sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

A ESTÉTICA DO SEXO

Charcot demonstrating hypnosis on a hysterical Salpêtrière patient, Blanche ( Blanche Wittmann ), who is supported by Dr. Joseph Babiński (rear) . Charcot demonstrando a hipnose em uma histérica Salpêtrière paciente, Blanche

 

"Charcot tinha receitado uma visita a uma prostituta a um paciente seu, um belga, professor de Direito, de 32 anos. Aos sete anos de idade, o belga vira uma estátua de Hércules 'que lhe tinha dado uma preferência por homens e uma espécie de horror às mulheres'".

(William Carter, "As paixões de Proust")

 

Aqui aplica-se, sem dúvida, um aforismo do próprio Charcot: "Em última análise, só vemos o que estamos preparados para ver, aquilo que fomos ensinados a ver. Eliminamos e ignoramos tudo o que não seja parte dos nossos preconceitos."

A estátua que 'determinou' as preferências sexuais do paciente belga pode ter 'condensado' uma tendência natural, ou uma predisposição latente. Mas pode também ter 'decidido', no caso de ambivalência, a questão do género, a 'persona' sexual.

Charcot acreditava que essa 'decisão' era reversível, que a história pessoal podia ser ignorada e como que 'forçada' a uma restauração, pelo menos, da ambiguidade. O que torna compreensível esta crença, mesmo depois do que sabemos hoje, é que o mencionado 'horror' pelas mulheres não indicia uma solução 'feliz' da crise causada pela imagem de Hércules.

 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Sem título

(Burgos)

 

A FILOSOFIA NO HADES

"O rapto de Proserpina" (Padovanino)

 

"(...) só quando a ciência, a moral e a arte forem em cada momento especializadas 'numa' exigência de validade, seguirem a sua lógica 'própria' a cada momento e forem purificadas de toda a escória cosmológica, teológica e cultural só então pode instalar-se a suspeita de que a autonomia da validade, reivindicada por uma teoria, seja ela empírica ou normativa, é aparência, porque se introduziram furtivamente nos seus poros interesses e exigências de poder dissimulados."

"La Technique et la Science comme Idéologie" (Jürgen Habermas)


Isto quer dizer que nos 'convém', enquanto sociedade humana e poder que a autonomia da validade de uma teoria não esteja sujeita à discussão, pelo menos enquanto não houver 'provas' em contrário, mas provas, tacitamente, concordes com o 'epistema', diria Foucault.

Um dito célebre lembra-nos que só nos podemos colocar os problemas que estamos em condições de resolver. O não problemático está sempre abaixo ou acima do nosso entendimento. A espécie desenvolveu a ferramenta da razão para se poder adaptar a um mundo em constante transformação ("tudo se transforma"). Deve ser uma necessidade do 'homo sapiens sapiens', afim da própria linguagem, postular uma origem e uma criação.

Dum ponto de vista 'objectivo', parece que a 'problemática' científica dispensou a 'hipótese de Deus' para sair das suas contradições. Mas a questão levantada por Habermas diz-nos que isso foi feito à custa de um ocultamento que tem tudo a ver com a verdade filosófica.

De que precisamos para não sofrermos o choque da falta de validade geral das nossas provas? De especialização e mais especialização. A ciência, filha da religião e da filosofia, tem de chegar para tudo, enquanto a filosofia estiver debaixo de terra, como Proserpina.

 

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

OS MAIAS



Falemos do filme de João Botelho. Sem os desequilíbrios do seu recente trabalho sobre o "Livro do Desassossego", obra sobre a qual não é possível um consenso, talvez por não ser 'cinematizável', a obra-prima de Eça tem uma história e um manancial de diálogos que facilitam o trabalho do guionista. Sei que isso não chega e que a adaptação não pode ser um simples resumo, porque o cinema tem a sua própria linguagem. Aqui, o filme é inteiramente conseguido, com o tempo certo e a dramaturgia o mais eficaz possível. Não é pouco que tenha conseguido dar-nos uma ideia da riqueza das personagens secundárias do romance. Tenho um só reparo que são os cenários e um ponto ou outro de abandono do registo 'clássico' deveras irritantes. Quem tenha visto "A Inglesa e o Duque" com certeza que aderiu à recriação dos exteriores com gravuras da época. Não temos a impressão de um cenário, porque o seu 'classicismo' depressa se torna num ambiente 'histórico'. A tentativa de seguir o modelo de Rohmer falha quase completamente no filme de João Botelho porque os cenários parecem reproduzir, arbitrariamente, uma escola de pintura da época (no caso, o impressionismo) que destoa do estilo da filmagem de um modo quase agressivo. Até uma simples sebe ou um renque de árvores têm de passar por esta 'desfocagem' e, na verdade, por este anacronismo. Não se trata, como se vê por estes exemplos, de 'economia', mas de uma aposta, felizmente fracassada (graças à excelência dos actores) de 'distanciação' - excluo, claro, a homenagem a Rohmer.


Insisto nesta pecha de um trabalho, em quase tudo o resto, tão meritório que, como se costuma dizer, 'reconciliou o público com o nosso cinema'.




terça-feira, 28 de outubro de 2014

Sem título

Ericeira

 

A COR NEUTRA DA IGUALDADE

"Branco" (1992-Krzysztof Kieslowski)

"Branco" é a cor da Igualdade, na trilogia de K. Kieslowski.

A não-existência política e linguística do imigrante polaco Karol, (Zbigniew Zamachowski), um cabeleireiro com várias distinções internacionais, está na origem da sua impotência sexual, invocada pela sua jovem esposa francesa (Julie Delpy) para reclamar o divórcio.

Toda a cidade se une para tratar o imigrante como um pária, até o pombo que o "brinda" à entrada do Tribunal.

É interessante ver como a transformação a que se obriga o nosso herói, para reconquistar a mulher amada, a sua nova visibilidade política e sexual passam pela aquisição de poder, por todos os meios ao seu alcance.

Conclusão pessimista a que nem a prova de que o dinheiro nada representa para Karol, nem a surpreendente venalidade do romantismo de Dominique chegam para dar um sinal de esperança.

O filme termina numa cena muda, em que por sinais parece desenhar-se um futuro feliz. Mas de tal modo que, ao mesmo tempo, sabemos que aquele homem e aquela mulher nunca poderão encontrar-se na realidade.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

(José Ames)

DE MINHOCAS E HOMENS

A C. elegans

"Quando estas criaturinhas hermafroditas se encontram num ambiente com suficiente comida e pouco stress, vivem ensimesmadas e alimentam-se em perfeito isolamento. Mas quando a comida escasseia ou quando, por exemplo, detectam um mau odor no ambiente - para a C. elegans, os odores são uma das formas principais de detectar o perigo - estes animais formam grupos e alimentam-se em conjunto."

"Ao Encontro de Espinosa" (António Damásio)

É a natureza que nos dá o exemplo de como certas coisas são realmente um luxo, embora nos pareçam adquiridas para todo o sempre, e dependem, de facto, da segurança.

Esta é, realmente, uma necessidade absolutamente básica, pois que, sem ela, nem sequer poderíamos dormir.
O pensamento que faz o orgulho da Humanidade é a primeira coisa a cair, quando a insegurança atinge certos níveis.

Também (a insegurança) é a coisa mais difícil de imaginar para quem está de fora, no papel confortável de espectador ou de juiz.

domingo, 26 de outubro de 2014

Génova

RITORNELLO

http://perso.modulonet.fr/

O eterno retorno de Nietzsche é tão plausível como o momento único e irrepetível, o eterno nunca mais, e tem as mesmas consequências.

Se imaginarmos a nossa vida repetindo-se eternamente e se lhe pudermos dizer sim, isso justifica-nos tanto como viver algo de bom e absolutamente novo, votado à perda irremissível (se não for uma ideia original na mente de Deus).

sábado, 25 de outubro de 2014

(José Ames)

INFANTILIDADE DO PACIENTE

Irvin Yalom

No apaixonante romance de Irvin Yalom, Nietzsche está muito doente, mas não quer ser tratado. Ele precisa do "stress" e duma vida difícil para escrever e, sobretudo, para alimentar um desmedido orgulho, que se tornou um "órgão da doença".

Ao discutir o caso com o seu cunhado Max, Joseph Breuer compara o problema com a atitude duma criança, a que é preciso "dar a volta":

"(...) Espera aí, Max, matá-lo-ias numa semana! Não, o que farias seria mudar a atitude dele em relação a ti e ao tratamento. É a mesma coisa quando se trata de crianças. Alguma vez uma criança deseja ser tratada?"

("Quando Nietzsche chorou" de Irvin Yalom)

Breuer parece prestes a aderir à teoria do inconsciente do seu talentoso discípulo, o doutor Freud, pois há um Nietzsche que pede ajuda, quando a personalidade orgulhosa sai de cena.

Se Platão dispusesse do Inconsciente (mas não há qualquer coisa disso na reminiscência das Ideias?), como se poderia interpretar a licença que concede àqueles que têm por missão governar, para mentir, em nome do bem comum?

Poderíamos dizer que, realmente, o governante falaria verdade ao inconsciente popular, pois conheceria as necessidades do povo melhor do que ele próprio.

A divisão do sujeito, como se vê, autoriza sempre o autoritarismo da Razão. Todo o governante adopta a posição de Breuer, face a um Nietzsche dividido. A posição do médico que sabe melhor do que nós o que nos convém.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

(Ovar)

UM HOMEM DE VISÃO?



"Não falando em que, além da organização ou ordenação económica da Europa, há muitas outras coisas de tanto ou maior valor - a independência, a personalidade nacional, a cultura, a liberdade, a religião - e restringindo-nos apenas ao plano económico, eu tenho muito receio de que esta nova Europa não seja mais do que a exploração organizada dos países agrícolas pelos países super-industrializados, na hipótese, principalmente a Alemanha."

(Carta de Maio de 1941 de Salazar ao conde Gonzague de Reynold in "Salazar" de Filipe Ribeiro de Meneses)


O pensamento do outro, daquele contra cujas ideias as nossas próprias ideias se afirmam, não deve ser conhecido, dentro das suas circunstâncias, mas sempre tomado, pelo que o nosso empenho de vida exige que ele seja. Deve ser um pensamento ao serviço dos nossos interesses. Essa conversão nem sempre é fácil, pelo que, geralmente, nos ficamos pela sua caricatura, ou lhe negamos, simplesmente, audiência.

A biografia do homem que simbolizou tudo aquilo contra o que se ergueram o Abril cantado por Ary dos Santos e tantos outros e a 'canção de protesto' que sentimentalmente nos colocava no lado certo da história, foi publicada pelo semanário Expresso. É, talvez, subtilmente 'compreensiva' para quem,  na tese oficial, deveria ser o mais odiado dos portugueses. Sabemos, porém, que isso não é assim, desde um célebre concurso da televisão.

Enfim, um órgão informativo prestigiado julgou que, quase meio século depois da sua morte, se teria dado o tempo suficiente para as paixões políticas acalmarem e se começar a ver mais objectivamente esta figura essencial da nossa história. Afinal o Marquês de Pombal foi da mesma forma odiado e foi muito mais feroz do que Salazar e a República ergueu-lhe uma estátua no coração da capital, gesto que não foi contestado pela democracia. Na mesma linha, ninguém pensa em acusar de assassinato o nosso Príncipe Perfeito (pelo menos o 'revisionismo' ou o 'politicamente correcto' ainda não chegaram aí).

O conteúdo da carta em citação revela-nos algumas surpresas, longe da imagem que o ditador queria dar de si mesmo e da caricatura que dele fizeram os opositores dos vários quadrantes. Salazar não era,  afinal, germanófilo. Chega a dizer desse povo:" A Alemanha tem o gosto da força, da ordem material externa, a obsessão do sistema. Como vai operar este espírito que se assemelha a uma necessidade vital do povo alemão na reorganização europeia se for ditada soberanamente pelo poderio germânico?" (ibidem).

Os receios que a carta a Gonzague de Reynold exprimem podiam ser endossados pelos actuais críticos da União Europeia e até pelos mais realistas dos pró-UE. 

A tentação de reconhecer a  "Nova Ordem Europeia" do tempo do nazismo, na sua versão 'económica', por detrás da construção da UE, é grande, depois da Alemanha se ter deixado 'desmascarar'.

Salazar foi afinal um homem de visão ou o provinciano impenitente e devoto, o guarda zeloso de um galinheiro que já O'Neill gostava que fosse de plástico?


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

(José Ames)

DAS RUÍNAS

Viollet-Le-Duc

"John Ruskin opõe-se com fervor, a partir de 1849, às concepções do arquitecto Viollet-le-Duc, para quem a arquitectura deve formar um todo homogéneo, com desprezo da história e da integridade do monumento. Em "As Sete Lâmpadas da Arquitectura", Ruskin define um monumento arquitectónico como um conjunto orgânico que é preciso apoiar (restaurando-o o menos possível) mas que é preciso também deixar morrer. "

"200 Citações sobre as Artes, as Obras de Arte e as Belas Artes"
(Antoni Gelonch-Viladegut)

É esta uma questão do Romantismo hoje ultrapassada?

A opinião de Le-Duc vingou numa segunda vida dos monumentos, embora desintegrada do seu contexto cultural e histórico, problema com que, obviamente, não se preocupa o turista compulsivo e nada 'acidental', condicionado a seguir o 'pacote' de uma agência de viagem ou de um 'site' da Internet.

Mas o crítico de arte inglês também deixou a sua marca nas ruínas apropriadas pela hera romântica de um Ruysdael. Porém, também a ruína é sustida na sua queda irremediável com os materiais que se julga mais apropriados para não deixar morrer a sua estrutura. 

O sacrifício dos vestígios antigos proposto por Ruskin, esse, não é seguido em lado nenhum. É curioso que o método de 'deixar morrer' deste homem de cultura tão refinada tenha um paralelo inesperado com o dos talibãs que 'forçaram a morte' dos budas de Bunyan. A morte lenta imposta pela nossa passividade é ainda morte.

Pode parecer arbitrária a consolidação da ruína para quem vê nos monumentos o exemplo de um 'organismo' que está inexoravelmente ligado a um contexto perdido. E a verdade é que a ruína 'restaurada' não anda longe do  'pastiche'  que  mesmo
o turista apressado sabe muito bem depreciar.

Tudo isto me torna presente o paradigma da Grécia que é, quando comparada com Roma, por exemplo, em que os monumentos, mesmo os que, aparentemente se deixam morrer de pé, têm ainda tanto corpo,  como o Panteão de Agripa, ali, em grande parte, temos um mundo de indícios no vazio. Quase tudo é ideia, e é bom que isso possa ser assim.

Por contraste, a reconstrução de partes do Palácio de Cnossos, em Creta, com antiguidade quase venerável ela própria, é um momento de repouso para o espírito.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

(Porto)

OFUSCAÇÃO

www.quadradodosloucos.com

No 'politicamente correcto',  as  "posições que defendemos não têm custos e aquelas a que nos opomos não têm benefícios."

(Daniel Kahnman)

Não chegamos a esta situação por perda de vitalidade. Este fenómeno (sou tentado a chamar-lhe linguístico, de uma crise linguística) não pode ser associado à decadência civilizacional. Tampouco os bárbaros estão à porta do império. Os bárbaros somos nós, não é o radicalismo islâmico ou o califado levantado do pó.

Tornamo-nos no que somos pelos nossos próprios meios e desenvolvendo as nossas próprias tendências. A dissolução dos costumes ou o equivalente à adopção dos deuses asiáticos, causas tradicionalmente apontadas para o afundamento romano não são, para nós, reais ameaças - O'Neill dizia que o Ocidente "dá por de mais ao dente" - , visto que a 'moda' é tão credenciada quanto os costumes e os nossos deuses são apenas deuses do momento. É como se os Gregos não acreditassem para além das suas estátuas...

O indivíduo é a 'mónada' do sistema. Ao mesmo tempo que se aprofundaram as diferenças individuais, cresceu em eficácia um aparelho de controlo que se parece cada vez menos com um Estado com as funções que lhe conhecemos.

Compreende-se que o tribalismo seja o nosso inimigo mortal, inimigo que, no entanto, já se rendeu aos cavalinhos de Tróia da nossa tecnologia, numa relação culturalmente suicida.

O 'politicamente correcto', pelo seu lado, parece anunciar o fim da política, que para nós foi sempre acção associada à palavra. Ora esta entrou em 'ofuscação' mediática e não é novidade nenhuma a sua transformação em espectáculo.




segunda-feira, 20 de outubro de 2014

(José Ames)

DANDISMO POLÍTICO



"Com voto ou sem voto, o povo pode sempre ser levado a cumprir a vontade dos líderes. Isso é fácil. Tudo o que se tem que fazer é dizer-lhes que estão a ser atacados e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo e estarem a expor o país ao perigo. Funciona da mesma maneira em qualquer país." 

(Hermann Göring)


A "vontade dos líderes" não é julgada em si mesma. Parte-se do princípio de que os líderes são sempre necessários. Daí que a "vontade de liderança" (ou nos termos mais corriqueiros de um dos nossos políticos, "a vontade de ir ao pote", seja uma boa coisa em política. A imagem da soberania popular é a piedosa mentira que já Platão incluíra nos instrumentos de governação. Coerentemente, neste caso, o povo é tratado como o Grande Animal que o filósofo diz que é. Tem de ser domado, no final de contas, e para isso 'passar a mão pelo pêlo', expressão que pode ser substituída pela palavra demagogia ou contar-lhe histórias são normalmente úteis.

Não há líderes mal intencionados. A desonestidade - servindo-se a eles em primeiro lugar - não significa que não acreditassem na  cornucópia do "reich milenário". Hitler era um autêntico fanático da 'supremacia' alemã e foi esse programa que tentou levar à prática. Ficou como o 'aprendiz de feiticeiro' do estado moderno. Quando a 'vontade de liderança' chega a esta desmesura é o Armagedão.

Estamos, pois, avisados:  a força pode estar no povo, mas só um líder  pode converter essa força em poder, geralmente maléfico. É esse o efeito do poder indiviso.

Na democracia, a veleidade característica propalada por qualquer governo é a de conseguir a situação do ventríloquo que reproduz fielmente a 'voz do povo'. Mas a necessidade de equilíbrio entre os poderes concorrentes e a realidade objectiva de um simulacro de opinião colectiva que é, apesar de tudo, o maior  facto 'político'  da democracia, tornam-na imprópria para os sonhos autoritários dos 'gauleiters'. 

A experiência política de Göring foi, na verdade, a de um 'dandy' perdido no inferno.

domingo, 19 de outubro de 2014

Vila do Conde

BÁRBAROS EXTERIORES




"Por isso Hegel e os seus discípulos têm de depositar as suas esperanças numa dialéctica do iluminismo onde a razão se valida enquanto equivalente do poder unificador da religião."
(Nietzsche)

De Aristóteles a Hegel, a nossa 'diferença específica' (a de sermos racionais) vai tornar-se num processo de evicção do divino, de realização do absurdo. Revelamo-nos a nós próprios como "medida de todas as coisas", com esse instrumento prometeico que afinal os deuses nos tinham usurpado, fazendo-nos crer que o herói o tinha roubado.

Por contraste com a inscrição de Goya numa das suas gravuras, a vigília da razão também cria os seus monstros. Não o demonstrou o ano de 1793, com a nova deusa devorando os seus próprios filhos? Não foi o plano de Pol Pot estritamente lógico e, ao mesmo tempo, demencial?

A "medida de todas as coisas" pode ser, na verdade, desmesura.

Se a razão se quis tornar no moderno "poder unificador" não foi capaz de, simultaneamente, nos dar os novos valores.

A explicação para esse fracasso talvez esteja nesta outra ideia de Nietzsche:

"Daí que toda a formação cultural moderna seja essencialmente interior, um manual de formação interior para bárbaros exteriores..."

sábado, 18 de outubro de 2014

(José Ames)

UM COTOVELO NA PAISAGEM



Joseph Breuer (1842/1925)



Uma observação de Nietzsche sobre Breuer, no romance de Yalom:
"É uma mescla curiosa: inteligente, mas cego, sincero, mas tortuoso. Terá consciência da sua própria falta de sinceridade?"

("Quando Nietzsche chorou")


Sim, o que é a inteligência sem a sensibilidade? Algumas pessoas são rápidas e certeiras no seu raciocínio e, no entanto, fazem isso à custa da experiência, como se se fechassem.

E esta falta de sinceridade inconsciente, que parece um paradoxo, não é o que há de mais comum?

Como se fizéssemos um cotovelo na paisagem interior só para não ver o que está lá, e que no fundo sabemos bem que está.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Sem título

Guindais (Porto)

 

COMPREENDER

"Chamo compreender o mundo, estar à sua altura."

(Albert Camus)

Podemos estar à altura do nosso mundo, que é um microcosmos à nossa medida (é a isso que temos de limitar a ingénua frase de Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas.)

Sobretudo o 'petit monde' de Paris, ou de outra metrópole qualquer, pode oferecer-se a este 'estar à altura'. É, aliás, assim que devemos interpretar a citação camusiana. Um 'pied noir' que sabe não haver 'raça superior' e que os outros não valem mais do que ele próprio. Estar à altura, nesta interpretação 'mesquinha' é o esforço permanente para se fazer valer num meio que nos olha 'por de cima da burra'.

Porque seria prepóstero, depois de termos despejado o Céu, adoptarmos o ponto de vista de Deus...

 

 

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Sem título

 

Groucho (José Ames)

 

A IDADE DE OIRO

"Chocado e entristecido por estes acontecimentos*, Lívio começou a sua história de Roma com uma visão penumbrosa sobre o presente e as perspectivas do futuro.

Em tudo à sua volta via sinais de que Roma e o povo romano já não tinham o orgulho, a dignidade e a virtude que tanto haviam feito parte dos começos de Roma.

Este tema do declínio das virtudes romanas era parte da sua estratégia para encorajar os seus leitores a voltarem à grandeza do passado."

("Ancient Greece and Rome", Carroll Moulton, Editor in Chief)

* A guerra civil que levou à queda da República.

 

O passado sempre foi mitificado. O tempo é um poeta que reescreve a memória dos povos e dos indivíduos.
É a ideia da 'idade de oiro'. Depois dela, o metal só pode empobrecer.

Tito Lívio bem sabia que os séculos da história romana que antecederam o seu tempo e sobre os quais tinha de contar uma história que parecesse verdadeira, sem testemunhos vivos ou arqueológicos, era um mundo de deuses e heróis disputando ao homem comum a gesta duma civilização.

Lívio que, ao que parece, não serviu no exército, nem exerceu cargos públicos, foi motivado pela nostalgia da República, ou melhor, da sua idealização dela, e acreditava que o retorno a essa 'idade de oiro' era possível. Foi a sua paixão.

É uma paixão que não pode motivar nenhum dos nossos contemporâneos, afeitos à ideia do progresso e à permanente mudança. Os saudosos de Salazar sabem que o 'Estado Novo' não pode ser ressuscitado, a não ser como farsa (Marx dixit).

Apesar disso, é também verdade que o futuro idealizado pode tornar-se, cada vez mais, numa ideia do passado. É por isso que permanece ainda na nossa vida política o tema da 'idade de oiro', mas referida a um passado que nunca chegou a existir, por se conjugar sempre no futuro.

O sentido da utopia é o mesmo no passado mitificado ou na utopia do futuro. Nenhum presente nos pode satisfazer. Talvez esta seja uma das 'astúcias' da razão de que falava Hegel: um motivo sempre à mão para agirmos como se fôssemos 'livres'.

 

 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Sem título

Porto

 

JUVENTUDE ÜBER ALLES





"Ah, deixe-me em paz com as suas teorias sobre a secreção... meu caro amigo, quando eu posso ver o que há num ventre, não tenho necessidade de teoria... faça como eu e torne-se cirurgião... a única possibilidade de permanecer jovem!"
"Les Somnambules" (Hermann Broch)


É o remédio do poder contra a verdade do tempo. Cortar e coser, como se se dominasse a vida.

Mas é o tempo que engrossa o trabalho do bisturi e faz da precisão uma dança ébria no escuro.

"A paciência do homem em relação à autoridade da lógica é quase inesgotável e a única comparação que se impõe é a paciência inalterável que o homem testemunha à arte médica" (ibidem).

Todo o poder é uma lobotomia. Abordar o outro como coisa, ainda que para o salvar.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

(Arouca)

MORALISTAS

Samuel Johnson

"Johnson era um moralista, e faltava-lhe aquela divina ligeireza que faz espumar os versos dos dois maiores poetas satíricos ingleses. A indignação pode fazer poesia, mas deve ser uma indignação recordada num estado de tranquilidade."

