sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Sem título

Paris

 

O EXTRAVIO

 

"O extravio é a morada aberta do erro. O erro não são falhas isoladas, mas sim o reino (a dominação) da história daquelas ciladas, entretecidas em si mesmas, de todos os modos do extraviar-se."

("Da Essência da Verdade", Martin Heidegger)


Quem sai do caminho certo (da Via) está condenado a errar, cada passo que dê está fora da 'verdade'. Todas as religiões o dizem. É preciso voltar ao caminho. Não há aqui lugar para o caminho de Machado, que se faz caminhando, nem para o bom-senso popular de "quem se mete por atalhos, mete-se em trabalhos".

A invenção do Diabo (o que 'se atravessa') tem a função de estabelecer uma 'jurisdição' maldita. Se se diz que o diabo está nos pormenores é porque ele é o mestre de "todas as ciladas" que se proporcionam a cada passo extraviado.

Pelo seu lado, o Caminho parece estar livre de enganos (Descartes tendo descartado o 'Malin Génie').

Que um pensador tão profundo e influente, como Heidegger, tenha restaurado o Diabo seria caso de grave meditação. Mas se a tremenda figura não fosse mais do que uma invenção da Retórica a qual, no 'discurso da modernidade', segundo Habermas, obtém a primazia sobre a Lógica, poderíamos encontrar na mística do filósofo alemão toda a razão de ser.

 

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

COMO UM CÃO

"The Trial" (Orson Welles)

 

"Enquanto a sua visão enfraquecia, K. viu os dois cavalheiros cara com cara mesmo em frente da sua face, observando o resultado. "Como um cão!" disse, era como se a vergonha de tudo aquilo lhe sobrevivesse."

"O Processo" (Franz Kafka)

Depois da cerimónia em que passaram a faca de talhante de um para o outro, como se um último escrúpulo os fizesse hesitar, os dois funcionários ('gentlemen', como diz a versão inglesa) desobrigaram-se da sua tarefa, espetando a faca por duas vezes no pescoço do 'réu'.

Se o romance não estava acabado na mente de Kafka, não podia ter sido 'interrompido' de melhor maneira. O processo que K. nunca pôde consultar e que estabelecia a culpa 'metafísica' (tal como a dos que seriam arrastados, apenas umas décadas mais tarde, para os campos), o juiz que o condenou, sem que K. soubesse quem era, como não sabia das provas em que a sentença se baseava, ou da argumentação utilizada, não tinham, de facto, importância.

As últimas palavras do condenado explicam melhor do que qualquer discurso o facto do 'processo' ser no fundo o sintoma de ter sido excluído da humanidade. Aquela espécie de justiça não era penal, nem corrigia coisa alguma. A Lei mostrava-se independente disso. Tinha a autonomia de uma máquina que se alimenta do seu próprio movimento.

Mas o escritor deixa-nos outra palavra desafiante. A vergonha (para quem?) que há-de ficar associada ao seu caso, àquela 'execução' no descampado suburbano, longe dos olhares. Será então a vergonha dos outros. A dos que não querem ver e que espiam da janela iluminada de que o autor fala nas últimas linhas?

 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Sem título

 

Monmartre

 

COMUNICAR É PRECISO

Gustave Flaubert

"JORNAIS: Não poder passar sem eles, mas atacá-los de qualquer modo. A sua importância na sociedade moderna. Ex.: 'Le Figaro'. Os jornais sérios: 'La Revue des Deux Mondes', 'l’Economiste', 'Le Journal des Débats'; Espalhá-los pela mesa do salão, mas com muito cuidado de os cortar antes. Marcar algumas passagens a lápis vermelho, faz também um bom efeito. Ler de manhã um dos artigos destas folhas sérias e graves, e à noite, em sociedade, conduzir habilmente a conversa para o assunto a fim de poder brilhar."

"Dictionnaire des Idées Reçues" (Flaubert)

O burguês filistino, homem de aparências, está aqui retratado sem nuances. Flaubert, neste seu pequeno dicionário, diverte-se a caçar com rede larga a estupidez, coisa enorme e as mais das vezes obscura. Quantas vezes, a estupidez é um instinto político... O Cláudio de Robert Graves é o melhor exemplo. Embora encontremos, na mesma fonte, a ideia de um homem mais astuto do que estúpido, ter-se-iam enganado todos os seus contemporâneos?

Voltando às 'ideias feitas' de Flaubert, é notório que na nossa época a necessidade filistina de parecer informado deu lugar à ilusão de que só não está informado quem não quer. Não faltam os 'especialistas' para 'esmiuçar' os números e os factos, de tal modo que o burguês de Flaubert já não saberia distinguir as fontes 'sérias' das que o não são. Talvez a 'idée reçue' correspondente fosse hoje a de que 'comunicar é preciso' e que a informação só serve para comunicar. É o pensamento oculto dos que ainda lêem jornais.

E o que é feito do 'homem das aparências' que realmente nunca leu o jornal matinal com a piedade hegeliana? Talvez faça parte duma rede social em que ele próprio é a informação. Já não 'brilha' no salão mundano, mas 'comunica'.

 

 

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

O FEITICEIRO DE OZ

 

Marcelo apareceu de improviso no congresso do seu partido e foi, como era esperado, festivamente recebido. Apesar de algumas liberdades que se permite, em relação ao Governo, no seu programa de televisão, ninguém tem dúvidas de que esse 'jogo' é uma mais-valia para o partido. Dizem que é como a caução de um certo pluralismo...

Mas o popular comentador, que tem um estilo tão televisogénico, depende também dessa licença para mordiscar, sem maldade, os figurões da política. Precisa de ser credível e consegue-o graças a um talento inimitável de 'trocar por miúdos' qualquer assunto complexo, o que faz dele uma espécie de 'divulgador' interessado. Toda a gente sabe que Marcelo nunca se juntará a Pacheco Pereira, do outro lado do Rubicão. Por isso um foi quase 'erguido em ombros' e o outro vaiado sem remissão.

José Sócrates quis criticar a 'quase-instituição Marcelo', mas só pôde fazê-lo acentuando um ponto de vista de 'gravitas', hoje humilhado nos estúdios de televisão (é a parte mais cómica de Jim Hacker, a personagem de uma conhecida série britânica), e que o próprio Sócrates nunca cultivou durante o seu mandato.

É verdade que a linguagem que o comentador trouxe ao Congresso é simplista e redutora, como a que se usa no futebol, sem dúvida, o mais popular dos tele-desportos. É sobretudo a linguagem do espectáculo sem rebuços, dentro de um outro espectáculo (o Congresso), que não se pode assumir como tal.

José Sócrates tocou num ponto crucial, que não é um 'problema de forma', mas de substância: que política é esta que se faz para a televisão e que o 'feiticeiro de Oz' da TVI cunhou, por uma vez, neste abraço aos seus correlegionários?

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Sem título

 

ABSOLUTAMENTE ÚNICO

Blaise Pascal (1623 - 1662)

"(...) Pascal escreveu um texto sobre o amor, que adoro: será que eu me enamoro porque ela é assim ou doutra maneira, porque ela tem esta ou aquela qualidade? Não. O que se ama em alguém, não são as suas qualidades objectivas nem as suas particularidades locais, mas a sua singularidade. Amar alguém é, pois, dizer: "Isso, é mesmo teu!" Saber que esse alguém não é substituível. A sabedoria consiste em aprender a viver com a questão: "O que é que eu faço da singularidade que amo no outro, sabendo que ela é atrozmente frágil?" Como vencer o medo de a perder? Ou melhor, o que fazer desse medo? Eis uma verdadeira questão filosófica."

Luc Ferry ("Une sagesse de l'amour", propos recueillis par Jacqueline Remy -"le Nouvel Observateur")

Mas também o "isso é mesmo teu" pode ser dito de alguém a quem nos habituámos e cujos movimentos julgamos ser capazes de prever. É a queixa do "não há nada a fazer, tu és mesmo assim!" de homens e mulheres que acreditaram um dia, talvez, que era possível mudar a natureza do outro.

Este é, portanto, o reconhecimento conformado. Pascal fala-nos do júbilo e do sofrimento de partilhar um segredo só a nós revelado. Como se cada ser fosse a chave do universo.

Quanto ao medo, como diz Luc Ferry, não se trata tanto de o vencer, como de transformar o pensamento de perda no de dádiva e de liberdade.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

ROMANCE MAORI

 

Em "O Piano" (1993-Jane Campion), à tecla amputada como prova de amor, responde a vingança do dedo cortado com o machado. Mas é da ordem natural das coisas que o corpo pertença ao carrasco e que a alma sempre lhe escape.

A troca que Baines (Harvey Keitel), ignorando tudo da música, mas sabendo muito dos silêncios, propõe a Ada é a do seu corpo inerte e prisioneiro pela expressão dos sentimentos.

Quando esse corpo se trocou todo pelo piano, como se tudo não passasse duma chantagem amorosa, Baines recusa-se a continuar a "prostituição" de Ada. Esta tem agora o piano mas só pode voltar a tocar se o corpo lhe for "devolvido" e só Baines pode resgatá-lo.

Um longo caminho para o piano acabar, inútil já, no fundo do oceano.

 

 

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

ALENTEJO METAFÍSICO

Estremoz

 

Há qualquer coisa de geometricamente estranho na praça D. Dinis, em Estremoz (se nos conseguirmos abstrair dos automóveis que ali se encontram estacionados),

De certos ângulos, faz lembrar o espaço mental dum Chirico, atravessado por figuras lunares como a da rainha branca com as suas flores, de costas voltadas para o vazio.

Não há nenhum edifício simétrico, nenhum volume parece integrado em qualquer conjunto pensado. Tudo é desigual e até o negro da torre contrasta com o mármore da Casa do Desenho e a igreja sem empena que está ao lado.

Donde vem, portanto, a sensação duma tão forte harmonia?

 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

ANIMULA VAGULA

É verdade o que diz Adriano de só os velhos terem o privilégio de abandonar a máscara. Querer agradar talvez seja mais do que um pecado das outras idades, um acordo de paz para guardar o domínio de si próprio. O velho e o doente conhecem a experiência mais profunda da solidão. A morte só aceita a visita do homem nu. Nada de companhia frívola ou zelo amoroso. E o corpo, através da doença, aprende a separar-se dos homens.

Contudo, é preciso frequentar o pensamento dos séculos para conservar os olhos abertos na entrevista solitária com a dama de espadas. Por isso me parece que a autora tem razão ao dizer que é possível viajar no tempo recorrendo à forma humana. E o século II é ontem, é o passado duma maneira geral. A infância é um mito irredutível. Por muito que se limpem e componham as ruínas, não encontraremos habitantes. E a palavra que nos indica uma passagem, o contacto dum povo é ainda pedra sobre pedra. O homem que nos fala atravessou as eras da humanidade. Como a célula permite a reconstituição do corpo, no homem há um resíduo da história. Este fragmento poético tão íntimo, cheio de diminutivos, animula, vagula, blandula é o diapasão que identifica a verdade dum sentimento e duma sensibilidade. A poesia abre-nos o coração do homem, como a ideia da infância nos desarma e despe aos nossos próprios olhos.

Yourcenar, para escrever a história que compreende a “animula” e o imperador – esta tradução do sentimento no mundo da política, a reunião da sensibilidade e do poder, para além da consciência do homem sem Deus, característica deste período, segundo as notas da escritora, é o motivo da obra como se adivinha – deixa-se tomar pela personagem pouco a pouco recriada a partir do núcleo poético, das leituras e dos documentos. Ela tenta pensar o romano como coisa sua. Com o amor do passado pessoal. E se é evidente que haverá tantos Adrianos como os médiuns que convocarem o seu espírito, isso não é apenas uma fatalidade dos séculos que nos separam.

É fatal que aconteça porque se conta a vida. Adriano seria o primeiro a trair-se. Mas é o espírito que é verdade.

 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

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Paris

 

JOB

Job

 

"Da mesma forma, a totalidade da experiência humana assume um carácter penal. Ora, esta visão moral do mundo foi desfeita pelo próprio pensamento judaico quando meditou sobre o sofrimento do inocente."

"A Simbólica do Mal" (Paul Ricoeur)

O castigo imposto a Job não corresponde a nada que ele tenha feito ou deixado de fazer. Ele é o justo contra quem faltam as provas. Mas não sofre sem protestar a sua incompreensão, sem interpelar Jeová sobre essa espécie de justiça.

Mas não era essa a lei antiga que punia os filhos pelas faltas dos pais? Job quer ser julgado pelas suas próprias faltas. Sobrevive aqui um arcaísmo que causa escândalo ao povo da 'Aliança'? Ou nenhum homem, perante o Deus ciumento, chega a ser plenamente um indivíduo, recaindo sobre a sua cabeça o próprio facto de fazer parte de um povo de 'cerviz dura', sempre demasiado pronto a seguir os 'falsos deuses' e a adorar o 'bezerro de oiro'?

De um certo ponto de vista, Job somos todos nós. Culpados, talvez, perante a lei, como é necessário em sociedade, mas inocentes aos olhos do 'Omnisciente', do 'Omnipotente'. Todas as faltas parecem, assim, mais armadilhas divinas do que outra coisa. A Misericórdia divina, se há justiça, é-nos 'devida' na proporção da nossa infelicidade.

Não há homens voluntariamente maus, dizia Sócrates, o primeiro justo 'civil'.

 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

HELENA

"Helena fora a demonstração viva do teorema ateniense: 'a beleza, pela sua natureza, reina sobre a força.'"

(Roberto Calasso)

 

Será um pensamento 'idealista' o de que a perfeição da forma atrai e desfaz o caos num princípio de ordem?

O caso de Helena pode ser explicado apenas pela luta pelo poder, pelo desejo de conquista, pelo amor da glória? Seria uma peripécia da economia política e da estratégia de 'classes dominantes'? Ou é a 'demonstração' de que um tal desperdício de vidas como foi a guerra de Tróia se ficou a dever a uma loucura 'inspirada', e, no fundo à perseguição de um fantasma? Chegou-se a especular que a mulher de Menelau esteve todo o tempo da guerra no Egipto...

O motivo mais corrente, sobretudo nas guerras do século XX, é o do medo. Mas são guerras em que as tropas não aguentam 'o último quarto de hora' e logo que cessa o estímulo mecânico, pára a máquina militar. No oposto, estão as guerras que a França napoleónica impôs à Europa, em nome dos ideais da Revolução, mas, no fundo, contra o caos da 'revolução permanente', lançando as bases duma nova política 'imperial'.

Não é preciso dizer que as guerras de religião sempre foram as mais radicais e as mais mortíferas e que os 'interesses económicos', salvo excepções, não são para aqui chamados.

É na guerra de religião que, com efeito, se revela esse 'poder' da beleza sobre a força professado pelos Gregos, segundo Calasso. É na verdade ao princípio da ordem perfeita que mesmo os mais fanáticos obedecem. Ao sonho de um mundo sem conflitos, sem divisões 'sectárias', onde reinará, enfim a harmonia universal...


 

 


 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

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Arouca

 

PARADOXOS DO DESEJO

 


"O desejo é a distância tornada sensível"

"A presença só é presença à distância."

(Maurice Blanchot)


Estes paradoxos de Blanchot estão no âmago do próprio pensamento. Não existe objecto, do desejo ou outro, se não nos afastarmos o suficiente.

No amor, o que há de mais comum do que a proximidade sem presença e o contrário desta no estado fusional das consciências?

Daí que a distância seja a condição de se sentir a proximidade.

 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

AS VIRTUDES DO LETES

 

"- A maior desgraça, respondi, que pode acontecer a um jardim inglês que agrada, é conhecê-lo. O que não daria eu por nunca ter visto na minha vida mais do que um quadro do Corrégio ou nunca ter ido ao Lago de Como.'

Infelizmente, toda a ciência se assemelha num ponto à velhice, cujo pior sintoma é a ciência da vida, que nos impede de nos apaixonarmos e fazermos loucuras sem um motivo especial. Eu gostaria, depois de ter visto a Itália, encontrar em Nápoles a água do Letes, esquecer tudo, e depois recomeçar a viagem, passar os meus dias assim."

"Promenades dans Rome" (Stendhal)


É verdade. Nenhuma maravilha permanece muito tempo admirável. Ela não perdeu nenhuma das suas qualidades. Nós é que envelhecemos, conhecendo-a de mais.

Como Henri Beyle eu digo: ah! quem me dera poder ouvir ainda Mahler pela primeira vez ou ler Tolstoi sem os preconceitos (todos altamente favoráveis, aliás) que entretanto se interpuseram como uma lente entre mim e a " thing of beauty".

Felizes daqueles que conseguem esquecer e voltar às obras-primas com toda a inocência.

O contrário disto é dissecar. E aquele que não esquece nada volta sempre ao lugar do "crime" e só lhe resta analisar, desmontar, pôr a nu a estrutura, conformando-se, na falta de paixão, ao esquálido prazer de destruir.

 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sem título

Bath

 

O TRATADO DA BALEIA

http://www.avidly.org

 


A narração em "Moby Dick" é entremeada duma peroração semi-técnica sobre os cetáceos e as embarcações de pesca.

O drama que se vive a bordo do Pequod e a blasfematória perseguição de Ahab é, assim, constantemente interrompido, desfeito por uma espécie de tratado da Baleia.

Não se descreve com pormenor para preparar a acção, como quando Balzac se detém no aspecto do vale em que branqueja o lírio. Não é o contraponto, com mudança de tempo, entre as cenas de batalha e aquelas, de interior, em que convivemos com os Rostov e os Bolkonski, como no épico de Tolstoi.

Parece arbitrário este casamento entre o romance e o tratado.

Mas não se pode negar que a aventura do Pequod nos surja mais insana quando a comparamos com a racionalidade dos meios.

Como se Melville nos dissesse que podemos sempre, racional e metodicamente, dedicar-nos com a maior eficácia possível à auto-destruição.

 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

ORFEU

 

"Se o fragmento 133 de Píndaro ilustra bem o orfismo, então a alma daquele que dorme, vela; e a alma daquele que vela, dorme."
(Paul Ricoeur)

 

Os textos da antiguidade são sempre enigmáticos, o que não quer dizer que não esteja ao nosso alcance tirar deles múltiplos sentidos, conforme os contextos pressupostos.

O tempo, 'esse grande escultor', é também um 'imenso escritor' de fragmentos. Se pusermos de lado os aforismos com que alguns autores deliberadamente nos deixaram numa 'encruzilhada' de sentidos, os aluviões da história arrastaram até nós pedaços do que já foram obras acabadas, que entretanto perderam a cabeça ou as pernas (ainda numa comparação com a estátua), mas, ao mesmo tempo, ganharam incomparavelmente mais no plano simbólico. O que falta ao torso que se encontra na Gulbenkian, ou à Vitória de Samotrácia do Louvre?

Não podemos saber se este fragmento 133 está a ser interpretado conforme a intenção do poeta grego. Mas a teoria do orfismo não tem muitos documentos em que se apoiar. É assim que Ricoeur nos propõe esta 'pedra angular' tão sólida como qualquer mito antigo.

 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

OS BURACOS DA REDE

Fotografia de José Neves Catela

 

"Interpretar é não saber explicar. Explicar é não ter compreendido."

Fernando Pessoa


Isto é o mesmo que dizer que a compreensão não é comunicável. Quando encontramos a 'raiz do pensamento', descobrimos que o nosso corpo lhe está indissociavelmente ligado. A partir daí só o pensamento separado da lógica e da razão nos permite fundar uma sociedade.

São os poetas que sempre vêm pôr a integridade disso em questão. Construimos uma rede sobre o mundo que nos permite uma espécie de linguagem comum, na condição de deixarmos os 'buracos da rede' sujeitos à interpretação, porque, de facto, não os sabemos explicar.

As tentativas de fazer como se soubéssemos, revela a nossa incompreensão, como diz o poeta das máscaras.

 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

UNIDADE

 

"A Inquisição espanhola não foi uma tentativa arcaica de preservar um mundo religioso ultrapassado; foi uma instituição modernizadora concebida por monarcas para criar unidade nacional."

"The case for God" (Karen Armstrong)

Custa a crer que um processo tão complexo e tão fora do espírito cristão pudesse ter sido concebido por um grupo de homens que 'pontificava' na Igreja (e fora dela) com tal consciência estratégica.

Podem dizer que a 'questão judaica' manipulada por Hitler visava também a unidade dos 'arianos'. Mas um motivo tão 'racional' (para a razão instrumental) não teria força para enfrentar as dificuldades legais e éticas, para só mencionar estas, com que teria de se confrontar.

De qualquer modo, se alguns daqueles 'monarcas' tivesse em vista a ideia da unidade nacional (ou, mais plausivelmente, dos crentes), o importante é no que se tornou esse 'objectivo' no processo social e político, em que forças mais poderosas e sem 'objectivos' tão 'modernos' se revelaram.

Outra maneira de dizer que as decisões humanas (e não as dos deuses) caem sempre sobre as nossas cabeças como se soubéssemos o que fazíamos.

 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

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Vieste (Puglia)

 

A UTOPIA

http://www.deviantart.com/view/6711321/


Extraio dum texto de Andreia Brites, em "Os meus livros", esta citação de Tolentino de Mendonça:

"É importante isto que a poesia nos ensina: que estamos sempre no princípio ou no fim e que estamos ainda a tempo, e que no meio de todas as nossas vulnerabilidades é possível a palavra infância. A infância é o futuro do homem e é o futuro da palavra. Não é o sítio que abandonamos, mas é a utopia."

Procurar a utopia dentro de nós e no passado, não no tempo da palavra livre e senhora de si, mas no tempo em que ela se confunde ainda com a natureza, quando o homem mal sabe falar ( in-fans, que não tem ainda o uso da palavra), é bem uma ideia de poeta, porque talvez não exista outra fonte da poesia além da infância.

É também o sinal de que a utopia deixou de se poder pensar em termos políticos e que nunca nos salvaremos todos em conjunto, graças às virtudes de uma qualquer organização social, mas que cada homem tem de encontrar o seu próprio caminho.

E que, como dizia Simone Weil, o futuro não existe, não podemos ter ideia dele nem elegê-lo como modelo. Toda a inspiração há-de vir, pois, do passado, duma idade de ouro da humanidade ou do passado individual, do mais puro desse passado.

 

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

O QUE NUNCA SE ACABA

Fernando Pessoa

 

"Choro sobre as minhas páginas imperfeitas, mas os vindouros, se as lerem, sentirão mais com o meu choro do que sentiriam com a perfeição, se eu a conseguisse, que me privaria de chorar e portanto até de escrever. O perfeito não se manifesta. O santo chora, e é humano. Deus está calado. Por isso podemos amar o santo, mas não podemos amar a Deus."


"O Livro do Desassossego" (Fernando Pessoa)


A perfeição não é deste mundo, que não é perfeito nem imperfeito.

É uma ideia que nasce das nossas limitações, porque nós é que não estamos "acabados", nem podemos estar.

Sem essa tensão para um valor, como lhe chama Simone Weil, não poderíamos concebê-la e seríamos, então, perfeitos, como o animal é perfeito.

 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

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Porto

 

O TOQUE DE LUBITSCH

Ernst Lubitsch (1892/1947)

Mary Pickford, depois de trabalhar com Lubitsch, queixava-se de que ele só filmava portas. Mas, em Lubitsch, as portas, a porta de alcova, sobretudo, permitem-nos imaginar o que se passa por detrás. As personagens que saem sabem todas mais do que nós, o que as torna logo mais interessantes.

O famoso Lubitsch's touch está nesta ocultação, na montagem virtual deixada ao espectador que o envolve no trabalho do sentido.

"To be or not to be", que foi tão mal recebido e considerado de mau gosto, no contexto da 2ª guerra mundial, tem uma cena de porta fechada absolutamente genial. É quando Tura fica sozinho com o cadáver de Seletsi, personagem por quem se faz passar. Os nazis, do outro lado, deleitam-se maldosamente nos apuros em que se encontra o espião desmascarado.

Mas o teatro continua, Tura é um actor.

A simulação da realidade pelo grupo de actores polacos, cuja eficácia, nem por ser inverosímil nos delicia menos é, de facto, mais subversiva e crítica do que outras tentativas de abordar o nazismo pela comédia ("O grande ditador", de Chaplin) ou pelo sonho ("A vida é bela" de Benigni).

E até a frase mais conhecida do solilóquio de "Hamlet" parece o melhor dos prólogos a esta paródia da acção.

E não é verdade que o espírito e a invenção desses actores, a urgência do seu guião patriótico só se tornam absurdos pelo medo?

 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

O INIMIGO INTERNO

 

"Traffic" (2000), de Steven Soderbergh, deixa-nos a pensar na selva que já atinge a nossa porta, mas que alguns podem continuar a ignorar, com alguma sorte.

Xavier consegue, com o dinheiro da sua virtuosa traição, realizar o sonho de oferecer aos miúdos do bairro um rinque de baseball. Mas o chefe do programa anti-droga (nunca tinha visto um Michael Douglas tão humano e vulnerável) revela-se incapaz de continuar o seu discurso optimista e dedica-se a salvar o que resta da sua família.

A pergunta incómoda que ele faz é: como é que é possível vencer o inimigo, se o inimigo está em nossa casa, e é um filho ou uma filha?

É nisso que a abordagem do filme é nova. Não são apenas a produção e o negócio ilícito que fazem o consumidor.

Se 68 milhões de crianças americanas são um alvo para os traficantes é porque a família já não é o que era e desapareceu da primeira linha de defesa.

A decadência prepara assim o triunfo dos bárbaros.

A democracia admirada por Tocqueville e a família puritana podem ler o seu futuro no da República romana.

 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

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Santa Sofia

 

RITUAIS

http://artephotographica.blogspot.pt/2013/01/jose-medeiros.html

 

"É que o ritual ignora as subjectividades e só conhece a exactidão da 'praxis' (o exegeta tem de admitir que aquilo que encontra para lá desse limite é precisamente o essencial do sacrifício; G. von Rad)"

Paul Ricoeur in "A Simbólica do Mal"

O ritual seria então a forma que substitui o trágico, e que permite, ao mesmo tempo, a unidade do diverso incomparável. O tempo subjectivo acerta-se pelo tempo comum do ritual.

A origem pode ser religiosa, mas a política e a vida social não deixaram de adaptar um recurso tão essencial à preservação do espírito religioso, partidário ou familiar. O ritual tem algumas das funções do hábito que sabemos como é relevante para a eficácia 'produtiva'.

A contrapartida dessas vantagens é a descolagem desse espírito que devia preservar, para se tornar num fim em si mesmo. É o que significa dizer a propósito de algumas actividades ou organizações que a vida nelas se tornou "num ritual".

É claro que o céptico tem tendência a só ter olhos para a "praxis". E certos rituais parecem demasiado estranhos às mentes superficiais, mesmo quando sabem que a psiquiatria lida frequentemente com o fenómeno.

 


 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

GIGANTOMAQUIA

Gigantomaquia do altar de Zeus em Pérgamo

"(...) ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de actividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico."

"A Ideologia Alemã" (Karl Marx e Friedrich Engels)

 

De algum modo, a implausibilidade desta profecia, graças ao desenvolvimento da tecnologia (que não pela acção de qualquer vanguarda política), parece hoje menos implausível, haja indivíduos que gostem de saltitar de ocupação em ocupação, como Hynkel no "Grande Ditador" de Chaplin, aflorando as teclas de um piano num momento, posando para o busto em mármore noutro e acabando por tratar o globo como uma bola de futebol.

É evidente, de qualquer modo, que aqui já não estamos no reino da necessidade, como dizia a antiga filosofia, mas no da "Lógica" e da aplicação do princípio "de cada um de acordo com as suas capacidades, a cada um conforme as suas necessidades". Com uma pequena correcção: as 'capacidades' de cada um só resultarão em proveito dos que necessitam se obedecerem a um plano, ou teríamos aqui um avatar da célebre "Mão Invisível".

Mas isto é ainda crítica da utopia (porque não assumida como utópica). Se considerarmos o que sobrou da herança histórica, ficamos reduzidos à eterna questão da desigualdade social.

Particularmente, o conceito de 'classe dominante' que em certas sociedades do passado e do presente é, de facto, 'operável' e permite determinar um alvo objectivo, tornou-se nas sociedades mais complexas, politicamente reguladas pelo sistema de partidos (em que a utopia se converteu no melhor garante da estabilidade), um componente essencial duma nova 'gigantomaquia'.

