segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Sem título

Allariz

 

A ARTE DO NOVO

 

"Foi principalmente porque cada dinastia alcançou uma gigantesca concentração de tesouros artísticos que a herança chinesa repetidamente sofreu tais perdas massivas. A queda de praticamente cada uma das dinastias teve como consequência o saque e o incêndio do palácio imperial, e de cada vez, de um só golpe, a nata da produção artística dos séculos precedentes desvanecia-se em fumo. A espantosa dimensão destes desastres recorrentes está documentada em grande detalhe pelos registos históricos."


"The hall of uselessness" (Simon Leys)


A centralização do partido comunista parece, assim, continuar uma tradição ancestral, ligada, é de supor, àquilo a que o marxismo chamava de 'modo de produção asiático'. Resta saber se a introdução 'controlada' do capitalismo não reservará melhor futuro à produção artística dessa grande nação.

Segundo Leys, a memória da arte do passado, mesmo ao nível dos especialistas, não ia além dos cem anos. É como se a Itália só soubesse da Renascença por ouvir dizer, através dos vagos rumores que as gerações, apesar do silenciamento do poder (ou, como agora fez o ditador da Coreia do Norte, da rasura das fotografias oficiais), passam umas às outras.

Numa situação como esta, o melhor da arte do passado nem sequer pelas elites pode ser apreciado. Até agora, a arte do presente, como acontece, de resto, em muitos países ocidentais, chegava ao resto da população sob a forma de subproduto, quando não da pura propaganda e, com a mudança, essa população não perdia nada (porque não se pode perder o que nunca se teve). A maioria camponesa garantia às elites chinesas que a arte nunca seria 'revolucionária'.

A tradicional prudência dos chineses, que também pode ser vista como a passividade dos súbditos, assenta nessa cultura incorporada da esfera doméstica (por oposição à esfera política, como dizia Arendt), na qual, parafraseando Paul Ricoeur, a propósito do mal e do pecado, "a humanidade é tomada enquanto colectivo singular;"

Só podemos imaginar o potencial criativo que é neutralizado por esta tradição milenar. Mas é verdade que não é a criatividade que nos torna mais sábios...


 

domingo, 29 de dezembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

A FUNÇÃO DO CRÍTICO

D.H. Lawrence

 

"Nunca confies no artista, confia no conto. A função própria do crítico é salvar o conto do artista que o criou."

(D.H. Lawrence)


Nesta imagem, o artista aparece como uma 'barriga de aluguer'. Ou como aquelas galinhas que comem os próprios ovos. Parece injusto que o 'criador' seja considerado um inimigo da sua própria obra. Estamos longe da metáfora da paternidade...

A justiça que se pode ver nisto é que o artista deve tudo à sua língua e à sua cultura e que, no fundo, não sabe como, por que feliz acaso, de tantas flores tocadas acabou por produzir o seu mel.

Ora, o artista não é apenas uma 'barriga de aluguer'. É natural que ame os seus próprios 'filhos', e de resto, a paternidade natural não pode tampouco reivindicar o pleno conhecimento do que criou.

O que é mais discutível ainda é o papel que o autor de "Sons and Lovers" reserva ao crítico. Porque ele não pode ambicionar a ser mais do que um avaliador da obra pelo gosto da época. Não pode fazer justiça ao processo da criação, a não ser na medida em que pode denunciar uma falsa originalidade. A maldição do crítico é estar sempre fora do tempo de uma obra original. Não saberia 'salvá-la' do próprio criador.

 

sábado, 28 de dezembro de 2013

Sem título

 

Porto


HAL 9000

 

"2001: a Space Odissey" (1968-Stanley Kubrick)



Quando Hal, o super-computador do filme de Kubrick, elogia os desenhos que Dave (Keir Dullea) fez dos seus companheiros congelados, o que é que vale esse elogio?

Sabemos que Hal tem um simulacro de alma nas velhas canções do país natal do seu criador que guarda na memória profunda, mas, justamente, é uma imitação.

