sexta-feira, 29 de setembro de 2017

(José Ames)

CONIVÊNCIA


Martin Heidegger (1889/1976)



"É isso que confere a sua força sugestiva ao desejo de recomeçar com ela (a metafísica) desde o princípio, de questionar radicalmente, de esgaravatar a aparência com a qual a cultura fracassada recobre a sua culpabilidade e a verdade. Mas desde que esta pretensa demolição consentiu em pôr-se à procura de uma camada profunda, intacta, é que ela verdadeiramente se ligou à cultura que ela se vangloria de demolir. Enquanto os fascistas tonitruavam contra o bolchevismo cultural destruidor, Heidegger tornava a destruição respeitável como dispositivo para penetrar o ser. A crítica da cultura e a barbárie não vão sem uma certa conivência."

"Dialectique négative" (Theodor Adorno)

Talvez essa afinidade secreta entre o que parece mais elevado (a crítica em nome do Ser ou da Verdade) e o mais vil, a barbárie que, às vezes, é só o que parece radicalmente diferente, como o eram todos os não-Gregos, explique a vertigem de Heidegger, a sua estranha fascinação por um poder que justamente pretendia criar o novo, a partir de supostas raízes.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017


Varsóvia 

A IMPORTÂNCIA DO CABELO



"O pobre homem, pesado e mole, não conseguia, nesta noite suprema da monarquia, estar de pé até ao fim; dormira uma hora, e acabara de levantar-se. Via-se pelo penteado, liso e desfrisado de um lado. Foi então que se pôde avaliar o perigo dessas modas pérfidas na Revolução. Quem pode estar certo, em tais crises, de ter à mão o valete cabeleireiro?...Assim estava ele, e assim os ineptos o deixaram descer, mostrando-o e passeando-o. Para cúmulo do mau augúrio, estava de roxo, cor que é o luto dos reis; era, aqui, o luto da realeza."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)

Nas horas que precedem o 10 de Agosto de 1792 que iniciou o compasso trágico da Revolução e ditou a sorte do rei, este não estava à altura dos acontecimentos.

Mais uma vez, a importância do detalhe, do minúsculo na grande história. É ainda a tese de Pascal e do "nariz de Cleópatra". Este desfrisado da cabeleira de Luís XVI, a balofa figura que ganhava coragem só na religião. Michelet diz, noutro passo: "A conversa tomava uma feição desagradável; toda a gente estava emocionada, excepto talvez o rei, que acabava de deixar o seu confessor, tendo posto a consciência em ordem e não se preocupando muito com o que poderia acontecer."

A fatalidade está na cabeça dos homens apenas. A importância de cada gesto, que nos parece de antemão poder ser delimitada, atribuindo-se a este a força e àquele a pusilanimidade, só seria definitiva se os homens nunca se excedessem e se não fossem, de bom ou de mau grado, arrastados pela onda que cavalgam ou que os submerge.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

(José Ames)

A ACTUALIDADE DOS ESPECTROS

Karl Marx (1818/1883)


"Os homens fazem a sua própria história (ihre eigene Geschichte), mas não a fazem espontaneamente (aus freien Stücken), nem nas condições escolhidas por eles só, mas antes nas condições que encontram, aquelas que lhes foram dadas e transmitidas (überlieferten Umständen). A tradição de todas as gerações mortas (aller toten Geschlechter) pesa (lastet) com uma carga muito pesada sobre o cérebro dos vivos [Marx diz:"lastet wie ein Alp", quer dizer "pesa à maneira de um fantasma", um dos seres espectrais que dão pesadelos (...)]. E mesmo quando parecem ocupados a se transformarem, a eles e às coisas, a criar alguma coisa de completamente novo (noch nicht Dagewesenes zu schaffen), é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que eles evocam [conjuram, precisamente, beschwören] temerosamente os espíritos do passado ( beschwören sie ängstlich die Geister der Vergangenheit zu ihrem Dienste herauf ), que eles lhes pedem emprestados (entlehnen) os seus nomes, as suas palavras de ordem (Schlachtparole), os seus trajes, para aparecer na nova cena da história sob esse disfarce respeitável e com a linguagem emprestada (mit dieser erborgten Sprache),"

"Le dix-huit Brumaire de Louis Bonaparte" (Karl Marx, comentado por Jacques Derrida em "Spectres de Marx")

Este dístico, apesar da ruína que atingiu o resto do edifício, tem ainda hoje um ar lavado e actual. E, reflectindo a verdade de uma continuidade entre o passado e o presente (não só sob o aspecto material, mas da própria subjectividade) parece infirmar o próprio conceito de Revolução, o qual, a partir da Revolução Francesa, ganhou o sentido de uma tabula rasa sobre o passado. Mas é o próprio Marx, noutro passo, que reivindica para as revoluções do futuro (depois do século XIX) a libertação dos "espíritos do passado" e do recurso a uma linguagem emprestada, consequentemente, de resto, com a nova fé no materialismo histórico.