(T.S.Eliot, "A crítica e a poesia de Johnson") 


É a intenção que corta as asas à poesia e a impede de se transformar em 'espuma' ligeira e 'para nada'. Um programa, qualquer que seja, já é uma 'camisa de sete varas'. Esse, pelo menos, é o entendimento da nossa época. Porque o maior poeta italiano foi moralista, mas, de facto, a sua indignação foi convertida pela vastidão do quadro: Inferno, Purgatório e Paraíso. Não há pessoa em Dante, mas só um espectador, 'com as costas quentes'. A 'Divina Comédia' é uma viagem fantástica, mas segura, como nos diversos 'túneis' da feira popular.

La Fontaine foi o maior dos moralistas. Pelo mundo animal interposto, as suas fábulas proclamaram a verdade a grandes e pequenos. Com a vantagem dos vícios terem um focinho (os porcos, no mundo da fábula, não podem ter virtudes, o que é até injusto).

Samuel Johnson (1709/1784), ensaísta, lexicógrafo, biógrafo, poeta (Wikipédia), segundo Eliot, era um indignado sem retrospectiva. Faltava desprendimento à sua poesia. De facto, a acção só pode devorar os poetas.



segunda-feira, 13 de outubro de 2014

(José Ames)

A PELE COMO PARADIGMA





"Pode-se então, agora, reconhecer distintamente no termo da Idade Média essas duas fases da revolução intelectual: a declaração de falência da dialéctica escolástica, imediatamente seguida duma mudança de orientação verdadeiramente coperniciana, para o objecto imediato. Ou, por outros termos, é uma mudança que vai do Platonismo ao Positivismo, da linguagem de Deus à linguagem das coisas."
"Les Somnambules" (Hermann Broch)

Depois de se abrirem os poros à experiência sensível, que o novo cepticismo permitiu, é como se o órgão do conhecimento deixasse de ser o cérebro, com o seu modelo de integração "a priori", para passar a ser a pele. O "interface" sem centro, nem perspectiva.

O céu das ideias explodiu e aproxima-se, cada vez mais, da "res extensa" cartesiana.

O que nos leva a dizer que haverá um ponto de viragem é que estão em vias de construção os neurónios de um novo cérebro.

domingo, 12 de outubro de 2014

Porto

A PROVINCIANA


Claude Goretta fez em 1980 um filme ("La Provinciale") que tem uma cena inesquecível.

Cristhine veio da Lorena para Paris para fugir ao desemprego e mudar de vida. Mas os tempos são difíceis. Amores precários a condizer com a efemeridade do emprego.

Uma amiga, que se prostitui para escapar "à angústia do dia seguinte", convida-a para um seminário de homens de negócios, num belo palácio nos arredores.

As mulheres presentes fazem parte do "room service", como diria o Leonard Cohen. Os empresários, com um desprezo sem disfarce, organizam uma corrida de obstáculos feminina, com um chorudo prémio, para enganar o tédio.

Christine é instada a correr pela amiga, mas, depois de chegar em primeiro lugar, entrega o dinheiro do prémio à má conselheira e regressa à sua terra.

Enquanto espera pelo comboio, um sorriso vem-lhe bailar nos lábios. O sorriso de quem esteve em risco de perder a alma e, no último momento, encontrou a espada.

sábado, 11 de outubro de 2014

El Djem (José Ames)

CÍNICAS LUZES

Peter Sloterdijk

"O violento impulso anti-racionalista nos países ocidentais é a reacção a um estado de espírito em que todo o pensamento se tornou estratégia: ele testemunha da aversão que inspira uma forma determinada da conservação de si."

"Critique de la Raison Cynique" (Peter Sloterdijk)

Sloterdijk faz o processo do Iluminismo (Aufklärung) que parece instruir toda a crítica do poder, da tradição e dos preconceitos.

É-nos difícil imaginar a mentalidade anterior ao século XVIII, em que a antiga concepção da Natureza tirava todo o sentido a essa polémica.

No espírito das Luzes, por outro lado, há uma utopia e um proselitismo que vão animar os séculos seguintes, coisa que o racionalismo por si só não explica.

A aversão de que se fala na passagem citada é, pois, um sintoma de que as Luzes ainda estão acesas, mas o "Aufklärer" já não suporta o espectáculo que ilumina.