A opinião superficial, recebida dos outros, que não é uma reacção do nosso corpo, nem um pensamento, vale tanto como o elogio do Hal 9000.

Não sabemos qual é a massa dessas opiniões, mas podemos adivinhar que, a exercer-se numa força integradora e direccionada, teríamos o equivalente a um cataclismo natural.

 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

MODELOS

(Jackson Pollock)

 

"Na medida em que uma obra é de artesão, o seu modelo está sempre fora da obra; mas tanto quanto ela é de artista, é sempre a obra mesma que é o modelo."
(Alain)

Mas todo o automatismo em pintura, por exemplo, cai nessa categoria da obra que é o modelo de si mesma (o que está feito sugere o que se vai fazendo).

O modelo 'exterior', por outro lado, tanto pode ser a ideia de como se faz uma mesa, como uma pintura dessa mesa, e a reprodução em ambos os casos requer, naturalmente diferentes técnicas e habilidades.

Quando Chartier diz que a arte tem o modelo em si própria não se refere, evidentemente, ao modelo da mesa 'real', mas ao do sistema da pintura, no qual o objecto pintado é uma 'realidade' do tipo de todos os objectos pintados, o que pouco tem a ver com a mesa a que nos sentamos.

Esse critério permite-nos distinguir uma arte de outra arte, ou uma obra criativa de uma peça de artesão, mas não o bom e o mau dentro do sistema da pintura. Porque até o mau pintor se tenta integrar no sistema, e nunca confundirá o modelo dentro desse sistema e a simples imagem de um objecto do nosso mundo.


 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Sem título

 

Miragaia

 

GÉNESIS

 

"O SENHOR reconheceu que a maldade dos homens era grande na Terra, que todos os seus pensamentos e desejos tendiam sempre e unicamente para o mal. "

(Génesis)

Mas é Deus, ele próprio, que coloca a tentação no caminho do homem, ao estabelecer a proibição e, de cada vez que quer provar a fidelidade dos israelitas, 'endurece o coração do faraó'. Não, a 'peça' não foi escrita por nós, e o mais difícil de provar foi sempre a liberdade dos homens, perante um Deus que lhes 'sonda os rins e o coração'.

Esta vigilância por parte de Deus justifica-se plenamente, já que os nossos pensamentos e desejos tendem 'sempre e unicamente para o mal. Podemos actualizar esta 'fatalidade', dizendo que, na verdade, o mal é o mundo. O mundo distrai de Deus, o mundo extenua o trabalhador e transforma a classe média em servidora do 'bezerro de oiro'. Os do topo da pirâmide social, aos olhos de Deus, são os piores, mas estes também só acreditam no mundo que tão magnificamente os recompensa.

Antes de nascer, o homem já foi acusado daquelas tendências. Sem a intervenção da graça divina (a fé não pode ser uma garantia, pois diminuiria a 'liberdade' do Criador) isto é, duma decisão exclusivamente divina, não há mercê.

Mas podemos comparar a profecia das profecias, que inspirou todas as outras, pelo menos neste hemisfério, com a palavra moderna: a do profeta Marx, que falhou em toda linha desde que saiu da crítica do capitalismo.

O mal de que fala o Livro do Génesis não desapareceu, porque o judeo-cristianismo enforma todos os nossos símbolos e toda a nossa mitologia. Não surgiu, entretanto, um outro grande Livro para levar mais longe a nossa caminhada. As condições não favorecem o seu aparecimento. Entrámos numa nova era em que definir o mal em relação a Deus, a uma obediência natural, à fé na 'salvação', equivale a falar uma língua morta. Venerável, mas morta.