Depois havia aquela curiosa necessidade de uma máscara respeitável, como se vigorasse a velha tradição platónica de, em política, não se poder prescindir dos mitos, nem transpor o fosso entre a elite dos que sabem para onde vão e a massa anónima que deve ser "levada", como um animal susceptível de movimentos bruscos e perigosos.

Claro que Marx não se refere naquele trecho a uma hipocrisia implícita dos agentes, mas à sua falta de liberdade. Se tanto a vanguarda quanto a massa pudessem assumir plenamente o que são, com nomes que nunca se viram e um discurso nunca antes ouvido, é provável que ninguém se entendesse.

E talvez que a necessidade de todos os actores falarem a mesma linguagem seja o princípio do descaminho.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Wroclaw 

A DIFICULDADE DO CONCRETO




"Apenas uma teoria sociológica suficientemente complexa 
( e isso significa sempre: abstracta ) permite seguir a pista das relações entre os desenvolvimentos estruturais e semânticos. Para toda a questão relativamente concreta, a teoria precisa de desenvolver uma complexidade adequada. Ora, o caminho que leva ao concreto passa sempre pela abstracção, e mesmo por um grau de abstracção muito inabitual, senão estranho, para as ciências sociais contemporâneas."

"Politique et complexité" (Niklas Luhmann)

O amor da simplicidade quer dizer alguma coisa. Não é por acaso que, no quotidiano, prezamos aquelas pessoas que não gostam de "complicar" e que estão só em si mesmas e não nos tamancos de ninguém, ou a armar a profundidade, como aquela personagem de Eça que, não se sabendo o que pensava, por estar sempre calada, prometia as elucubrações de um vasto intelecto, só pela dimensão do crânio.

A simplicidade pessoal é avessa a toda a teoria, sobretudo, a que possamos ter sobre nós próprios. E, na prática, pouco nos ajudam as teorias sobre os outros, sendo quase sempre mais fiável o instinto ou a intuição.

Não é assim com o mundo dos objectos ou a sociedade como um mundo ou um sistema. Aí, só as teorias nos permitem compreender, e sem isso só podemos "navegar".

Como as teorias com algum sucesso passam rapidamente a preconceitos e se tornam uma espécie de segundo mundo (como diria Popper), só aquelas suficientemente estranhas nos acordam do nosso "sono dogmático".

Mas, voltando ao princípio, poucas pessoas estarão dispostas a conceder que o valor da simplicidade não pode querer dizer a mesma coisa fora da moral.

Em ciência, a simplicidade é a extrema elegância, resultado de uma complexa depuração.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

(José Ames)

A VENDA DA JUSTIÇA

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"(...) do mesmo modo a balança na mão de Zeus, símbolo da Justiça em todo o mundo patriarcal, recorda simplesmente a natureza. A passagem do caos à civilização, em que as condições naturais são mediatizadas pela consciência humana e não exercem por isso directamente o seu poder, em nada modificou o princípio da equivalência. Mais ainda, os homens expiaram justamente esta passagem venerando aquilo a que, como todas as outras criaturas, estavam sujeitos. Outrora, os fetiches eram submetidos à lei da equivalência. A partir de agora é a equivalência que se torna um fetiche. A venda nos olhos da Justiça não significa apenas que não se deve intervir na justiça, mas que a justiça não nasce da liberdade."

"La dialectique de la Raison" (Max Horkheimer e Theodor Adorno)

Na imagem tradicional da Justiça, esta não deve olhar a quê, nem a quem (tudo o que seria um comportamento estúpido, se tivéssemos que tomar uma decisão de que resultassem consequências para nós ou para os outros). Mas essa imagem é de outra maneira que está certa: a balança traduz o ideal da objectividade, em que os crimes e as injustiças pudessem encontrar uma equivalência automática nas penas.

