sábado, 30 de agosto de 2008


Portalegre (José Ames)

O PONTO CEGO


Karl Marx (1818/1883)


"No esquema de Luhmann todas as auto-descrições da sociedade são baseadas no paradoxo e na tautologia - a não observabilidade do observador desse observador-em-operação. Consequentemente, o problema para os sistemas sociais não é evitar o paradoxo ou a tautologia mas interromper a reflexão auto-referencial com o fim de evitar puras tautologias e paradoxos e sugerir auto-descrições societais com significado."


"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law" (Michael King e Chris Thornhill)


Este novelo de abstracções é afinal luminoso. E podemos, graças a uma transposição de conceitos, encontrar-lhe mesmo uma filiação marxista.

A auto-descrição é, evidentemente, a ideologia com que os sistemas cobrem a sua "nudez".

O paradoxo do observador sempre esteve no cerne de toda a descrição do mundo. É sempre de um ponto de vista que ela é feita, ponto de vista que, por razões de poder, tem pretensões à "ubiquidade".

Por fim, as grandes palavras, como se sabe, a retórica de uma maneira geral, sugerem que os problemas não são ditados pela nossa forma de os vermos, pela ideologia, mas que são os problemas reais da sociedade. A bem da Nação, mais uma vez.

A cláusula de actualização que Marx parecia desejar para o seu próprio pensamento, foi ignorada pelos diversos marxismos, especialmente quando se tornaram na ideologia oficial. Essa cláusula implica que o "método" não se torne o ponto cego da analise das "situações concretas".

O paradoxo de Luhmann tem, pois, toda a pertinência, mas não tem solução.

Sempre cada sistema tomará a palavra como se não fosse ele próprio a determinar o código da sua verdade.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

DUAS DECLARAÇÕES


Jean-François de Troy
The Declaration of Love (1724)


"(...) uma declaração de amor, para ser absolutamente convincente, exigia sempre uma segunda declaração. No século dezassete, esta tinha sido a "declaração do seu nascimento"; era preciso dizer ou provar que o amante era um príncipe ou um pretendente do mesmo nível da dama. No século dezanove isso foi substituído pela declaração da intenção de se casar."

"Love as Passion" (Niklas Luhmann)


A ideologia do amor, ou a sua semântica, como Luhmann prefere chamar-lhe, tem, assim, vindo a separar-se da estratificação social.

No nosso tempo, nem uma segunda declaração se torna necessária. O problema é que, reduzido a uma única declaração, o amor depende da sua capacidade de exprimir, de forma convincente, a sua sinceridade, e isso é cada vez mais problemático, porque nem o próprio tem sobre isso um critério seguro. Não se trata apenas de ser sincero no momento, mas ao longo duma relação complexa. "Deveria a outra pessoa engatar-se à nossa temperatura, como um termómetro?"

É por isso que essa prova é confiada à sexualidade, que substitui a intensidade das emoções à sua transparência.


"Wonder" (José Ames)

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

UMA QUESTÃO DE BOM GOSTO


http://www.theflorentine.net/media


"A exclusão da sexualidade presumivelmente implicava também uma relação escondida com o sistema social estratificado. A absorção sem reservas da atracção sexual pelo código do amor teria deixado aberta a porta à promiscuidade de todas as classes. A Marquesa de M. enfatizava nas suas cartas que não precisava de se apoiar na sua virtude para se defender dos admiradores burgueses; sendo o bom gosto tudo o que era requerido em tais casos."

"Love as Passion" (Niklas Luhmann)


Não é esse o drama de Lady Chatterley, no romance de D.H. Lawrence?

A partir do momento em que a ideia da virtude é objecto de exame, dentro da tendência para a "individualidade reflexiva", o bom gosto não é suficiente para evitar a "promiscuidade".

Para Lady Chatterley, o bom gosto era até suspeito porque se encontrava no caminho do amor romântico e da consciência social.

Esta demarcação social pelo gosto, longe de ter passado à clandestinidade, nos nossos dias, foi indexado ao dinheiro e ao consumo de prestígio, pelo que tem um futuro muito promissor, mesmo se quase deixou de funcionar no campo sexual.


Matosinhos (José Ames)

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

OBLOMOV



Alguns dias na vida de Oblamov” (1979-Nikita Mikhalkov) traça-nos um quadro melancólico da vida de um preguiçoso, dotado do melhor coração do mundo. Das primeiras cenas, em que somos levados com demasiada facilidade ao desprezo dum modo quase vegetativo de viver, entramos na verdadeira intimidade deste personagem terno e inteligente que se transfigura ao contacto da amizade e do amor.

O amigo Soltz, em tudo tão oposto no temperamento e no carácter a Oblamov consegue despertar o eterno dorminhoco, mostrá-lo nos salões, levá-lo a passear e a viver. Oblamov, que não gosta de música, fica trespassado pela “casta diva” cantada por Olga, a brilhante descoberta do seu amigo. O romance que esta mulher sabe fazer viver por inspiração de Soltz nunca se saberia o que representava finalmente para ela, se não fosse a cena das lágrimas desastradamente presenciada. Oblamov compreende que o amigo arriscara o seu amor por amizade e que não tem o direito de se mostrar ferido por Olga contar com zelo de discípula ao alemão os progressos no amor do preguiçoso.

Entre os dois homens há uma corrente forte que os liga à infância comum e aos sentimentos populares. E aquele que triunfa na vida segundo a opinião, o que viaja e conquista os corações femininos não é o mais feliz dos dois. Há uma sabedoria acima do tempo – é delicioso o diálogo sobre a política que trava com o hóspede incondicional, espécie de testemunha amorosa do oculto na lentidão de Oblamov – nesta figura do romance de Gondartchevsky. E o que mais impressiona é o quanto todos precisavam da sua presença e da sua simplicidade para encontrar um clima de felicidade. O espectador caminha desta forma, do leito amarrotado e informe para o céu de Platão.

A infância num país que vive ao ritmo das estações e conhece os prazeres do sono e do convívio moroso mas fiel, onde se vê o dono da casa beijar o servo que contou uma história. Nada se passa, mas tudo cresce e morre, tudo se renova sem vã agitação. A sesta feliz de amos e criados é todo um olhar sobre a política e a paixão do dinheiro e do poder. Oblamov não casa com Olga, mas foi o único que soube viver o verdadeiro amor e despertá-lo num coração cheio de literatura.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

A ESTÉTICA NO CAMPO

"A Greve" (1923-Serguei Eisenstein)


"O modo de ver as coisas dos camponeses é realmente diferente do das massas urbanas. Chegou-se, por exemplo, à conclusão de que um público camponês não é capaz de apreender duas séries simultâneas de acontecimentos, e não há filme que não as contenha às centenas."

"Sobre a situação da arte cinematográfica russa" (Walter Benjamin)


Benjamin escreve sob a influência da sua visita a Moscovo em 1927. É claro que pensamos logo no cinema de Eisenstein e no seu recurso tão poderoso à montagem paralela.

A julgar pela opinião acima, a estética destes filmes passaria muito por cima da cabeça das massas rurais da altura e, logo, o valor da propaganda que não deixava de ser a produção deste génio do cinema seria muito diminuto.

Uma coisa é, de facto, a consciência dos actores da Revolução e outra aquela que os líderes lhes supõem. A própria violência que teve de se usar nos campos é o sinal de que não se podia contar muito com a propaganda e muito menos com a arte "revolucionária".

segunda-feira, 25 de agosto de 2008


"Yin" (José Ames)

TESTEMUNHOS SUPLICANTES


"O Regresso do Filho Pródigo" (Rembrandt)


"Aquele que encontra os quadros de que a sua experiência precisa sente-se forte. Existem vários, mesmo se não podem ser muito numerosos, porque a sua função significativa é a de manter concentrada uma realidade que, dispersa, voaria em estilhaços e desapareceria. É preciso também que não seja um quadro único, esse violenta aquele que o possui, não o deixa em paz e interdita-lhe toda a mudança. É de vários quadros de que cada homem tem necessidade para a sua própria vida. Quando, em boa hora, os encontra, não perde muitas coisas de si próprio."

"Le Flambeau dans l'Oreille" (Elias Canetti)


Canetti, referindo-se a seguir à "Parábola dos Cegos" de Breughel, diz que todos os cegos que viu depois descendem desse quadro.

E se é verdade que alguns quadros valem mais do que parábolas e reúnem diante de nós as cenas com mais significado e o modelo dos nossos sentimentos, parece muito improvável que a pintura dos nossos dias possa aspirar a tão nobre função.

Mas aqui é preciso reconhecer que a arte moderna já não encontra o tempo dessa inspiração e que, emparelhada com a revolução mediática, se dirige principalmente ao nível das "pequenas percepções" de que fala José Gil.

Ao olharmos para um quadro "antigo" como o "Regresso do Filho Pródigo" de Rembrandt, não é já o nosso mundo que podemos reconhecer. É um passado que só vive se quisermos expandir-nos na dimensão do tempo.