É a religião convertida em cultura que parece poder alcançar o 'ecuménico'. A homenagem a Mandela mostrou um pouco esse fenómeno, para lá da sabedoria do "de mortuis nil nisi bonum" (dos mortos nada a não ser bem)

 


 

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Sem título

 

(José Ames)

 

O ESPÍRITO DO TEMPO

Chegou até mim um vídeo do chamado "Zeitgeist Movement" que pretende recolocar na ordem do dia a agenda de Marx, mais precisamente, a 11a. das suas 'Teses sobre Feuerbach'. Não se trataria de interpretar o mundo, mas de transformá-lo. Essa agenda apresenta-se reciclada e com alguma argumentação nova. Não se pode, por exemplo, confiar a uma classe em vias de extinção a tarefa revolucionária, e em vez da 'classe operária' o novo agente da História é a Tecnologia, a julgar pelo vídeo que circula na Internet. Ora, esse é um erro familiar ao próprio Marx. Se não interpretarmos, teremos de deixar o nosso destino nas mãos do novo agente revolucionário, a tecnologia, que, não é preciso lembrá-lo, é em parte determinada pelo deus Mercado e pelo que os autores chamam de 'Corporatocracy', o poder das multinacionais. Inclino-me para pensar, todavia, que a principal força da tecnologia é autónoma e anarquizante. A sua função não é tanto a de resolver problemas, como a de criar novos contextos para velhos e novos problemas.

O vídeo dedica uma primeira parte ao Cristianismo e à ideia de que a figura do Cristo é um mito e de que a Bíblia é um plágio de mitos mais antigos. Também aí estamos diante de um dos temas favoritos do marxismo, o da religião como 'ópio do povo'. Não me quero pronunciar sobre as teses de 'Dawkins et al.', mas sempre direi que a questão da historicidade de Jesus é pouco relevante e que os argumentos contra a verdade do Cristianismo, que é descrito como uma fraude, funcionam até 'a contrario', pois se se quer demonstrar que há histórias comuns nas diversas religiões, isso apenas abona o sentido de que ou são todas 'verdadeiras' ou são todas falsas. Diz Paul Ricoeur: "O mito, desmitologizado desta maneira pelo contacto com a história científica e elevado à dignidade de símbolo, é uma dimensão do pensamento moderno." A conclusão é que nem sequer conseguiríamos pensar sem a existência dos mitos e dos símbolos em que eles se transformam...

O tema da segunda parte é o que é considerado um mito moderno: o "11/9". Já conhecia a maior parte das objecções à explicação oficial e não há dúvida que são perturbantes, e mais ainda com a falta de vontade do governo dos USA para um esclarecimento completo. Mas, como entre nós, o 'Caso Camarate', as comissões de inquérito deverão suceder-se, a menos que, contra a ideia feita, a democracia americana se encontre bloqueada, a um ponto que nós nem sonhamos, e que essa democracia seja, de facto, desde há muitos anos, ela própria, um dos maiores mitos modernos.

A parte final é a mais convincente, ao descrever o mecanismo da dívida como o maior gerador do dinheiro em circulação, dinheiro que surge, assim, da atmosfera, ou do antigo éter, para enriquecer uns poucos à custa da humanidade. A economia global parece, na verdade, um império, tão prepotente como o dos Romanos ou o dos czares da Rússia esclavagista, mas por meios menos visíveis, quase subtis, em que a responsabilidade é diluída e quase impossível de chamar a juízo.

Em suma, muito 'pano para mangas', apesar de um certo tom de 'igreja nova' que mistura, na aparência, os temas de forma incongruente. Qual é a verdadeira 'agenda'? A religiosa, ou a anti-capitalista?

 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Sem título

Cuenca

 

REVISIONISMO

A Revolução Cultural

 

"A certa altura, nesta breve e, de resto, banal entrevista, contudo, Mao, que já estava a cozinhar a sua vindoura 'Revolução Cultural', deixou uma sugestão tantalizante, indicando que os escritores e os intelectuais estavam profundamente corrompidos pelo 'revisionismo', mas que a juventude podia ser mobilizada contra este mal contra-revolucionário."

(Simon Leys sobre a famosa entrevista de 1965, entre Mao Tsé Tung e André Malraux)

A palavra revisionista é actualmente inócua. Todos os partidos comunistas, de uma maneira ou de outra, 'reviram' a história do movimento. Admití-lo é, evidentemente, outra coisa.