Este ideal só é razoável porque o juiz não pode avaliar o caso humano na sua verdade.

Por isso, é, realmente, como se a Justiça fosse cega por necessidade.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Wroclaw 

COMÉRCIO LIVRE



"Atribui-se a Harry Truman o pedido de um economista maneta, que fosse incapaz de dar um conselho e dizer a seguir: "por outro lado" ("on the other hand").

"The undercover economist" (Tim Harford)

O autor deste ensaio estimulante começa o seu capítulo por aquela anedota para, concordando que nem sempre os economistas estão de acordo entre eles, acrescentar que raros são os que não apoiam, com entusiasmo, o comércio livre.

"Por exemplo, quando o Japão foi forçado pelos EUA a abrir os seus portos ao comércio nos anos 1850, depois de décadas de isolamento, começou a exportar seda e chá para um ávido mercado internacional, em troca de tecidos de lã e algodão que eram baratos internacionalmente mas caros no Japão. Como resultado, o seu rendimento nacional aumentou em dois terços."

Mas há sempre alguma razão em se falar nos malefícios do comércio livre, se adoptarmos o ponto de vista de um grupo especial.

"(...) contrariamente à crença popular, não é simplesmente possível que o comércio destrua todos os nossos postos de trabalho e que nós possamos importar tudo do estrangeiro e exportar nada."

Assim, os grupos prejudicados pelas importações estão, de facto, em concorrência com aqueles que são favorecidos pelas exportações. "Uma política de não às importações é também uma política de não às exportações."

Pode defender-se que o consumidor e o país como um todo saiam beneficiados com o fim dos entraves à liberdade do comércio, sem esquecer que há aqui, ainda assim, uma escolha que não pertence só ao domínio económico, embora a questão se confunda, geralmente, com a do interesse dos vários grupos de pressão, empresariais, sindicais ou burocráticos.

Todavia, a resposta dada, pela adesão e o comportamento de quase todos aos valores do "desenvolvimento" não deixa lugar para dúvidas.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

(José Ames)

O GRÃO DA PELE



"Mulher empoando o pescoço" (Utamaro)


"Eu, dizia-me isso a mim mesmo, porque acreditava que há um conhecimento pelos lábios; dizia-me que ia conhecer o gosto dessa rosa carnal, porque não tinha pensado que ao homem, criatura evidentemente menos rudimentar que o ouriço do mar ou até a baleia, falta no entanto um certo número de órgãos essenciais, e nomeadamente algum que sirva para o beijo. Esse órgão ausente, ele substituiu-o pelos lábios, e através disso talvez chegue a um resultado um pouco mais satisfatório do que se estivesse reduzido a acariciar a bem-amada com um chifre. Mas os lábios, feitos para levar ao palato o sabor daquilo que os tenta têm de contentar-se, sem compreender o seu erro e sem confessarem a sua decepção, com vaguearem à superfície e chocar com a barreira da face impenetrável e desejada."

"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Pouca gente subscreveria, suponho, esta teoria do beijo, ainda que noutras culturas ele não tenha a importância que lhe damos.

Proust começa por uma metáfora gastronómica, mais próxima da verdade do desejo, e acaba na do microscópio. Ele diz: "nessa zona desolada, onde não podem encontrar o seu alimento, eles (os lábios) estão sós, o olhar e a seguir o odor abandonaram-nos há muito tempo. Primeiro, à medida que a minha boca começou a aproximar-se das faces que os meus olhares lhe tinham proposto beijar, estes, deslocando-se viram novas faces; o pescoço, visto de perto e como que à lupa, mostrou, nos seus largos grãos, uma robustez que modificou o carácter da figura."

O tacto e o gosto, transferindo-se ambos para o olhar, encontram o objecto não comestível, verdadeiro índice da ausência do desejo.

Mas com a mudança final da figura, e conhecendo as inclinações do romancista, perguntamo-nos se não é precisamente então que o desejo pode ser conjurado.

terça-feira, 19 de setembro de 2017


Alcobaça 

A GEOMETRIA DA IGUALDADE

John Stuart Mill (1806/1873)


"O rígido princípio da igualdade pode ser imposto pelo acaso ou pela necessidade exterior; mas os homens capazes de pesar cada um, como numa balança, e atribuir, conforme o seu gosto e a sua apreciação, a uns mais, a outros menos, tais homens teriam quer de descender de super-homens quer de se apoiar num terror sobrenatural."