De certa maneira, estamos na situação dos bárbaros conquistadores cuja rudeza só pode salvar a piedade por esses testemunhos suplicantes.

sábado, 23 de agosto de 2008


Fontainhas: depois da festa (José Ames)

JANELAS



"(...) é observador quem percebe aquilo que é outro através de uma janela de teoria, escapando ao mesmo tempo à contra-observação."

"Palácio de Cristal" (Peter Sloterdijk)


Uma "janela de teoria", "simbolizações portáteis do céu", maneiras de "preservar um mínimo de espaço próprio nos locais mais remotos."

É por isso que as viagens anteriores não tiveram consequências e que, se viermos a descobrir que outros abordaram o Novo Mundo antes de Vespúcio ou de Colombo, isso será não-história.

Aqui está também um modelo para compreendermos como os espíritos se influenciam uns aos outros, não é?

A personalidade "forte" nunca deixa de transportar consigo o seu "espaço próprio", e os "indígenas" só escapam ao "extermínio" fechando-se à comunicação, no seu reduto armado de preconceitos e superstições.

Se ao menos o "indígena" pudesse fazer contra-observação, não deixaria de notar que a janela de teoria é apenas uma janela.

Na literatura, em Balzac, por exemplo, o camponês nunca se rende à superioridade da observação citadina. Responde pela manha, enviesadamente.

O seu espaço próprio não é portátil, mas é real.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008


"Antequera" (José Ames)

DIGNIDADE



""Não há dignidade que não assente no sofrimento."(*) O sofrimento faz de nós solitários e alimenta-se da solidão que gera. Fugir a ela é o objecto do esforço fanático daqueles que têm a palavra nesta obra. O lado patético deste livro está mais intimamente relacionado com o seu niilismo do que se poderia pensar."

"A Modernidade" (Walter Benjamin)
(*) In "A condição humana" de André Malraux


E Benjamin explica que os heróis de "A condição humana": "vivem para o proletariado, mas não agem como proletários. Agem muito menos a partir de uma consciência de classe do que a partir da sua própria solidão."

Podia citar-se Adorno na sua crítica amigável a Benjamin: "(...) Você impôs a si próprio e às suas ideias mais fecundas uma espécie de censura prévia das categorias materialistas (que de modo nenhum coincidem com as marxistas) (...)"

É inútil dizer que os heróis do livro de Malraux não agem como proletários, visto que eles são o que são. Mas se não agem como proletários por que deveriam viver para eles?

A "censura das categorias" de que fala Adorno leva-o a contrapor à consciência individual (e só os indivíduos podem ter consciência) uma espécie de unicórnio sociológico que é a consciência de classe. Outra coisa é o sentimento, a solidariedade, etc.

Quanto à sentença de Malraux, parece-me cripto-cristã. Se é certo que todo o sofrimento força ao respeito, à piedade quase sempre, a forma de cada um, quando a conseguimos ver como "natureza" encerra em supremo grau a dignidade.

Aquele veado, no final do filme de Cimino ("O Caçador") cuja vida Robert de Niro é movido a poupar não é um exemplo de dignidade?

quinta-feira, 21 de agosto de 2008


Alcácer do Sal (José Ames)

A VIA DE BEINEBERG


Inácio de Loyola, fundador da Sociedade de Jesus


"Tu vês portanto do que é que se trata para mim. O impulso que me sugere deixar Basini tranquilo é de origem vil, exterior. Tu és livre de lhe obedecer. Para mim, é um preconceito do qual devo desfazer-me como de tudo o que me afasta da Via. O próprio facto de me ser penoso atormentar Basini, quero dizer de o humilhar, de o esmagar, de o afastar de mim, é uma boa coisa. Exige um sacrifício. Agirá como uma purificação. Devo aprender cada dia, graças a isso, que o simples facto de ser um homem não significa nada, que não é mais do que uma semelhança exterior, uma macaquice."

"Les désarrois de l'élève Törless" (Robert Musil)


Musil, no seu diário, chama a atenção para as relações desta sua obra, publicada em 1906, com a política, para o facto de exprimir "as ditaduras de hoje in nucleo". E acrescenta: "E também a ideia de que a massa é qualquer coisa que é preciso dominar."

Aquele discurso de Beineberg (o herói de Törless) não é, verdadeiramente, um discurso racista, apesar do nome latino da vítima. Podia ser assumido por toda a vontade de poder "inspirada" por uma missão de ordem transcendente, em que o agente não é mais do que um instrumento - mas oh! quanto inebriado por essa obediência e essa missão!

O militantismo da ordem jesuíta e a sua divisa perinde ac cadaver , obedecer como um cadáver, é um bom exemplo desse espírito que transporta a vontade de poder, por procuração, para o seio da religião.

Ter pressentido, antes das duas guerras mundiais, o poder destrutivo das falsas asceses e a falácia do super-homem foi a grandeza de Musil.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008


"Tal e Qual" (José Ames)

A FACHADA PERALVILHA


Jacques Hébert (1757-1794)


"Danton reproduziu a antiga proposta de Robespierre, que se assalariassem aqueles que assistissem às assembleias das secções, os quais receberiam dois francos por sessão; as sessões não se fariam senão aos domingos e às quintas-feiras. À custa disto mantinha-se um simulacro das secções, o que era útil para que cada uma delas não fosse inteiramente absorvida pelo seu comité revolucionário."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


O expediente já tinha sido utilizado na Antiguidade. O sentimento do dever, fora dos momentos de entusiasmo popular, nem sempre é suficiente para assegurar o quorum.

Quando se sabe que ao lado destas secções, cujos membros tinham de ser pagos para aparecerem, resfolegava a locomotiva dos enragés: "os verdadeiros e os falsos raivosos, anarquistas e monárquicos, estavam combinados para dar um golpe na Comuna e na Convenção."

Portanto, a Revolução, no que ela tinha de promessas com futuro, estava paralisada pelo medo que homens como Danton e Robespierre tinham de desmascarar e combater o extremismo.

No fundo, isso significava que não confiavam no chamado instinto popular, pois nunca se sabia o efeito que teria nas massas uma campanha de pasquins como "Le Père Duchesne" ou a demagogia assassina de um Chaumette ou de um Hébert. Michelet descreve este último como uma personalidade mesquinha, "a sua atitude de pequeno peralvilho que encobria o pequeno velhaco, os seus tristes precedentes (de vendedor de bilhetes e amanuense pouco fiel), tudo isto o fazia hesitar um pouco em encarregar-se do governo da França."

Mas é o próprio historiador que nos desencaminha com as suas categorias políticas. Para que dizer comité revolucionário, quando era, no seu espírito, todo o contrário?

terça-feira, 19 de agosto de 2008


Arcos de Valdevez (José Ames)

BLACKOUT


http://www.cook-communications.com/images/ladder%20-%20clouds.jpg


"Luhmann define sociedade como um sistema social que 'consiste em comunicações com significado - só de comunicações e de todas as comunicações.' Uma vez que, como vimos, a sociedade consiste na totalidade das comunicações com significado, segue-se que não podem existir comunicações fora da sociedade, portanto a sociedade não pode comunicar com o seu ambiente ou, como Luhmann põe a questão, não pode encontrar endereços fora de si própria aos quais possa comunicar alguma coisa."

"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law" (Michael King e Chris Thornhill)


Podia-se colocar o Homem mais fora do centro do universo?

Mas devemos levar, coerentemente, a deposição do antropomorfismo até o fim.

O "observador de Sírius" não teria em conta os nossos estados de alma, nem as nossas múltiplas versões da Criação do Mundo e estudaria, talvez, as leis, os padrões, as regularidades dos aglomerados humanos.

E esta surpreendente conclusão de que não temos nada a dizer para o exterior, pois, quando pensamos em extraterrestres estamos, de facto, a fazer ricochete no espaço mediático com uma mensagem que só tem significado para nós?

Como quando invocamos os mortos e lhes dirigimos alguma prece é para que isso tenha efeito na nossa vida e na dos que nos rodeiam. Os mortos, por definição, estão incomunicáveis e assim estará o mundo das formigas ou o dos habitantes do planeta X.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008


"Soldiers" (José Ames)

O REDUCIONISMO



"Para a direcção técnica administrativa à subordinação a um plano económico geral corresponde o método de direcção directamente determinado pela tecnologia sob a forma de programas para a produção e distribuição. A vitória gradual desta tendência significa a gradual extinção da lei como tal."

E.B. Paschukanis, citado por Friedrich Hayek (in "The Constitution of Liberty")


Há um aparente bom senso e uma aparente racionalidade nesta subordinação administrativa à economia que se pretendia liberta dos "antagonismos de classe".

E a extinção da lei não é mais do que uma concomitância do gradual "deperecimento do Estado", anunciada pelas profecias.

Mas o sistema económico não se deixa assim isolar numa totalidade independente dos outros sistemas, erigindo-se do mesmo passo em norma a que se deveria subordinar uma administração simplificada e sem as contradições próprias à esfera do poder.

Aquilo que levou ao falhanço do grandioso plano de dirigir o Estado e a sociedade pela Razão foi o reducionismo teórico que ignorou, ao mesmo tempo, a complexidade social e a inserção dos sistemas numa totalidade não-racional, numa ambiência que não é, nem pode ser, determinada pelas decisões humanas.

O declínio da lei assume, assim, o carácter paradoxal de uma rendição do homem às forças económicas e sociais que assim abdica do uso vital dos instrumentos da razão.

domingo, 17 de agosto de 2008


Alentejo (José Ames)

OS MORTOS


"O Inferno" de Dante


"Os mortos alimentam-se de juízos; os vivos de amor."

"Le Térritoire de l'Homme" (Elias Canetti)


Logo que uma pessoa morre, por muito íntima que tenha sido de nós, começa a separar-se do mundo dos erros e das faltas, dos compromissos e das indefinições que é o nosso mundo.

Se precisava de nós, ou nos tratava, às vezes, com indiferença, se nos apoiava ou nos contrariava, podia sempre permanecer igual a si mesma, pois, tal uma constelação de que não se podem contar as estrelas, a harmonização das formas era uma invenção de cada momento, e o amor deve ser parecido com isso, porque não soma o total de uma pessoa.

Com a passagem para o "outro mundo", que é o mundo dos outros, um homem já nada pode mudar na sua forma que dependa de si. E toda a benevolência ou mal-querer com que o podemos julgar a nós só diz respeito.

Os mortos dirigem, assim, a nossa vida (era a ideia de Comte) ao darem substância aos modelos que formamos com a nossa opinião sobre eles. E isto é uma espécie de tribunal, com balança e tudo. Emitimos juízos de que os mortos são o objecto e o pretexto e para criarmos assim a primeira ideia da justiça.

sábado, 16 de agosto de 2008


(José Ames)

O NARCISISMO NO FEMININO



Um casal discute sobre o desejo numa paisagem da Toscânia. Ela acha-o inoportuno e ambíguo. Afinal, ele ama-a ou apenas procura satisfazer o desejo?

A seguir, numa esplanada da praia, aparece o outro elemento da tríade: uma amazona que vem procurar maçãs para o seu cavalo.

Sozinho, ele procura a desconhecida na sua torre isolada. Fazem amor, despreocupadamente, e, no final, ele despede-se beijando-lhe os dedos dos pés.

A primeira mulher recebe um telefonema de Paris. Ele tem diante de si o espectáculo da neve. Ela diz que gostava de o ter sempre por perto.

Na sequência final, as duas mulheres, cada uma pelo seu lado, entregam-se ao prazer do sol e da água. Cloé passeia pela praia e a amazona estende-se na areia. E o filme termina com o encontro dos dois corpos nus, um projectando a sua sombra sobre o outro.

"Il filo pericoloso delle cose" é um dos episódios de "Eros" (1994) assinado por Antonioni.

Como sempre, as suas cenas são enigmas, prestando-se a mais do que uma interpretação.

O homem aparece aqui como um condutor do narcisismo feminino, no papel inverso daquele que lhe atribui a nossa cultura, Eros sendo a continuação do espelho "por outros meios".

É quando está longe que o amante transmite melhor.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008


Castelo do Queijo (José Ames)

A MORTE ACOCORADA


Rainer Maria Rilke

"(...)
Mas dentro do arnês do cavaleiro,
atrás dos mais escuros anéis,
a morte espera acocorada e medita e medita:
- Quando saltará a lâmina da libertação,
que venha buscar-me deste esconderijo
onde passo já tantos
dias assim dobrada, -
que eu me possa estender ao comprido
e brincar
e cantar."

"O Cavaleiro" (do "Livro das Imagens" de Rainer Maria Rilke, tradução de Paulo Quintela)


Que imagem da morte é esta que nos parece um bicho prisioneiro da hora em que uma ponta mais aguçada do mundo porá fim à separação da alma?

A sua meditação é o desejo de cumprir-se, de fazer o seu trabalho e entregar-se depois aos jogos da sua inocência.

Um bicho "álacre e sedento, de focinho pontiagudo", ou uma criança, sem maldade, ansiando apenas pela libertação, como uma força de vida que não se expande sem que noutro ponto do universo, ou no corpo do cavaleiro, outra coisa se não contraia, ou a luz não se torne negra.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008


Afurada (José Ames)

"Marx" (José Ames)

EM ALPHAVILLE TALVEZ...



"Enganar-nos-íamos à mesma supondo que a opressão deixa de ser inelutável a partir do momento em que as forças produtivas estão suficientemente desenvolvidas para poder assegurar a todos o bem-estar e o lazer. Aristóteles admitia que não haveria já nenhum obstáculo à supressão da escravatura se se pudesse fazer assumir os trabalhos indispensáveis por "escravos mecânicos", e Marx, quando tentou antecipar o futuro da espécie, apenas retomou e desenvolveu esta concepção."

"Réfléxions sur les causes de la liberté et de l'oppression sociale" (Simone Weil)


A razão deste engano é, segundo Simone, a "corrida ao poder" que é um flagelo de que nenhuma sociedade está livre, e isto porque a força é necessária na luta contra a natureza, ou contra os homens, quando a relação com a natureza deixa de se fazer directamente.

Esta seria a origem dos privilégios e de todo o monopólio, quer ele seja constituído pelos "procedimentos científicos", as armas, a moeda ou a coordenação dos trabalhos, com o poder de alguns dirigentes tornado necessário desde que ela atinge um certo grau de complicação e "a primeira lei da execução é então a obediência."

Todas estas fontes de poder são exteriores ao indivíduo e precárias por natureza, dependendo das condições objectivas e da situação política, o que leva a que, quase sempre, para se conservar, o poder tenha de agravar a opressão. O poder nunca é estável e é por isso que Simone prefere a expressão "corrida ao poder".

Esta análise, se é pessimista quanto à possibilidade dos homens se libertarem de vez da opressão social, tem o mérito de explicar por que nas experiências tentadas de revolução política e social, o princípio da igualdade não tenha tido melhor sorte do que o da liberdade, tendo sido sempre vencido pela necessidade de se reerguerem novos privilégios e monopólios.

A ilusão de que todos procuram o máximo bem-estar e que adeririam, racionalmente, a uma sociedade "livre" logo que as forças de produção tivessem atingido o grau necessário de desenvolvimento é pertinaz e anima todos os crentes quer nas reformas, quer na Revolução.

Temos de nos perguntar, porém, se as condições objectivas por detrás da opressão não são susceptíveis, pela tecnologia, de promoverem uma certa espécie de igualdade, levando a humanidade a prescindir de todas as formas políticas de poder, mas para as transferir para os supercomputadores de Alphaville...

quarta-feira, 13 de agosto de 2008


Fontainhas: depois da festa (José Ames)

PLAYBACK



Quando um país como a China recorre à manipulação de imagens (ver L'Express de 12/8), para ultrapassar uma dificuldade técnica (a interdição de voar nos céus de Pequim) e potenciar o seu prestígio junto de milhões de telespectadores, parece-nos que um certo limite foi ultrapassado.

Os fogos de artifício em "playback" não têm o significado da manipulação das fotografias históricas no tempo de Staline, tanto mais que não se fez segredo, posteriormente, do truque utilizado, mas não deixa de ser assustador por obedecer ao mesmo princípio de que os fins justificam os meios.

Nas palavras dum responsável da firma produtora, as pessoas julgaram que estavam a ver o fogo real e, portanto, "o nosso objectivo foi atingido".

Aquele vacilar da fronteira entre a realidade e a ficção a que Hollywood nos habituou tornou-se aqui técnica do poder e foi, durante um momento, verdade oficial.

terça-feira, 12 de agosto de 2008


(José Ames)

O MOSCARDO


Sócrates (470–399 a.C.)


"E quando Sócrates dizia que, na sua opinião, nada poderia ser melhor para Atenas do que a maneira como ele a espicaçava, um pouco do mesmo modo que um moscardo pica um cavalo grande e bem alimentado mas um pouco indolente, só podia querer, então, dizer que nada pode acontecer de melhor à multidão que desfazer-se, repartindo-se em homens singulares que podem ser interpelados na sua singularidade."

"Responsabilidade e Juízo" (Hannah Arendt)


Mas não basta pensar pela sua cabeça, sem os critérios nem as regras "definitivamente fixados" a que obedece o comum dos homens.

Essa independência implica também que a pessoa se cometa com o processo do próprio pensamento, como diz Arendt, sem o que ela pode, de facto, corromper-se ao ver-se privada das "regras e critérios que, sem pensar, até então adoptava".

Os que condenaram Sócrates fizeram-no no pressuposto de que, examinada a moral, a sociedade corria perigo por os homens se tornarem ingovernáveis.

Mas, como diz a filósofa, é a situação crítica que reclama o exame socrático, pois as convenções, então, já não estão à altura da situação.

O que significa ser responsável pelo "processo do pensamento" é, pois, seguir a sua vocação de regra universal (ao jeito do imperativo kantiano), e é isso que quer dizer pensar bem ou ter razão.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008


Lamas de Mouro (José Ames)

IDEAL E PARADOXO


"Paradox" ( Michael Bergt)


"Um código ideal por contraste não deixa praticamente espaço para variantes, e a individualização é só possível como desvio. Só as figuras negativas podem ser graficamente retratadas, tal como só existe uma saúde, enquanto existem numerosas doenças que por sua vez determinam diferentes destinos individuais."

"Love as Passion" (Niklas Luhmann)


Quando as contradições invadem o ideal este pode ser, aparentemente, uma coisa e o seu contrário. É aquilo a que Luhmann chama de paradoxalização do ideal.

Se esse é o caso nas nossas sociedades mediáticas, tolerantes e "politicamente correctas", podemos também perceber como o entusiasmo e a fé militante dependem da fortificação do ideal através de uma interpretação independente do mundo e da lógica, com alguns traços paranóides.

Enquanto vontade, a inspiração num ideal imune ao paradoxo (e ao confronto com a realidade) é uma força de problematização política incomparável.

A esperança dos "laicos", infelizmente presas do paradoxo, é que, a longo prazo, não só estaremos todos mortos (como dizia Lord Keynes), mas também essas ilusões se queimarão no vidro da experiência.

domingo, 10 de agosto de 2008

O VÍCIO, ESSE ESCULTOR



"Digamos numa palavra que Mme Verdurin, mesmo fora das mudanças inevitáveis da idade, não se parecia já com aquela que tinha sido no tempo em que Swann e Odette escutavam em sua casa a frasezinha. Até quando a tocavam, ela já não era obrigada ao ar extenuado de admiração que ela tomava outrora, porque este se tinha tornado o seu rosto."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Tal como o vício toma conta do corpo e se estampa no rosto, a tensão permanente causada por uma afectação de sensibilidade tinha-se tornado a máscara da "patronne".

Ao abrigo dessa máscara, o pensamento de Mme Verdurin podia alhear-se completamente da música.

A deformação da sua fronte (como a dos membros pelo reumatismo, diz Proust) fora esculpida pelo esforço da vaidade, ideia que nos faz irresistivelmente evocar o romance de Wilde.

Se o retrato se corrompe na tela enquanto Dorian Gray permanece afrontosamente jovem, o espírito musical de Mme Verdurin, liberto de todas as convenções, entrega-se a orgias de sensibilidade imaginárias enquanto a máscara esconde a devastação da sua alma.

sábado, 9 de agosto de 2008


"Plane" (José Ames)

MANIPULAÇÕES POUCO INVISÍVEIS


http://i222.photobucket.com/albums/


"Este problema do arbitrário político no topo da hierarquia deixa aparecer um estado de facto que se pode formular de maneira geral: na medida em que os sistemas adquirem a sua própria autonomia pela perdiferenciação, tornam-se igualmente as causas (ou pelo menos uma parte das causas) dos seus próprios problemas."

"Politique et complexité" (Niklas Luhmann)


Luhmann conclui que o problema próprio do sistema político é, então, que o sistema tornado arbitrário não precisa menos de ser controlável.

E cita entre os paradoxos que uma tal situação favorece a teoria da "Mão Invisível" de Adam Smith. Aqui, a contradição entre o interesse egoísta dos indivíduos e o bem público, no sistema económico, seria resolvida por uma instância de autocontrole do sistema, uma espécie de termostato automático.

É evidente que uma tal função seria de todo o interesse do "arbitrário político", pois que é a condição de ele se manter, enquanto sistema. Daí que a famosa "Mão Invisível" se possa traduzir por aquilo que Luhmann chama de auto-descrição do sistema e que se parece realmente muito com o que Marx definiu como ideologia, mas que aqui é não apenas uma visão interessada do mundo, mas um processo regulador.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A CHÁVENA DA CRIAÇÃO


http://andrade-alexandre.planetaclix.pt/proust3.gif


"O mesmo acontece com o nosso passado. É trabalho baldado procurarmos evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência são inúteis." Por isso Proust não hesita em afirmar, em síntese, que o passado "está escondido, fora do domínio e do alcance da nossa inteligência, em algum objecto material [...] de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objecto antes de morrermos, ou não o encontrarmos."

"Proust, citado por Walter Benjamin in "A Modernidade"


Faz tanto sentido esta espacialização da memória que nos espanta termos tido que esperar pelo século XX para podermos colher a sua ideia nas páginas do grande romance sobre o tempo.

A nossa inteligência não tem acesso a esses "arquivos" porque é eminentemente prática. A menos que, como Proust, dedicássemos a nossa vida à busca do passado real (que se prolonga no presente e explica as nossas inclinações mais secretas), a lenda, a poesia do tempo não chegam à consciência.

A utopia deste pensamento é a dumas águas-furtadas contendo todo o passado sob a forma dos mais diversos objectos que tiveram algum significado para nós. Bastaria abrir o baú para a infância regressar na sua inocência e virgindade.