Num sistema fechado, as palavras têm sentidos exclusivos, por isso a poesia é o que há de mais subversivo para esses sistemas. Ou uma palavra que fez o seu caminho, mas precisa de um piparote para subverter o sistema de alto a baixo, como 'Glasnost' ou 'Perestroika'.

O revisionismo foi, naquela altura, uma arma de arremesso poderosa. Na boca do 'sumo pontífice' da Revolução Chinesa, equivalia à auto-excomunhão dos culpados. Como refere o escritor francês, nas suas 'Antimémoires', no encontro, o líder chinês terá explicado: "Plekhanov e os Mencheviques eram marxistas, mesmo leninistas. Separaram-se das massas e acabaram por pegar em armas contra os Bolcheviques, ou melhor foram na maioria exilados ou executados." É isso: os revisionistas 'separaram-se das massas'.

Isto supõe que as massas seguiram sempre em frente (de desastre em desastre, até um 'pragmático' chegar ao poder e dar os 'cem passos atrás' que 'modernizaram' a China) movidas por um instinto infalível.

Na verdade seguiram um louco que se tomava por Mao Tsé Tung. Infelizmente, este conseguiu 'mobilizar a juventude' e ultrapassar tudo o que a distopia de Orwell foi capaz de imaginar, destruíndo a família, as instituições, e os tesouros do passado. Se Staline fosse tão louco, não teríamos hoje o Hermitage.


 

domingo, 22 de dezembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

O OVO

Berghof, a Casa-Refúgio

 

"Hitler impõe aos seus convidados (em Berghof) que acabem de comer o que está nos pratos e proíbe ao 'maître d'hôtel' de os levantar se neles subsistir qualquer alimento."


(Diane Ducret, "Femmes de Dictateur")


Se não fossem as extraordinárias circunstâncias da sociedade alemã, ao tempo, talvez o Führer tivesse sido mais um ridículo tirano doméstico, tentando impor aos mais próximos a rígida obrigação de 'comer a sopinha toda' que, sem dúvida, lhe foi imposta quando era criança.

Desculpem-me a psicanálise barata, mas esta é uma interpretação que vale tanto como outras (como a do pintor frustado, por exemplo). O 'moralismo' pequeno-burguês, como diria o marxismo vulgar, e a escatalogia da sopa, são, porventura, o núcleo mais forte das ideias (ideias com corpo) do ditador germânico a que a humilhação nacional deu a ampltude que se sabe.

Este carrasco de milhões, como outros do seu tempo, não queria a guerra pela guerra nem, por si mesmo, o extermíno racial. Como o que conta são os fins, em homens enlouquecidos por um sentimento ou uma ideia, todas as atrocidades são permitidas.

O encontro de um moralista desta extirpe cujo sonho era ser o garante da pureza da raça superior com o poder absoluto teve os efeitos previsíveis, dados os antecedentes históricos.

E é nos tiques do tirano que podemos perceber como o 'ovo da serpente' teve uma origem banal.

Chaplin acertou em cheio, no "Grande Ditador", ao pô-lo aos pontapés ao globo e a correr de pose em pose como o grande artista que julgava ser.

 

sábado, 21 de dezembro de 2013

Sem título

Istambul

 

DE MÉDICO E DE LOUCO

El gran paranóico - 1936 (Salvador Dali)


"A razão e a justiça são as grandes armas do paranóico. A sua razão e a sua justiça, porque o paranóico não está talhado para o Estado de Direito onde a razão se discute e a justiça está nos códigos."


"Como tornar-se doente mental" (J.L. Pio Abreu)


Aqui está uma declaração que faz da acção dos grandes reformadores uma espécie de paranóia.

Pode dizer-se que, alguns deles pelo menos, estiveram sempre receptivos à discussão e a respeitar as leis, tanto quanto lhes era possível.

Mas é a força da sua convicção, quando os potenciais aliados não sabem ou têm dúvidas, e o rasgo da sua visão do futuro, ao ponto de desafiar os códigos vigentes que faz o sucesso das reformas por que esses homens lutam.

Mas como "de médico e louco, todos temos um pouco", só podemos atribuir à sorte, ao encontro de uma tendência no indivíduo e dum estado do mundo, a sua situação própria, que um se torne completamente louco e que outro conduza a humanidade a um novo patamar do progresso.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

A CRISE IRRECONCILIÁVEL

 

"A indiferença perante o conflito é uma nobre virtude. Raros a possuem. O que sucede com as naturezas vulgares é que a nossa resolução boa, conscientemente reflectida, reforçada na mais legitima compenetração do dever, da dignidade, da honra, desmaia na conjuntura do conflito que vai provocar entre amigos, entre companheiros, entre camaradas, e nós precisamos de reagir sobre nós mesmos com toda a força da nossa coragem para nos determinarmos a efectuar pela nossa iniciativa a explosão da crise irreconciliável que presentimos latente, palpitante, dependente da palavra decisiva que por um dever de consciencia profundo e sagrado vamos lançar ao coração daqueles que nos rodeiam."

"As Farpas" (Ramalho Ortigão e Eça de Queirós)

Esta indiferença, prega-a Krishna ao príncipe Arjuna no 'Bhagavad-Gita'. Mas é preciso que a força do espírito compense a da cólera de que se abdica. A maior parte das nossas decisões difíceis partem de um gesto brusco que põe fim à interminável deliberação. Quem vive cercado de afectos de que depende a sua estabilidade mental, e às vezes a sua razão de ser, dificilmente escolherá a 'crise irreconciliável' que impõe uma 'boa resolução', boa no sentido ético e da cidadania.

É sabido que é na juventude, quando somos mais amados do que poderíamos amar, que há mais liberdade para as 'crises irreconciliáveis', o que é certamente um bem político do maior alcance.

Percebe-se que a ilustre dupla das "Farpas" tende a considerar o povo português mais conciliador, por sentimentalidade, do que o de outras nações, e eu acho que há alguma verdade nisso. A sentimentalidade pode ter tanta influencia como o clima.

No outro extremo, podemos considerar o caso das baixas temperaturas que convidam a outro tipo de laços sociais e em que se tentará evitará toda a 'crise irreconciliável' com outro empenho.

 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Sem título

Bilbao

 

VERDURAS DA MORAL

 

" O único problema que hoje se coloca, porque da sua solução depende o destino da humanidade, não é um problema de regime político ou económico - democracia ou ditadura, capitalismo ou comunismo - é um problema de civilização [...] Será esta civilização feita para o homem, ou pretende ela fazer o homem para si, à sua imagem e semelhança, usurpando deste modo, graças aos prodigiosos recursos da sua técnica, o próprio poder de Deus? É isto que importa saber [...] Trata-se de saber se a técnica disporá dos corpos e das almas dos homens do futuro, se ela decidirá, por exemplo, não somente da sua vida e da sua morte, mas também das circunstâncias da sua vida, tal como o técnico da criação de coelhos dispõe dos coelhos da sua coelheira."

(Bernanos: Essais et Écrits de Combat;cit. P. Bernard Fixes)

Deve ser uma particularidade moderna pôr-se a questão da civilização que queremos. De facto, até hoje, nenhuma sociedade humana pôde alguma vez decidir a civilização que quer. É mais provável que tenha tomado partido por um regime em vez de outro, que de maneira nenhuma significa 'usurpar o poder de Deus', do que escolhido uma civilização 'feita à sua medida'.

A crítica de Bernanos é, de alguma maneira, o contraponto dos construtores de sistemas e dos 'engenheiros de almas'. Que se possa ter idealizado a sociedade sem classes e o processo histórico que fatalmente conduzirá a ela não é, na verdade um 'parti pris' por uma civilização superior, embora ainda no futuro. De facto, essa ideia pertence ainda à engenharia social. Este poder putativo de criar uma sociedade de raiz, ou sem qualqer espécie de continuidade com o existente é, como diria Alain, uma ideia operária. Compreende-se a máquina, na medida em que se é capaz de a montar e desmontar, logo a nova função 'revolucionária' é apenas uma questão de vontade.

