quinta-feira, 6 de novembro de 2008

REFLEXOS DE GOMORRA


La destruction de Sodome et Gomorrhe (Peinture de John Martin 1832)


"É muitas vezes só por falta de espírito criador que não se vai suficientemente longe no sofrimento. E a realidade mais terrível, ao mesmo tempo que o sofrimento, dá-nos a alegria duma bela descoberta, porque ela não faz mais do que dar uma forma nova e clara àquilo que ruminamos há muito tempo sem nos apercebermos."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


É quando o pequeno comboio está a entrar na estação de Parville que Albertine, aos olhos do narrador, se revela uma outra pessoa, como para um crente, uma pessoa de outra religião, visto que a verdade que transparece é de natureza sexual.

Momentos antes, Marcel tinha mentalmente decidido romper com o que começava a considerar "uma vida verdadeiramente estúpida". Albertine parecia um item visto e catalogado, e ele, simplesmente, não a amava. Mas gostaria de se libertar da promessa de casamento e daquele namoro, nesse momento, precisamente, em que os sentimentos dela pareciam genuínos, embora sem correspondência. Era a sua amiga Andreia que almejava agora anexar.

Mas é então que a confissão, quase negligente, das amizades sáficas de Albertine, isto é, do que podia pôr em causa a sinceridade do seu amor que o lança na maior das angústias, em plena terra incognita.

Se traduzirmos esta intriga na linguagem da inversão, adoptando aqui o método de Sainte-Beuve que Proust abominava, de explicar a obra pela biografia, temos de mudar o sexo de algumas personagens-chave. E o que se nos apresenta é a descrição de um narcisismo sui generis, que se revela menos dependente do espelho e da relação do próprio consigo mesmo, do que do amor dos outros, e até à angústia mais extrema, dum amor incondicional, como só existe um na terra.

0 comentários: