terça-feira, 30 de setembro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

O MUSEU DA HISTÓRIA

 

"Foram eles (os jovens Hegelianos) que libertaram essa figura do pensamento que é a crítica da modernidade, a qual se inspira no espírito da modernidade, do peso do conceito hegeliano de razão."


(Jürgen Habermas)


Significará isso que o chamado pós-moderno já ultrapassou (ou considera ultrapassado) o movimento da crítica? Dir-se-ia, de facto, que a 'modernidade' já não nos inspira a ideia de um novo estádio no progresso da humanidade. Nenhuma aspiração a um ideal de justiça no 'fim da História', ou no final dos tempos...


O moderno adquiriu a rotundidade de uma outra natureza. Hegel dizia perante a montanha que não havia nada a dizer, que era assim mesmo. Já não pretendemos deduzir as leis escondidas no 'natural', nem fazer de parteira de coisa nenhuma.

Veja-se esta mudança reflectida na nova estratégia da super-potência. Nada que possa denunciar o imperialismo, uma noção estratégica confiante no poder das armas e da informação. Tácticas, regionalização, nada do voo da águia de outros tempos.

No mais mediatizado dos povos, o interactivo substitui, cada vez mais, a acção. A guerra dos 'drones' desactualiza os conceitos de honra e de valor militar. Temos de um lado uma guerra asséptica e do outro a destruição real. Essa insensibilidade não torna nenhum poder apto para uma visão universal.

A razão hegeliana juntou-se à roda de fiar e ao machado de bronze no museu da história, como diria Engels.

 

 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Sem título

Dubrovnik

 

HOMERO

Homero
"Quando alguém me quer dizer a verdade absoluta, é porque me quer colocar sob o seu controlo."

(Gianni Vattimo, citado por Karen Armstrong)


Por que é que uma criatura frágil, embora sob uma aparência tranquila (a ansiedade trai o principiante) e com o domínio da palavra, haveria de querer tornar-se indispensável para o meu acesso à verdade?


Por que invoca a todo o tempo um poder mais forte, de que ela seria o humilde intercessor, como o piloto da "Mensagem" falando de D. João II?

Deveremos incluir este assédio da 'verdade absoluta' nas outras formas da "vontade do poder"?

De qualquer modo, parece sempre haver crentes da crença dos outros quando esta se impõe com a força necessária, força que reside nas provas que não se podem refutar, e que são uma espécie de colusão entre a coerência do mito e o sentimento.

Verdadeira criação poética, de facto, e o mundo é a bola da "Pedra filosofal". A poesia é sempre estranha aos "factos". Não precisa deles para as suas histórias serem verdadeiras.

O poeta cego tinha um estranho poder: o de nos tornar o mundo invisível, mas mais presente. Imanente e inteligível.

 

 

domingo, 28 de setembro de 2014

"Britânico" (José Ames)

A ENZIMA JUDAICA


"O judeu errante" (Marc Chagall)


"Nos países protestantes, a crítica da moral leva necessariamente sociedades e classes inteiras a desmascararem-se a si próprias. É por isso que, nesses países, particularmente na Alemanha do Norte e na América, o "Aufklärung" moral não é possível sem uma componente sócio-masoquista (Ela nutre-se duma segunda pátria que são os judeus emancipados [Marx, Heine, Freud, Adorno entre outros], para quem, a despeito duma assimilação das mais estreitas à sociedade burguesa, é inerente uma certa visão marginal e predisposta à crítica, como Hanna Arendt o mostrou com evidência)."

"Critique de la Raison Cynique" (Peter Sloterdijk)

É claro que o impulso da crítica não nasce numa consciência feliz. E basta atentar à história das religiões para perceber que o homem sempre se projectou numa outra vida, que seria a verdadeira vida, face a este merecido "vale de lágrimas" (por causa do pecado original), ou a um mundo sem Deus, mas repassado de injustiça, cuja única esperança é a utopia.

A marginalidade dos judeus integrados foi enzimática na nossa cultura, como se vê na enorme influência, em todos os campos do saber, de indivíduos separados e relativamente autónomos em relação à tradição de cada país.

Pela mesma razão, o Estado judaico significa o fim desse espírito crítico (o que se verá melhor se alguma vez esse Estado deixar de sentir a sua existência ameaçada).

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Porto

UM CÓNEGO ENGENHEIRO

Nicolau Copérnico (1473/1543)

Ptolomeu deu um grande passo, ao criar a versão geocêntrica do mundo, mas não saiu da descrição. O sistema planetário era uma máquina que não precisava de funcionar.

Ninguém sentiu a necessidade de pôr à prova essa mecânica, até ao século XVI, porque a teoria estava de acordo com a intuição.

Copérnico deixou-se apaixonar por um problema sobretudo prático, sem nunca ter estado no seu espírito contradizer Ptolomeu ou a autoridade da Igreja (ele era até cónego em Frauenberg).

Para acertar as contas, teve de invalidar o sistema e de virar as costas à tradição e à sua experiência.
E nesse momento, a ciência descobriu a sua vocação "revolucionária" (porque independente da "visão do mundo").

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

(José Ames)

O ESPÍRITO DO MUNDO EM CUECAS

Napoleão Bonaparte (1769/1821)

"Porque pensa ele, e quer que o pensem, aquilo que Napoleão exprimiu um dia da forma clássica que lhe era particular: "Tenho o direito de responder a todos os vossos queixumes com um eterno eu. Estou apartado de toda a gente, não aceito as condições de ninguém. Deveis submeter-vos a todas as minhas fantasias e achar muito simples que me dê semelhantes distracções." Foi o que ele disse à mulher, um dia em que ela tinha razões para duvidar da sua fidelidade."

"A Gaia Ciência" (Friederich Nietzsche)

Nietzsche fala da nobreza e da moral mais ousada que alguns homens se podem permitir.

Parece a "Origem das Espécies" aplicada à filosofia.

São passagens como esta que justificam o mau uso das suas ideias.
Mas não podemos descartar, sem mais, esta apologia da nobreza, da qual perdemos completamente a noção, por termos deixado de perceber até que ponto somos escravos de mil e uma sujeições, identificando-a, de forma simplista, à força nua.

Napoleão, o "espírito do mundo a cavalo", na expressão de Hegel, é, naquela cena doméstica, um eu verdadeiramente patético, que se toma por Napoleão.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Génova

O AMIGO DESCARTES




fisioterapiaquintana.blogspot.com


Recebi há dias, através do e-mail, esta entusiástica reacção de um internauta a uma notícia sobre a doença de Alzheimer.

"Existe um termo médico que se chama ANOSOGNOSIA, que é a situação em que tu não te recordas temporariamente de alguma coisa. Metade dos maiores de 50 anos, apresentam algumas falhas deste tipo, mas é mais um facto relacionado com a idade do que com a doença.

Daí uma informação importante:

"Quem tem consciência de ter este tipo de esquecimento, é todo aquele que não tem problemas sérios de memória. Todos aqueles que padecem de doença de memória, com o inevitável fantasma de Alzheimer, são todos aqueles que não têm registo do que efectivamente se passa.

B. Dubois, professor de neurologia de CHU Pitié-Salpêtrière, encontrou uma engraçada, mas didáctica explicação, válida para a maioria dos casos de pessoas que estão preocupadas com os seus esquecimentos:

"Quanto mais se queixam dos seus problemas de memória, menos possibilidades têm de sofrer de uma doença de memória".

Como não podia deixar de ser, este método cartesiano de 'separar as águas' já deu lugar a alguma controvérsia. Mas que faz sentido e pode ser muito útil para afastar 'fantasmas', não tenho dúvidas sobre isso. Pelo menos, até que se prove que esta atitude, eventualmente, possa levar à desvalorização de sinais de uma doença efectiva.

Mas a verdade é que a consciência do que se passa connosco é a primeira coisa a desaparecer quando nos 'entregamos' aos salvíficos cuidados de um médico ou de uma instituição. Uma vénia a Ivan Illich e ao seu "Némesis Médica" é aqui obrigatória.

Assim, a maior parte de nós abdica, ou tem de abdicar 'naturalmente' da sua autonomia, o que tira qualquer utilidade ao método de Dubois (que não é evidentemente um método de cura, mas um repelente de falsos estados mórbidos).

No limite, a consciência é a humanidade. Afirmação que tem de ser moderada pela nossa iniludível necessidade de 'apagar todas as luzes', durante um terço das nossas vidas.

Lembram-se das larvas humanas no filme de Don Siegel ("The body snatchers")? É através desse estado que nos tornamos 'mutantes', em direcção não sabemos a quê.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

José Ames

AS PÉROLAS




"Já não amamos suficientemente  a nossa clarividência quando a comunicamos"
(Nietzsche


Não é uma daquelas afirmações reveladoras da incompreensível "ineficiência"  da natureza? Pois todo o gregarismo e a própria ideia do animal social não parecem desmentir a possibilidade dessa clarividência? 

É como se uma monstruosa pirâmide só existisse para permitir a excepção que faria do cume solitário o seu habitat, irrespirável para quase toda a espécie. Que modelo se adivinha por detrás dessa contemplação privilegiada? O da ostra.

Se a morbosidade é, no caso, representada pela pérola, esta, por causa do seu preço, é a 'verdadeira' finalidade do molusco...

Esta seria a maneira filistina, como diria Marx, de ver as coisas. Porque existe uma solução para este enorme desperdício, que é a de tornar os porcos apreciadores de pérolas.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Aljustrel

LA GRANDEUR





" Em 1729, Jean Meslier, um exemplar padre de paróquia, morreu cansado da vida, deixando as suas magras posses aos seus paroquianos. Entre os seus papéis, eles descobriram o manuscrito das suas Memórias, no qual declarava que o Cristianismo era uma fraude."

"The case for God" (Karen Armstrong)


Este caso, várias vezes citado, não é tanto o modelo da hipocrisia, como da amoralidade funcionária. Meslier fez parte da Igreja como poderia ter trabalhado para o Ministério do Interior. Para ter um emprego. Não sabemos se começou a sua actividade já sem acreditar, ou se perdeu a fé pelo caminho. Em qualquer dos casos, não era um anti-cristão e só as suas memórias revelaram a toda a gente a contradição em que, aparentemente, vivia. Mas terá sido assim?

Quando morreu este actor que fez de padre tão exemplarmente, Rousseau tinha só 17 anos. Provavelmente nunca se encontraram, nem, para dizer a verdade, seria preciso qualquer ensinamento do homem mais velho para pôr em movimento a ideia revolucionária que germinava na mente do jovem genebrense.

Meslier não destoa, quanto à sua moralidade ou à falta dela, do seu tempo, nem dos costumes eclesiásticos que destinavam aos filhos segundos da nobreza uma carreira 'éclatante'. Se se chegava a cardeal como alternativa a um 'emprego' na corte e ao privilégio de ver o rei em trajes menores (menores, relativamente, é claro) por que diabo se devia exigir ao 'petit prêtre' que tivesse fé?

Tal foi o 'espírito da época' que gerou o inclassificável Marquês tornado, na prisão, a sua doença venérea e o seu estilo.

domingo, 21 de setembro de 2014

(José Ames)

PROMETEU


"Prometheus" (Ridley Scott)

"Quando o Evangelho já não é prègado aos pobres, quando o sal se tornou tolice e todos os festejos fundamentais foram furtivamente excluídos, então o povo, para cuja razão angustiada a verdade só pode estar na representação, já não sabe como encarar a ansiedade do seu íntimo."

(Hegel

Encontro esta citação em Habermas. Estamos num ponto de viragem de que saíram as grandes ideologias do século XX. A figura do povo surge como a do grande necessitado, a entidade passiva que "já não sabe" lidar com o ocultamento de Deus (ainda não tinha aparecido o testamentário que enlouqueceu em Turim), com a falta de respostas dos seus 'representantes' na terra.

A sua razão 'angustiada' não lhe permite ver a imensidão do sistema que o filósofo prepara, com os recursos próprios do pensamento mais abstracto. Ao povo, condenado a identificar a verdade com a representação, como os cavernícolas de Platão, é preciso dar uma nova mitologia. Uma mitologia que deixe para trás a das 'imagens' de toda uma hagiografia. Ninguém melhor que um luterano que ultrapassou o estádio infantil da idolatria popular e a sua constelação de nichos para propor esse nobre desígnio.

A separação da realidade (uma espécie de auto-defesa, um jogo pré-freudiano com o traumatismo) mudou de cenário. Entra em cena, o Sistema. Em relação à Providência, foi um gesto prometeico.

sábado, 20 de setembro de 2014

Adare (Ireland)

O SENTIDO DA LÓGICA

Gilles Deleuze (1925/1995)

"A fórmula do fantasma é: do par sexuado ao pensamento por intermédio duma castração. Se é verdade que o pensador das profundezas é celibatário, e o pensador depressivo sonha com noivados perdidos, o pensador das superfícies é casado, ou pensa o "problema" do par."

"Logique du Sens" (Gilles Deleuze)

O fantasma não é uma acção nem uma paixão, mas "um resultado de acção e de paixão, quer dizer um puro acontecimento." (ibidem)

Não temos defesas contra esta análise desconstrutiva, a partir do momento em que o "modelo" funciona melhor sem o Sujeito, o que é, verdadeiramente, uma consequência coperniciana.

A relação do acontecimento castração com a linguagem não pode ser provada. Mas faz sentido.

Isso basta para incluir a psicanálise no conjunto dos sistemas "compreensivos", a par, por exemplo da economia política.

"(...) Freud tem razão em manter os direitos de realidade dos fantasmas, no momento mesmo em que reconhece estes como produtos que ultrapassam a realidade." (ibidem)

É o corpo então a âncora da realidade?

O vitalismo da doutrina é aqui mais do que patente, ao encontro dum Nietzsche, por exemplo.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

(José Ames)

O MAGANÃO




"Mas o dinheiro não é um meio de tratar as relações humanas tão seguro como a violência, e não nos permite ele renunciar ao uso demasiado ingénuo desta? É violência espiritualizada."

(Jean Maribini)


Se, por princípio, devemos distinguir o espírito da força, então trata-se de uma violência abstracta, que tem tudo a ver connosco (e a objectividade das forças sociais), mas nada com o princípio, em nós, que nos transcende e remete para uma realidade superior.

O dinheiro, assim, não deixa de ser uma 'conquista' do homem, ao mesmo tempo que denuncia os 'ingénuos' que lhe opõem o eterno moralismo de relento anti-semítico. 

Poderíamos ser 'racionais' (a tradicional distinção que nos permite reinar no planeta) sem racionalizar o mundo, a começar pela violência selvagem e a prepotência do músculo?

Veja-se a 'limpeza' com que actua outra força abstracta, como é a inflação, uma doença do dinheiro, justamente. Nos anos 80, em Portugal, como era fácil empobrecer grande parte da população e aliviar o Estado, sem passar pelo sempre odiado aumento de impostos! Esse 'ajustamento' não tinha que ser assumido por ninguém. O mecanismo era por de mais complexo e aparentemente autónomo para que alguém pensasse em pedir cabeças, com excepção dos que vivem de pedí-las sob qualquer pretexto. Marat teve sempre os seus discípulos de teatro.

Infelizmente, a nova hegemonia europeia não deixou à  'província' esse campo de manobra. A violência perdeu a máscara. Acontece, por vezes, no menos mau dos mundos.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Alcácer do Sal

A FILHA DOS ENGRÁCIOS





" - Não achava bela essa mulher?

- Primeiro que tudo, não era uma mulher, mas a filha dos Engrácios de Azurara. Merecia um sarcófago na igreja e dois galgos aos pés, como as rainhas. Se eu a achasse bela como dizes, estava a mostrar-me pretendente ou pior ainda. Ela tinha a figura da noiva de Rolando, sem seios quase e sem ventre. Além do mais, parecia-se com a mãe."

"Ordens Menores" de Agustina Bessa-Luís)

Não se julgue que esta incapacidade de Natan para apreciar a beleza da filha dos Engrácios, "vestindo-a" dos pesados trajes sociais e integrando a sua figura numa história que a ultrapassa individualmente em que o seu antevisto sarcófago é apenas uma paragem, não se julgue, dizia eu, que ao comum dos homens alguma mulher aparece como a estátua abraçada a Eça no Largo do Barão de Quintela.

Os estereótipos culturais actuam como verdadeiras lentes deformantes que nos impedem de ver a "nudez". Lembro-me sempre daquele écrã que um antropólogo conhecido iluminou pela primeira vez numa aldeia primitiva.  A acção da fita para a tribo passava-se num canto inferior da tela em que se viam algumas galinhas a fugir. Simplesmente, não estavam educados para compreender a nossa hierarquia de sinais mesmo na escrita mais simples de cinema.

O que chama a atenção naquele diálogo é, para mim, que Natan, o professor e luminária intelectual do seu meio provinciano, se refira a uma suposta equivalência entre uma opinião transmitida a um discípulo (Luís Matias) sobre a beleza de Frazina e uma declaração de interesse matrimonial, ou simplesmente amoroso. O tema de Sócrates e Alcibíadas tinha de vir à colação, como veio em Agustina.

Natan é tido por sage, isto é, por amante da verdadeira beleza, a platónico-socrática. A beleza da fidalga é uma aparência fugidia (ele insiste, desnecessariamente, nos seus defeitos físicos). Louvar a sua beleza seria, enfim, ceder a Alcibíades.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

A GRANDE ILUSÃO

William Yeats

 

"The coming of wisdom with time: though leaves are many, the root is one, through all the lying days of my youth, I swayed my leaves and flowers in the sun; now I may wither into the truth."

(William Yeats)


"Com a idade, o surgir da sabedoria: embora as folhas sejam muitas, a raiz é uma; através dos ilusivos dias da minha juventude balanceei as minhas folhas e flores ao sol; agora posso mirrar-me na verdade." (perdoe-se-me a infeliz tradução)

Como é antiga esta ideia de que a vida é um longo desvelar da morte, como se tudo nos enganasse na juventude e nos dias de acção! Mas parece que assim é, qualquer que seja a perspectiva. Nunca diremos sem sofismas que progredimos para o fim. Deixamos enferrujar as ferramentas ou abandonamos a tribuna quando começávamos a compreendê-las. De um momento para o outro, o mundo novo é um desafio que já não é para as nossas forças.

Mas o pôr-do-sol é mais verdadeiro do que a alvorada? Claro que não. Dizia Hegel que a coruja de Minerva levanta voo ao entardecer. Mas as ilusões são-nos tão necessárias que não podem ser simples enganos. Digamos que a verdadeira sabedoria, se voltasse a conhecer a 'inocência', queria começar precisamente por isso a que Yeats chama de "lying days".

E talvez voltasse a refazer a biblioteca, coisa que Cristo (Pessoa) não teria deixado de fazer se chegasse a velho.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Sem título

Avenida Almirante Reis

 

OS COIOTES DE L.A.

"Colateral" (2004-Michael Mann)

Em L.A., os coiotes descem do deserto e devolvem de olhos infernais as luzes dos faróis e, como dizia Bret Easton Ellis, ninguém quer saber de coisa nenhuma, muito menos dum homem morto no metropolitano a viajar há 12 horas.


A psicologia de Max, o taxista (Jamie Foxx) que se vê forçado a acompanhar na sua ronda nocturna um assassino contratado (Tom Cruise) é um notável exercício de ambivalência.

À medida que a lista dos crimes se acrescenta, comentados pela peroração niilista de Vincent, em que se mistura Darwin e o I Ching, Max, o ingénuo perito em escapadas de 5 minutos para as Maldivas, não resiste à identificação com o "super-homem" do banco traseiro e, como na literatura romântica, só é salvo pelo amor.

Nunca a multidão transada pelo ritmo pré-musical das vísceras pareceu tanto uma gelatina de mil braços, vigiada pela única consciência de serviço: a dos seguranças. Com o poder, na sua forma mafiosa ou policial, circulando por entre a massa ululante como pelo alcatrão da urbe.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

(José Ames)

ELEGIAS DE OUTRA LUZ

Duíno (José Ames)

"Com todos os olhos vê a criatura
o Aberto. Só os nossos olhos estão
como invertidos e de todo postos à volta dela
como armadilhas, em círculo à volta da sua saída livre."

8ª Elegia de Duíno (Rainer Maria Rilke, tradução de Paulo Quintela)

O Aberto da 8ª Elegia de Rilke é um desafio à nossa capacidade de expansão e de libertação dos sucessivos círculos de segurança "alimentar" ou religiosa.

Só a poesia poderia avançar na direcção dessa terra incognita, tornando real o que é mais do que uma visão e mais do que o intuído.

Não se pedem provas à poesia. As suas provas são o sentimento que ultrapassa todas as explicações.

Evidente, como o não é o heliocentrismo que, pelo contrário, é contra toda a aparência, o Aberto (muito mais do que o nosso mundo ampliado até ao cosmos) é tão evidente que nos cega.

domingo, 14 de setembro de 2014

Parque das Nações (José Ames)

A JUSTIFICAÇÃO DAS PÉROLAS

Nietzsche por Edward Munch

"Restará a grande questão de saber se podemos dispensar a doença, mesmo para desenvolver a nossa virtude, se, nomeadamente, a nossa sede de conhecimento, e de nos conhecermos a nós próprios, não tem necessidade da nossa alma doente tanto quanto da nossa alma saudável, em resumo, se querer exclusivamente a nossa saúde não será um preconceito, uma cobardia e, talvez, um resto de barbárie mais subtil e do espírito mais retrógrado."

"A Gaia Ciência" (Friederich Nietzsche)

Esta ideia foi brilhantemente utilizada no romance de Yalom ("Quando Nietzsche chorou"), em que se ficciona o plausível (mas não verificado) encontro entre um percursor da psicanálise (Breuer) e o profeta de Zaratustra.

Nietzsche receia que o stress seja indispensável à sua auto-reflexão e ao melhor do seu pensamento.

Afinal não foi mais ou menos com essas palavras que o professor Dieulafoy consolou a avó do Narrador, no grande romance de Proust? Era a extrema sensibilidade resultante da sua falta de saúde que lhe permitia extrair tanto prazer da leitura, nomeadamente, da sua querida Madame Sévigné.

E a ostra aí está também para o demonstrar.

A mais bela das pérolas não deixa de ser uma espécie de tumor.

sábado, 13 de setembro de 2014

Sem título

(José Ames)

CAPITAL FRUSTRADO

http://homepage.mac.com/keith.wilson/iblog/

"Toda a vida socializada vive com o pressentimento que ela não chegará ao fim das suas energias, do seu tempo, do seu querer e dos seus desejos quando a hora soar. A vida fabrica restos, um ainda-não enorme e ardente que tem necessidade de mais tempo e de mais futuro dos que os que são concedidos ao indivíduo."

"Critique de la Raison Cynique" (Peter Sloterdijk)

Talvez que este inconformismo em relação ao destino comum derive da velhice ter perdido, na sociedade moderna, muito do seu sentido próprio.

De tal modo que, cada vez mais, se depositam irrazoáveis esperanças num progresso que parece ir no sentido contrário ao da natureza, impondo dramáticas soluções de continuidade.

O envelhecimento, que é a resposta imanente àquele sentimento de "injustiça", surge, assim, como a derradeira ofensa a um pretenso direito.

É a vida concebida como capital, gerido contra a inflação do tempo.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Sem título

Almada

 

O NEVOEIRO

They live (John Carpenter)

"Aquele que apenas lê jornais e, quando muito, livros de autores contemporâneos, assemelha-se a um míope com muitas dioptrias e com vergonha de usar óculos."

(Albert Einstein, citado por Johannes Wickert)


Se a Teoria da Relatividade (que ajudou a criar o mundo moderno) envelhecesse tanto como esta outra ideia do grande cientista sobre a leitura, estaríamos, de facto, cientificamente muito avançados. Mas não. Ainda mal se tiraram algumas consequências da teoria e já o mundo em que Einstein viveu e o que se lhe seguiu parecem desaparecer pelo ralo do esquecimento.

Era certo ainda há alguns anos que o homem que não estudasse o passado era uma espécie de bárbaro. Porque mesmo as mais populares ideias científicas (ou aparentadas) só se compreendem historicamente, isto é, através dos erros em que a humanidade teve de incorrer para as aperfeiçoar e desenvolver. O que instrui de facto é o problema enquanto problema da forma humana.

Como diz Einstein, a miopia mais incapacitante é a sentença dos que só querem dar importância ao presente. É assim na literatura, nas artes e nas ciências, e sempre foi.

Mas vivemos hoje tempos em que essa miopia e esse desenraizamento se espalham como um nevoeiro da razão satisfeita consigo própria.

O especialista desenvolve a sua modalidade para lá de qualquer limite (desde que seja convertível em técnica). Assim chegámos às armas de destruição massiça. Voltámos à era dos titãs, da força desencadeada e sem governo (quando muito procuram limitar-se os danos colaterais).

E já podemos contar uma história destes dias. Um jovem nado e criado numa das mais civilizadas cidades do planeta, como Londres, atravessa os novos santuários do consumismo e sente que a sua miopia se levantou de repente. O resto podia ser um filme de Jonh Carpenter, ou uma notícia de jornal sobre o desafiante recrutamento do EIIS.

Termino com uma citação de Jean Rostand: "A ciência faz de nós deuses, antes mesmo que nós mereçamos ser homens."

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Sem título

(José Ames)

 

MÁQUINAS CELIBATÁRIAS

 

(o capitalismo moderno) "é simplesmente não religioso, sem ligação interna, sem espírito público, muitas vezes, senão mesmo sempre, uma acumulação de riqueza que só aspira à criação de propriedade. Para poder sobreviver, um sistema como este tem de ter um sucesso completo e não apenas parcial."

John Maynard Keynes

O conceito de sucesso (alcançar os seus objectivos?) não se pode aplicar ao capitalismo, que não é um indivíduo, nem um grupo. Está mais perto de um organismo (do género 'alien', se não fosse tão terrestre) do que de um sistema. Sistema foi o conceito que lhe deu um sentido por duzentos ou trezentos anos, e que foi inspirado na máquina cartesiana. Como 'coisa', funciona ao menos? (seria uma espécie de sucesso).

Socorramo-nos da ideia, no "Anti-Édipo" (Deleuze e Guattari), de "máquina celibatária" (capítulo das 'Máquinas desejantes'): "Há um consumo actual da nova máquina, um prazer que podemos qualificar de auto-erótico, ou antes, de automático, onde se celebra uma nova aliança, um novo nascimento, num êxtase deslumbrante, como se o erotismo maquinal libertasse outros poderes ilimitados."

Terá a antiquíssima imagem do oiro incarnado esta nova máquina que, claro, impede que qualquer lógica de sistema se imponha como 'ultima ratio'? Estes banqueiros tresloucados (criminosos aos olhos dos que pensam num sistema com leis próprias e regulado pelo 'bom senso'), o lixo financeiro produzido pela 'Cloaca Maxima' do "Capital", fazem parte de alguma economia?

Ou pode-se levar tudo à conta da sempieterna 'hubris''? Será a parte económica do capitalismo o subproduto duma orgia dionisíaca?