Naqueles tempos, um certo radicalismo parecia pensar que a sociedade tinha sido construída a partir de um desenho (para alguns, de um comité de exploradores), em vez de ter crescido como um organismo vivo.

A metáfora do comité pode-se ainda aplicar ao caso do capitalismo financeiro, mas é óbvio que esse comité não sabe nada da natureza social, nem precisa de saber. Tal como o jogador do casino, a sua eventual competência é apenas estatística ou pavloviana (sabe como fazer salivar as suas vítimas).

 

 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

METAMORFOSE

www.telegraph.co.uk

 

"Vamos lá, homenzinho, volta-te por um instante das tuas ocupações diárias, escapa por um momento do tumulto de pensamentos... Entra na câmara interior da tua alma, fecha-a a tudo que não seja Deus e aquilo que te pode ajudar a procurá-lo, e quando fechares a porta, procura-o."

(Santo Anselmo: "Proslogion", citado por Karen Amstrong)

Este idealismo não anda longe da matéria. Concebe-se que Deus possa ser encerrado numa câmara, como um gás invisível...

O isolamento da alma parece suficiente para a procura ter êxito, o que está de acordo com a teoria platónica das ideias inatas. Encerrar-se na 'câmara interior' é como apagar as luzes do mundo. A melhor metáfora é a noite. Descobrimos os astros e o infinito quando o sol e as luzes próximas deixam de nos encandear.

Não é só a rotina, as 'ocupações diárias', ou o 'tumulto de pensamentos'. A Natureza reservou o sono para as horas da revelação.

Talvez que nada de realmente importante seja 'adquirido' e que nos baste fazer em nós descer a noite, deixar a larva que trabalha para conhecer a metamorfose na câmara exterior que é uma noite de estrelas.

 

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Sem título

 

(José Ames)

 

O PORTO LONGÍNQUO

Foz (José Ames)


"Quem vem e atravessa o rio" pela velha ponte de D. Luís, tem diante de si uma das mais belas cidades do mundo (digo-o sem bairrismo).

Mas quem palmilha as suas ruas encontra lixo, abandono e a demência dos graffiti à solta nas paredes.

O Porto é como uma bela para ver de longe, sem o confronto com os seus problemas de cancro da pele.

Por isso, haja alguém que cuide da cidade longínqua, porque a outra parece não ter remédio. Alguém sensível aos telhados arrombados e às lixeiras infames que se vêem do tabuleiro superior.

Sei bem que só estará atento a coisas como estas quem sinta que a cidade lhe pertence. Ora, ninguém tem esse direito. E os turistas, talvez se estejam nas tintas para os pormenores.

 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Sem título

Lisboa (José Ames)

 



 

PARÁBOLA SOBRE O ORGULHO

 

Lúcifer

"Tal como no furacão que varre a planície, os homens fogem da vizinhança de algum olmo gigante e solitário, cuja altura e robustez o torna tanto mais inseguro, porque é a melhor marca para os raios; assim perante essas últimas palavras de Ahab, muitos marinheiros correram para longe dele, apavorados."

"Moby Dick" (Herman Melville)

Nesta magnífica passagem, Melville dá-nos a melhor das parábolas sobre o orgulho humano.

A criatura que desafia o que a ultrapassa e se pretende medir com o que não compreende merece a solidão do olmo e o raio que o fulmina.

É ainda a história de Lúcifer, o anjo caído. Todavia, enquanto a árvore se fez tição e lenha, o anjo tornou-se senhor dum outro domínio.

É curioso pensar que neste mito, não há arrependimento, nem verdadeiro castigo, mas uma divisão do trabalho necessária.

Castigados, são todos os que vão parar às regiões inferiores, mas o senhor do lugar exulta com a máquina dos suplícios de que dispõe.

Porque alguém se tinha de encarregar do trabalho sujo, enquanto no Paraíso a corte canora passeia em círculos à volta do trono, como numa Versalhes celeste, foi preciso criar uma casta de intocáveis.

Contentes com a sua sorte, orgulhosos e cegos, como convém à justiça.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Sem título

 

(José Ames)

 

O DESACERTO DO TEMPO

www.eveandersson.com/photos/photo-display?pho...