"Principles of Political Economy" (J.S.Mill)

Nem os pensamentos mais razoáveis como este estão ao abrigo de interpretações contraditórias, conforme as paixões puxam para um lado ou para o outro. Mill refere-se a uma igualdade rígida ( que a natureza e a essência da política condenam), logo, pressupondo que existe outra.

Mas a chamada igualdade de oportunidades ou dos direitos cívicos é uma igualdade mitigada e as mais das vezes retórica. Será possível, "sem o terror sobrenatural", desentortar o que "nasce das condições objectivas que os homens herdam dos que os antecederam e nas quais fazem a história que lhes é possível e não a que lhes seria determinada pela sua pura vontade"?

A tradição popular resolveu esse dilema recorrendo à ideia da má e da boa sorte. Uns nascem num berço de oiro e outros numa enxovia. Hoje sabemos, com a história do século XX, que foi, politicamente, um dos séculos mais experimentais, que as diferenças de classe sociais são menos relevantes do que as diferenças de poder e que nunca esteve à vista uma qualquer expressão derradeira da divisão em classes.

É verdade que o princípio de Mill, sendo justo, pode servir de álibi para os que defendem o status quo que os favorece. Mas esse é o destino de todas as teorias: a de servirem como meio de acção.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

(José Ames)

A ARTE PELA ARTE

Gruta de Lascaux


"Mas em toda esta polémica, uma coisa salta aos olhos: não se fez mais do que perguntar o que um quadro representa e do que interpretar o representado. No entanto, o que é decisivo numa obra de arte, é saber por que é que ela representa justamente isso e não qualquer outra coisa. Mas para responder a essa questão, é preciso examinar a estratégia do artista, não em relação à realidade concebida de tal ou qual maneira, mas em relação aos outros quadros com os quais o artista se identifica ou contra os quais toma as suas distâncias - o representado só serve então como meio para essa estratégia."

"Du Nouveau" (Boris Groys)

Como consequência desta teoria, no princípio da constituição do "arquivo" de obras de arte, o artista podia facilmente iludir-se quanto à representação da realidade. Imitar o mundo era o gesto mais próximo da criação, e a pintura estava, de uma maneira ou de outra, ao serviço da religião.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Bragança 

UM DRAMA CRISTÃO





"Ontem chegou-me o Parsifal enviado por Wagner. Impressão da primeira leitura: mais Liszt do que Wagner; espírito da contra-reforma; para mim que estou habituado ao grego e àquilo que possui um valor humano geral, tudo isso é por de mais limitado no tempo pelas barreiras cristãs: apenas psicologia fantástica, nada de carne e sangue em demasia; e depois não gosto de mulheres histéricas; muitas coisas que o olho do leitor pode suportar tornar-se-iam insuportáveis em cena, imaginai os nossos leitores orando, tremendo, inclinando para trás os pescoços extáticos!"

Friedrich Nietzsche ( carta de 1872 a Hugo van Senger)

Os caminhos de Nietzsche e de Wagner separam-se. À medida que o compositor, que encontrou um patrono em Luís II, trabalha para o seu "mausoléu", a admiração do filósofo vai cedendo à decepção e à crítica.

"É preciso que o homem se dedique a uma tarefa que o ultrapasse: é a lei da tragédia! É preciso que ele desaprenda a terrível angústia que lhe causam a morte e o tempo, porque no mais breve instante, na partícula mais ínfima da sua vida pode sobrevir um acontecimento sagrado que de longe compensará todas as lutas e todas as misérias."

Um drama cristão era todo o contrário disto. A arte de Wagner celebrava-se a si própria, acima de todos os fins, no primado do estilo. Por que não um drama cristão?

Ou devemos considerar o Wozzeck um drama demasiado limitado no tempo e no espaço?

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

(José Ames)

A FORÇA DA DÚVIDA



"Mesmo, reflectindo, se queremos descobrir em que sentido a ingénua representação já não engana o sábio, vemos que é a mesma ideia que faz que o seu cálculo e as suas medidas não o enganem mais; é a ideia de que não há nenhuma ideia suficiente. Aqui, no pensamento em movimento, ou melhor, em acto, aparece a dúvida, que não é de modo nenhum fraqueza, mas força, e antes afirmação redobrada; porque o espírito tem alcance bastante para ultrapassar os seus objectos, quaisquer que eles sejam, e julgá-los. Assim, a dúvida não é essa imaginação flutuante que Spinoza descreve, mas é o mais alto do juízo, pelo qual, poder-se-ia dizer, a certeza se acaba e coroa."

"Souvenirs concernant Jules Lagneau" (Alain)

E mais adiante: "O que é o homem que crê formar uma ideia verdadeira? Não é esse mesmo que se engana? Realmente o erro em toda a matéria é de reflexão, e consiste nisto: que se submete o juízo à ideia."

É por isso que um artista perfeccionista como a Callas, conforme ela disse numa entrevista, quando nos assombra pelo seu desempenho e arranca do público os mais entusiásticos aplausos, mesmo nesse momento de glória se debate com uma dúvida íntima e permanente.

E aquele santo homem cuja bondade decorresse da ideia entronizada no seu espírito sobre o que é o bem, de uma forma automática, como a consequência de uma premissa, teria, de facto, abdicado de julgar a realidade, o único e irrepetível de cada caso. Porque é a dúvida, seguida pelo risco de uma decisão, que o poderá manter na verdade.

Se alguém como Madre Teresa de Calcutá é suficientemente forte para confessar que a sua religião nunca foi uma questão de lógica, mas de fé vivida e de dúvida assediante, com isso põe talvez em causa um mito, mas contribui para a liberdade e o esclarecimento dos espíritos.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Cuenca 

O GRANDE SALTO

Andy Warhol's view of Mao Tse Tung


"Mao redesenhou pessoalmente as técnicas da agricultura chinesa, especificando a plantação mais cerrada e a sementeira mais profunda para aumentar a produção. O arroz plantado tão junto não podia crescer, mas os funcionários do partido, ansiosos por agradar a Mao, encenaram exposições do sucesso agrícola e industrial. Quando Mao viajava de comboio para admirar os frutos da sua política, os funcionários locais construíram fornos em faixas ao longo da linha e trouxeram arroz de uma distância de várias milhas, para replantar com a densidade oficialmente especificada, nos campos adjacentes. E nem esta charada pôde ser mantida sem o uso de ventoinhas eléctricas, que serviam para fazer circular o ar e impedir o arroz de apodrecer."

"The Undercover Economist" (Tim Harford)

O desastre foi muito agravado pela insistência oficial nessa política errada. O autor cita o caso do ministro da defesa que ousou levantar o problema da fome e por isso foi punido e obrigado a fazer a sua autocrítica.

"Estimativas do dobre de finados resultante da fome situa-se entre os 10 e os 60 milhões de pessoas (...)" De qualquer modo, o único responsável que oficialmente se conseguiu acusar foi o mau tempo...A história repete-se, sem que os homens pareçam aprender com a lição dispensada.

Foi o ministro czarista Potemkine talvez o primeiro a inventar um espectáculo político deste género. Para agradar a Catarina II, dispôs ao longo da estrada que aquela haveria de percorrer, algumas aldeias-modelo, pretenso resultado da política iluminada da cabeça do Estado.

Por estes exemplos se vê que o maior perigo (maior até do que o das catástrofes naturais que não sofrem de teimosia nem de vaidade) é o da concentração do poder. Porque mesmo se, por um acesso inaudito de modéstia, pretendesse corrigir-se, rodeia-o um coro de aduladores (com interesses muito reais na situação) que transforma esse erro no maior dos 'sucessos'.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

(José Ames)

sexta-feira, 8 de setembro de 2017


Varsóvia (aqui está o coração de Chopin)

O PRÍNCIPE VASSILY



A personagem do príncipe Vassily da “Guerra e Paz” é um delicioso paradoxo. Um hipócrita que consegue ser sincero por um oportunismo genial. Porque ele não faz cálculos nunca, mas é exclusivamente o interesse próprio que lhe dita no instante a conduta a seguir. É, portanto, um homem que se conhece e que conhece o mundo dos salões de Moscovo e de S. Petersburgo.

A cortesia parece explicar este método admirável. A acção reflectida é boa para as coisas complicadas que exigem um mínimo de atenção e não se modificam com o aspecto do nosso rosto. Mas em sociedade não é assim. Quando o pensamento se vê, a acção é feia, e, como diria Alain, industrial. Porque o que é visível é a participação superficial e o esforço de aplicação da ideia. Ora isso ofende o semelhante que justamente espera não ser tratado como uma coisa. Falar a um homem só porque ele nos pode ser útil, é desprezá-lo no fundo. E se esse motivo é consciente é impossível que não afecte as relações. Toda a indelicadeza está em não se ser capaz de mostrar os signos do respeito e da consideração. É pagar em moeda humana esta atenção à dignidade do outro. Se, para além disso, é possível descobrir o coração sem a nuvem dum preconceito e dum pensamento de través, eis o interlocutor reconhecido em todos os seus direitos e em paz.

O humor pacífico, significado pelo semblante e pelos gestos, mas mais ainda por um tom cordial da voz, predispõe à amizade. Contudo, a gente dos salões é frívola e não pode cultivar nada de duradouro. O príncipe, movido sempre por um instinto seguro, trai o coração que ganha no momento. E no dia do Juízo, esta mesquinhez amável seria condenada, como é por todos quando mostra a sua verdadeira face. Mas é um pecado sem pensamento quase, e aí está o paradoxo.

Havia que julgar a vida e as obras deste cortesão, e isso é toda a injustiça. O que falta aqui é a vontade do bem e o desinteresse pelas pequenas coisas. Vassily é um libertino por não deixar escapar uma única oportunidade de prazer. Quando seria preciso recusar o vício, ele procede como se houvesse uma ordem dos deuses para tirar partido da situação que, primeiro, foi involuntária.

É claro, porém, que o que se trata é de recusar um modo de vida tão fútil e insignificante. Não se pode reclamar a inocência dum homem que sistematicamente colhe vantagens pessoais num mundo que conhece de olhos fechados. E é isso, a sua habilidade permite-lhe representar sinceramente, o que vale o mesmo que ser sincero. Mas tudo são ratoeiras para o incauto e inexperiente Pierre. E quanto mais fala o coração do príncipe, mais engana. Contudo, não se deve chamar a isto perfídia ou hipocrisia. A vaidade do seu meio aristocrático não endurece, e a cortesia é uma arte aqui necessária e requintada. Mas qual é então o crime do príncipe Vassily?

Ele vive bem consigo e com os outros da sua classe. É um personagem amável, mesmo quando fecha a bolsa ou discute uma herança. Mas este homem é como se não existisse. de tal modo ele encarna as virtudes e os defeitos do salão russo. É essa a sua religião e é isso que o condena.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

(José Ames)

INTERDITOS E TABUS



"A impressão resultante de que alguma coisa de terrível está para acontecer porque se infringiram as regras de conduta é apenas uma forma do pânico que se produz quando nos damos conta que entramos num mundo desconhecido. A má consciência não é mais do que o medo dos perigos aos quais ficamos expostos deixando o caminho conhecido e entrando nesse mundo desconhecido. O mundo é suficientemente previsível enquanto nos ativermos aos procedimentos estabelecidos, mas torna-se terrífico quando deles nos desviamos."

"Essais de philosophie, de science politique et d'économie" (Friedrich Hayek)

"As regras normativas tanto quanto são interdições, como a maior parte delas o devia ser antes de serem interpretadas como ordens de uma terceira vontade, as regras do tipo "não matarás" poderiam de facto não ser muito diferentes das regras que nos informam sobre o que é." (ibidem)

A parte que no nosso conhecimento do mundo é representada por tais regras negativas seria impressionante se pudéssemos olhar esse mesmo mundo de uma forma desinibida.

E seria também a melhor prova da influência dos outros, dos vivos, mas sobretudo dos mortos, naquilo que nos parece mais espontâneo no nosso pensamento.

Por outro lado, o que Hayek diz sobre a má consciência como uma forma do medo é confirmado pela situação da criança que cometeu uma falta e que com isso sabe que desiludiu os pais. Também aqui o medo de perder o seu afecto tem muitas semelhanças com o medo do desconhecido.

terça-feira, 5 de setembro de 2017


Madrid 

SEM TESTAMENTO



"O Silêncio" (1963-Ingmar Bergman)



"Notre héritage n'est précédé d'aucun testament."
René Char

No filme de Ingmar Bergman, "O Silêncio", Anna (Gunnel Lindblom), a irmã mais nova, lamenta o tempo em que, com o pai ainda vivo e obedecendo-lhe, sabiam o que fazer.

Depois, Esther (Ingrid Thulin), a mais velha, tentou substituir-se à figura paterna, recorrendo a uma superioridade intelectual que confundiu, por um tempo, a ingenuidade de Anna. A necessidade que proclamava de encontrar um sentido para cada coisa dava-lhe a ela, a tradutora que falhava nos dois sentidos da tradução [tradere, de repor uma herança e transmittere, de repo-la de tal modo que o herdeiro a faça sua, a conserve e lhe dê vida (Anne Dalsuet)], uma supremacia que a mais nova não deixou de sentir como um poder dirigido contra si.

A verdade é que, desde a morte do pai, ambas estão entregues a si próprias, num caminho de trevas. É, exemplarmente, a situação descrita pelo poeta de uma herança sem testamento.

Sem dúvida, porque o passado não foi salvo (no sentido em que se deixou que fosse contaminado pela morte, e no de não ter sido "gravado", como se diz em informática), e o espírito ancestral deixou de ser uma presença viva.

É este "seco, fero e estéril" positivismo que o último gesto de Esther, abandonada no hotel, parece desmentir, deixando à criança aquele papel com uma palavra: alma.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

(José Ames)

O LEOPARDO



"Il Gattopardo" (1963-Luchino Visconti)


Há uma ideia espantosa em “O Leopardo”, e é que o palácio salve a miséria. A espécie em extinção que se demora sobre os últimos pedaços de carne, naquele baile de fim do mundo, tem consciência da sua própria morte, mas não conhece a má consciência. Isso é para os chacais e os carneiros que virão depois.

O baile não é um divertimento, apesar de ter sido preparado pela rápida imagem do trabalho no campo, é uma reprogramação da decadência. O tempo desse rendez-vous aristocrático e o discurso de Pallavicini, o general que liquidou o Garibaldi revolucionário e a ilusão duma Itália sem senhores, mostrando a mais completa falta de princípios, são a demonstração de que a espécie merece morrer. Essa complacência perante o destino desgosta o príncipe siciliano.

No espectáculo da vaidade, a juventude está significativamente ausente. Tancredo, o belo sobrinho, é despertado para as tarefas que realmente são as da sua classe: restaurar os signos do passado. É preciso avivar o retábulo da igreja. E o jovem oficial garibaldino não é mais do que uma camisa cor de salmão arrumada. Mas não há que ver aqui oportunismo. O tio compreende que o descendente dos Falconeri se empenhe na revolução do seu país, para que tudo fique na mesma. O cálculo político quando se é jovem e se arrisca a vida nunca é mesquinho. A classe média vai alcançar o casamento, pelo sangue e pela guerra.

Quando Tancredo volta a casa de seu tio, com a farda azul do exército regular e fazendo admirar o anel nupcial, que tão bem resume a nova aliança social, e silenciosamente, sem maneiras, com o cabelo molhado da chuva a bela Angélica corre ao seu encontro, como dizer melhor a paixão política de dois estilos?

O príncipe de Salinas não pode aceitar o cargo que lhe oferecem no Senado. Enquanto que o emissário do novo governo tenta fazer da miséria do povo siciliano um argumento para a necessidade das reformas e acordar no orgulhoso e lúcido aristocrata um sentimento de responsabilidade, Salinas bem vê que a sua classe não pode pensar assim, sob pena de perder a alma. A Sicília foi demasiado tempo uma colónia, não tem já forças para ser outra coisa. O príncipe desposa a ordem milenária, é a outra face da miséria. O lixo à porta do palácio está na natureza das coisas. E diz mais: que nada mudará, a não ser para pior, mas que os que lhe sucederem no seu lugar continuarão ainda a considerar-se o sal da terra. A culpa não cabe neste pensamento.

Unidos num mesmo destino, o senhor e o camponês existem por força do solo pobre e da servidão política ( a bota é para calçar ). Mas a ideia forte é a do corpo e o espírito. O luxo é um “desperdício” religioso. A riqueza e o poder de um são como as paredes do templo que negam a fatalidade económica e o quotidiano peso da existência. É como se a contemplação dos sacerdotes da riqueza impedisse de cair pela lei mecânica a acabrunhada alma do camponês entre as pedras do chão.

O grande felino concebe pois o orgulho e o sentimento da força cruel, mas não insaciável, segura e não duvidosa de si mesma e para os outros despótica. Não se pode deixar de reconhecer grandeza nesta vontade de permanecer igual a si próprio. E mais, se equivale ao desejo da morte como se vê no encontro efémero com a estrela, antes de se perder na viela furtiva. A sensualidade é a última razão.