduto da sua própria cultura desenraizada.

Nos tempos de crise, como os que atravessamos, podemos perceber isso melhor.

domingo, 9 de novembro de 2008


(José Ames)

CORTAR O MAL PELA RAIZ


"Vista de Nantes" (Pierre Justin Ouvrie)

"Aqueles a quem chamavam sans-culottes, unicamente por serem pobres, não tinham outra opinião além da fome. Os marinheiros não navegavam mais, os cordoeiros não fiavam, os pescadores não pescavam e as peixeiras não vendiam; estas, inconstantes e furiosas, mudaram três vezes de partido em dois anos."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Passava-se isto em Nantes, no centro da contra-revolução, em 1793. As prisões da cidade estavam cheias, de olhos postos no outro lado do canal da Mancha e nos vendeanos que aguardavam de hora em hora.

Para resolver o apinhamento das prisões, os girondinos, de vez em quando, e ao acaso, soltavam alguns que iam engrossar o campo inimigo. Goullin, um ex-plantador de S. Domingos, à frente da defesa da cidade, adoptou o método oposto: matou-os a todos.

Michelet diz que este homem tinha acabado de se recompor "duma grande doença nervosa que lhe havia deixado uma certa irritabilidade e uma exaltação febril", e acrescenta que "os homens neste estado têm poderes terríveis. Tudo lhe cedia."

Mas se o "terrível nó da Vendeia" foi cortado, não foi graças a este crime, o qual, pelo contrário, encorajou outras barbaridades prejudiciais à Revolução. A desorganização dos vendeanos, as suas lutas intestinas, as privações de todo o género e o abandono por parte dos Ingleses foram decisivos.

"Cortar o mal pela raiz" é muitas vezes uma ilusão que o dogmatismo político favorece. Não há nada de mais improvável do que identificar e isolar a raiz dum fenómeno social. O que faz com que "tudo esteja ligado" e nunca se atinja a "raiz" de nada é o passado que não está em lugar nenhum.

Mas isto desemboca na paralisia contemplativa. O homem que age nunca tem em conta as circunstâncias todas, nem se figura todas as consequências. Por isso, nunca se "corta o mal pela raiz", mas, em vez disso, dá-se um novo piparote na roda da fortuna.