Na mundanidade há uma coisa que nos seduz a todos, homens sem fé: a precipitação numa ordem exterior, aceite universalmente. Preenchemos de tal maneira o tempo que ele nos falta para o essencial. Mas o essencial reduz o tempo a nada, à relação lógica sem significado para a verdadeira vida.

É surpreendente a capacidade da tecnologia para abolir as diferenças, quando aparentemente é um processo multiplicador. A afirmação marxiana de que o pensamento reflecte as condições de existência tem aqui a prova fulgurante na velocidade com que mudam as habituais referências e na mentalidade infantil do homem de hoje que a espelha.

Incapaz de pensar a mudança, segue o movimento fascinado, alienando uma parte cada vez maior da sua responsabilidade.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Sem título

 

Porto (José Ames)

 

A ONDA

 

Katsushika Hokusai


" - Esta vaga, diz o velho, não esperou. Ingratos que nós somos! Este poder do homem, e mesmo de pensar, como é que se ousa descrevê-lo esquecendo a longa sequência dos trabalhos e das ferramentas?"


"Entretiens au bord de la mer" (Alain)


A onda não é nada em si. Tem todo o oceano que a empurra e o sol e a lua.

O instantâneo, a onda isolada, pertence ao conceito. Não há onda, como de resto não há milhões de gotas, nem biliões de átomos. Tudo isso é ordem que vem de nós, é o nosso fio de Ariana, que não muda o labirinto mas permite que nos encontremos.

Como ousamos, pois, esquecer os mortos e os vivos que nos empurram, que pretensão é essa de julgar que somos o ponto de partida de alguma coisa?

A ideia de que cada ser é exterior a si mesmo há-de ser sempre nova, sempre surpreendente e contra a experiência.

O facto é que não nos podemos ver a nós mesmos, nem escapar dos sistemas sem cair no caos.

"Talvez valesse mais dizer que um sistema fechado não tem propriedades; suponho que tal é a ideia escondida, à qual se vai às cegas e apenas por meio da técnica. Ao passo que o entendimento descobre aqui a indivisível relação." (ibidem)

A relação é entre a ideia do sistema e o mundo. Só que, como é natural, tomamos um pelo outro.

 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Sem título

 

Coimbra (José Ames)

O PODER VERSÃO MÃOS LIVRES

 

O antigo Seminário de Verrières


"Mas falam-nos desses artigos jacobinos; tudo isso nos distrai e nos impede de fazer o bem. Quanto a mim, nunca vou perdoar ao padre."

M. de Renâl em "Le Rouge et le Noir" (Stendhal)


O discurso da hipocrisia, hoje, não empregaria estes termos.

Todos se lembram do célebre: " - Deixem-me trabalhar!" e aí está algo de mais aproximado, sobretudo na sua descendência (porque creio que da primeira vez, terá havido um ingénuo desejo de não ser estorvado pela "política").

O maire de Verrières não quer mais do que o concurso de todas as forças locais para a glorificação do seu nome.

A palavra progresso estava ainda ensanguentada pela história recente, e Renâl, como conservador, só podia invocar o bem.

O progresso, hoje, parece servir a todos.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

ANTERO

Antero de Quental

 

"Não sei: mas o que é certo é que não há sociedade, por decadente e inferior, onde a virtude não seja possivel: e, se a virtude é o fim último da vida, por conseguinte da sociedade, que não é mais que uma condição para que ela possa dar-se, direi que não há sociedade completamente perdida, completamente inútil, visto que o fim supremo nunca deixa de se realizar. A nós, espiritualistas e estóicos, deve bastar-nos isso. Sejamos nós os que perante o Universo justificam a sociedade em que vivem, por pôdre que ela seja.”


Antero de Quental (“Soldados da Revolução”)


Assim falava um socialista ('espiritualista e estóico') do século XIX. Para que precisava ele de um partido? Tratava-se da salvação individual da sua alma e não de se salvar 'de companhia', como diria Pessoa.

