sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O PRÍNCIPE VASSILY



A personagem do príncipe Vassily da “Guerra e Paz” é um delicioso paradoxo. Um hipócrita que consegue ser sincero por um oportunismo genial. Porque ele não faz cálculos nunca, mas é exclusivamente o interesse próprio que lhe dita no instante a conduta a seguir. É, portanto, um homem que se conhece e que conhece o mundo dos salões de Moscovo e de S. Petersburgo.

A cortesia parece explicar este método admirável. A acção reflectida é boa para as coisas complicadas que exigem um mínimo de atenção e não se modificam com o aspecto do nosso rosto. Mas em sociedade não é assim. Quando o pensamento se vê, a acção é feia, e, como diria Alain, industrial. Porque o que é visível é a participação superficial e o esforço de aplicação da ideia. Ora isso ofende o semelhante que justamente espera não ser tratado como uma coisa. Falar a um homem só porque ele nos pode ser útil, é desprezá-lo no fundo. E se esse motivo é consciente é impossível que não afecte as relações. Toda a indelicadeza está em não se ser capaz de mostrar os signos do respeito e da consideração. É pagar em moeda humana esta atenção à dignidade do outro. Se, para além disso, é possível descobrir o coração sem a nuvem dum preconceito e dum pensamento de través, eis o interlocutor reconhecido em todos os seus direitos e em paz.

O humor pacífico, significado pelo semblante e pelos gestos, mas mais ainda por um tom cordial da voz, predispõe à amizade. Contudo, a gente dos salões é frívola e não pode cultivar nada de duradouro. O príncipe, movido sempre por um instinto seguro, trai o coração que ganha no momento. E no dia do Juízo, esta mesquinhez amável seria condenada, como é por todos quando mostra a sua verdadeira face. Mas é um pecado sem pensamento quase, e aí está o paradoxo.

Havia que julgar a vida e as obras deste cortesão, e isso é toda a injustiça. O que falta aqui é a vontade do bem e o desinteresse pelas pequenas coisas. Vassily é um libertino por não deixar escapar uma única oportunidade de prazer. Quando seria preciso recusar o vício, ele procede como se houvesse uma ordem dos deuses para tirar partido da situação que, primeiro, foi involuntária.

É claro, porém, que o que se trata é de recusar um modo de vida tão fútil e insignificante. Não se pode reclamar a inocência dum homem que sistematicamente colhe vantagens pessoais num mundo que conhece de olhos fechados. E é isso, a sua habilidade permite-lhe representar sinceramente, o que vale o mesmo que ser sincero. Mas tudo são ratoeiras para o incauto e inexperiente Pierre. E quanto mais fala o coração do príncipe, mais engana. Contudo, não se deve chamar a isto perfídia ou hipocrisia. A vaidade do seu meio aristocrático não endurece, e a cortesia é uma arte aqui necessária e requintada. Mas qual é então o crime do príncipe Vassily?

Ele vive bem consigo e com os outros da sua classe. É um personagem amável, mesmo quando fecha a bolsa ou discute uma herança. Mas este homem é como se não existisse. de tal modo ele encarna as virtudes e os defeitos do salão russo. É essa a sua religião e é isso que o condena.

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