Mas é claro que abdicamos de toda a ideia de acção, nessa cerimónia. E é por isso que a inteligência nunca nos dará a chave dessas águas-furtadas.


S. João do Porto: o dia seguinte (José Ames)

O OBJECTO DA GUERRA




"(...) Para usar uma variante de uma expressão de Bruno Bauer: só pode descobrir quem conheça melhor a sua presa do que ela se conhece a si própria, e é capaz de a sujeitar com base numa superioridade da educação e do saber."

Carl Shmitt (in "Der Nomos der Erde", citado por Peter Sloterdijk)


Isto, no contexto dos descobrimentos marítimos dos séculos XV e XVI e dos nomes com que os europeus crismaram os povos e as terras incógnitas.

É evidente que a dita superioridade não assenta no conhecimento da "presa", embora ela também não se conheça a si própria.

A lei da guerra e da conquista impõe, pelo contrário, o desconhecimento.

É a paz que precisa de se justificar. Mas a propósito da antropologia da conquista só podemos parafrasear Clausewitz, que é a continuação da guerra por outros meios.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008


"Bird" (José Ames)

PRIMÍCIAS ANTONIONIANAS




"Mesmo a intuição de que há formas de informação em cada um dos nossos humores, em cada uma das nossas especulações e particularmente no modo como vemos a outra pessoa, as quais a outra pessoa não suportaria ouvir, não chegaria ao fundo do nosso problema. O problema em questão é muito mais radical e centra-se em saber se não há sentido - especialmente nas relações íntimas - que é destruído em virtude de se falar nele."

"Love as Passion" (Niklas Luhmann)


A incomunicabilidade no amor teria sido, segundo este autor, uma das descobertas que o século XVIII deixou à posteridade.

O problema não residia numa falta de habilidade, mas na "falta de capacidade para a sinceridade."

Aquele século levou a retórica ao extremo de se perder a fé nas palavras. Se houve um tempo em que duas pessoas pensavam comunicar através de formas convencionais, o excesso do artifício despertou as consciências para o "erro de comunicação".

Podemos entender essa situação tanto melhor quanto a retórica da publicidade invadiu todo o espaço da comunicação.

Não há situação real que não encontre um modelo virtual nos mass media, e se o romance foi responsável, um século atrás, por uma certa ideia do amor, percebemos quanto a comunicação (da sinceridade) depende de se evitar ser "rastreado" pelo código dos media.

Quando isso se torna impossível ou demasiado difícil, ambos os parceiros, como diz Luhmann, podem achar preferível a não-comunicação ao erro de comunicação.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008


Tróia (José Ames)

O FUTURO DOS SISTEMAS


Les structures nerveuses impliquées dans la régulation du sommeil,

se situent essentiellement à la base du cerveau, dans le tronc cérébral.

http://www.museum-marseille.org/marseille_cerveau_sommeil.htm



"Uma investigação histórica descobre tais afinidades mais rapidamente, ao demonstrar como um sistema existente ou uma semântica consistentemente ordenada e completamente formulada predetermina o seu próprio futuro (mesmo se em princípio deva ser pensado como indeterminado). Isto é mais evidente na história da ciência: dificilmente pode ser puro acaso que as descobertas científicas sejam espoletadas e que subsequentemente se prove serem verdadeiras. A verdade torna-se manifesta dentro do processo."

"Love as Passion" (Niklas Luhmann)


Ocorre-me aquela situação, tão comum mesmo fora do mundo dos cientistas, em que, à volta com um problema, nos entregamos à corrente dos afazeres e, à noite, adormecemos sem pensar mais no assunto, para acordarmos, de manhã, com uma solução.

É também evidente aqui que não foi por acaso que a ideia nos surgiu. O trabalho da vigília como que montou a semântica do problema, e o back office inconsciente apenas a desenvolveu (o sistema predetermina o seu próprio futuro).

terça-feira, 5 de agosto de 2008


"Aleixo" (José Ames)

INTERSTÍCIO


http://www.futura-sciences.com


Quando nos envolvemos numa acção cujas consequências futuras não prevemos, mas que podem ser drásticas, a que é que chamamos realidade?

Ao presente e à cadeia de efeitos que temos diante dos olhos ou a todo o invisível desenvolvimento disso?

Parece-me que a irrealidade é considerarmos o que somos agora, sem o passado e sem o futuro que já pusemos em marcha. Não podemos, então, apreender algo de real sem o tempo.

E o realista é aquele que sabe que apenas vislumbra um interstício entre o passado e o futuro.

O oposto disso é o absolutismo do aqui e agora.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008


S. Lourenço (José Ames)