Hoje, confiamos a difusão da 'virtude' às organizações, elas próprias sujeitas aos vícios da burocracia e da corrupção.

Não importa, Antero não encontrara ainda o 'cavaleiro andante' dos seus sonetos ('com grandes golpes, bato à porta e brado'). Pensava que podia atravessar incólume o deserto do país, sem ao menos Sancho Pança, a 'ponte' com os outros da sua loucura.

Onde estão hoje os candidatos a cavaleiro andante? Às vezes, encontro-os nos blogues e noutros impasses...

 

 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Sem título

Porto (José Ames)

 

AS MÁQUINAS

"The Power of Photography"

"As máquinas são o novo proletariado. À classe operária já foi entregue a guia de marcha."

(Jacques Attali, citado por Jeremy Rifkin)

 

Chegará alguma vez esta profecia, esta 'provocação anti-marxista', a ser verdade, para além do mundo mais desenvolvido?

Vejo as fotografias que Marcus Bleasdale recolheu no leste da República do Congo, de crianças escravizadas nas minas donde provém o tungsténio e outros minérios necessários aos nossos 'tabletes' e 'smartphones', e parece-me que o mundo nunca chegará a ser um só, e que a chamada globalização será por uma eternidade ainda um eufemismo para a selvajaria das forças desencadeadas e para a não-racionalidade da economia financeira.

Se, nalguns países, uma parte da 'classe operária' já recebeu a 'guia marcha', para dar lugar ao numérico, como dizem os franceses, e à robotização, devemos ver nisso uma tendência imparável do progresso, e que é uma questão de tempo que o homem precise de confiar a outra coisa o sentido que tinha o trabalho na sua vida, ou uma oportunidade histórica de julgar os dois tipos de homem e as duas sociedades, presentes simultâneamente, numa contemporaneidade que não deixa de lembrar a do 'homo sapiens' e a dos últimos neandertais?

 

 

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

ALADINO

"Jacob e o Anjo" (Delacroix)

"A luta com Deus Jacob tendo ficado só, alguém lutou com ele até ao romper da aurora. Vendo que não podia vencer Jacob, bateu-lhe na coxa, e a coxa de Jacob deslocou-se, quando lutava com ele. E disse-lhe: «Deixa-me partir, porque já rompe a aurora.»

"Jacob respondeu: «Não te deixarei partir enquanto não me abençoares.» Perguntou-lhe então: «Qual é o teu nome?» Ao que ele respondeu: «Jacob.» E o outro continuou: «O teu nome não será mais Jacob, mas Israel; porque combateste contra Deus e contra os homens e conseguiste resistir.» Jacob interrogou-o, dizendo: «Peço-te que me digas o teu nome.» «Porque me perguntas o meu nome?» – respondeu ele. E então abençoou-o. Jacob chamou àquele lugar Penuel; «porque vi um ser divino, face a face, e conservei a vida» – disse ele."

(Do "Génesis", Bíblia dos Capuchinhos)

Este que eu saiba é o único exemplo bíblico em que a força divina e a humana se medem num 'corpo a corpo'. Embora, no caso de Deus, através da figura do Anjo. Mas diz-se claramente que Deus não podia vencer Jacob e que mesmo depois da 'joelhada', o fundador de Israel podia impor condições ("não te deixarei partir, enquanto não me abençoares").

É tão estranho, tão incompreensível, este confronto que nos leva a procurar noutros mitos a origem desta 'enormidade'.

Concerteza que se pode ver no episódio da luta com o Anjo, um prenúncio do Cristianismo, mas aqui a encarnaçäo tem princípio, meio e fim, e vai até às últimas consequências, com a morte na cruz que deixa cada um com a sua fé e a igreja com a primeira pedra.

Quanto ao 'sonho' de Jacob, parece-me encontrar nele uma clara analogia com os contos populares. Por exemplo, com a história de Aladino e o génio da lâmpada. No fundo, é como uma astúcia de Jacob, que aproveita a presença de Deus no Anjo (dentro 'da lâmpada'), para o forçar.