Hoje, quando o chamado capitalismo financeiro trata a economia mundial como ficha de casino, onde as invenções 'high-tech' mudam o mapa económico e cultural fora de qualquer racionalidade, de tal modo que são hoje a verdadeira Revolução (sofrida nos empregos e na estabilidade, e ao mesmo tempo desejada pela nova 'classe média' e pela juventude que a ela pode ter acesso), hoje, dizia, a 'classe dominante' no espírito passadista, também dito 'refractário à mudança', continua a ser a mesma e a dominar da mesma forma que no século XIX.

Por definição, domina absolutamente, pela violência como os titãs da mitologia, mas controlando o seu destino e o dos seus dominados com a lucidez dum gabinete de peritos.

Saber que a Goldman Sachs é um gigante com pés de barro e comete erros inconcebíveis é melhor conforto.


 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Sem título

Bósforo

 

O QUE PENSAMOS

Oscar Wilde

 

"'Aprende-se o que se pensa, escrevendo.' Retenhamos esta fórmula; no fundo, ela significa que um pensamento que não se pode formular não existe."

André Sernin in "Alain"

Quer isto dizer que não chegam a ser pensamentos as ideias que nos ocorrem numa conversa? Ou as que surgem no nosso monólogo interior, durante uma leitura, ou numa simples divagação?

É a forma fixada na escrita que nos permite julgar e desenvolver a ideia que, de outra maneira, não passa do estado larvar ou ilusório. Oscar Wilde, gostava de dizer que o melhor do seu espírito o aplicava na conversação mundana, a sua obra escrita tendo de se amanhar com o resto. Para além de não podermos testemunhar a invenção da sua palavra, o que significa que para nós já não existe, não sabemos, nem nunca saberemos, o que o nosso 'dandy' nos teria legado, se não se tivesse divertido tanto nos salões.

Hoje, que podemos registar quase tudo, talvez que esse Oscar Wilde fosse acessível à posteridade. Mas faltar-lhe-ia algo do acto de escrita que, à falta de melhor, temos de chamar ético. A intenção de ser lida e de merecer ser lida.

Mesmo se escrevêssemos para saber o que pensamos, sem outra preocupação, conforme a ideia de Alain, já estaríamos fora da cápsula individual e a participar na comunidade do espírito. Quem 'escreve para a gaveta' sabe que a escrita é tudo menos um acto solipsista.


 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

O MOSCARDO

 

"Oïstros, o moscardo que atormenta os bois, é o poder mais evasivo, e no entanto omnipresente, entre aqueles que governaram os Gregos."

"Le nozze di Cadmo e Armonia" (Roberto Calasso)

Io, a ninfa amada por Zeus que este transformou numa vaca para a esconder da esposa ciumenta, correu mundo perseguida por um moscardo enviado por Hera. O frenezim associado à palavra 'oïstros' lembra o 'ferrão' do desejo a que o pai dos deuses era propenso. Punição homeopática, podia dizer-se, não do sedutor mas da seduzida (e poderia a pobre ninfa resistir a Zeus?). Mas, numa lógica muito enviesada, que é a do poder, é a ela que Hera castiga.

Sabemos como "uma mosca sem valor" tem o condão de nos irritar até "perdermos as estribeiras". É esse o "poder evasivo" da minúscula criatura. Io não pode ter sossego. Não pode pensar, nem pode dormir. Não desdenhemos de um tal poder....

Mas o autor diz que também esse poder governou os Gregos, o que é inteiramente justo. Basta afastar algumas das nossas mais queridas ilusões, para percebermos que somos 'governados' muito para além da política. Somos governados pelo sono, e de que maneira! Obedecemos sem discutir às mais humildes necessidades do corpo. A partir de uma certa altura na vida, o 'moscardo' não nos larga mais.

Ciro, o rei dos Persas, dizia que com a idade tinha perdido um 'senhor' implacável que não o deixava ser livre. Referia-se ao desejo sexual.

Abdicando de tudo parece que é a melhor maneira de não sermos 'governados'.