sábado, 28 de fevereiro de 2009


Canterbury (José Ames)

GODARDISMO

"Sauve qui peut (la vie)" (1980-Jean-Luc Godard)



A ruptura com o passado é a nevrose da época. Godard, marginal do cinema, tem o talento negativo das ideias superficiais e do falso testemunho. A obsessão de romper com o discurso cinematográfico não o impede de se demorar, contudo, nas cenas sexuais, a ponto de haver dois filmes em “Sauve qui peut (la vie)”. O comentário off, por vezes brilhante ( o homem é mais infantil, mas teve menos infância), é uma espécie de viático para fazer passar as imagens a uma coerência estranha. Os seus filmes são rascunhos encaixilhados pela moda e pela confusão intelectual dos tempos. Em “Pierrot”, disse que esta era a civilização do cu, e é isso que não se cansa de dizer, cada vez citando menos o cinema dos outros e mais a literatura (Duras). É o capitalista dum estilo inacabado. O seu mundo é o aborrecimento. A crise duma organização mental, eficaz no domínio da linguagem. Pretender abordar o que aí se diz em termos de realidade é ignorar a natureza deste cinema que responde pela dificuldade da sua leitura e pela subversão formal sistematizada a uma certa procura intelectual. À maneira dos diplomas, dá também a necessária caução a uma sociedade de privilégios. A Paris do dinheiro e do sexo engendra o mito da vitalidade não codificada que torna o secundário o verdadeiramente importante, e põe em xeque a regularidade e a repetição. A ecologia da bicicleta, a paisagem por detrás da fábrica, a Revolução são tratadas com a distância dum olhar desiludido e cúmplice da tentação do grande bordel, que em Fellini tem o mérito de se declarar imaginário e pessoal (?). A irreverência reduz-se ao truque da deformação que o respeito da unidade (ainda assim) impõe para além da função brechtiana ou do efeito de surpresa. O abuso do ralenti é assim como a gaguez dum cinema que só recupera a fala para ilustrar a perversão sadiana (sempre a literatura). A máquina erótica montada no escritório do homem de negócios é a parte discursiva duma apologia da força e da violência factual, desculpadas pela atribuição do desespero ao organizador da cena por parte da vítima funcional. A liberdade, comprometida para sempre com o fracasso da emancipação feminina, é o fantasma que desagrega a sociedade e os seus fundamentos familiares e individuais. Por uma espécie de genocídio cultural, em que os media desempenham um papel preponderante, toda a gente se descobriu dum dia para o outro com direito à sua diferença e a um modelo personalizado de vida, obviamente procurado pela sociedade de consumo; como ser criado pela publicidade, o homem partiu em busca de si mesmo num passado que nunca existiu, atrás dum mundo sem relações de dependência, de herança sentimental e espiritual, tanto como de coacção económica e política. Conduzido nessa deambulação nas trevas por essa fatal figura da modernidade que esconde um corpo de bode sob a graça ousada da mulher. E por que é hoje a liberdade o ácido dissolvente por excelência? Por aquilo mesmo que Comte disse sobre o espírito crítico numa fase de reorganização da sociedade e pela configuração desse espírito com a velocidade da tecnologia electrónica e do princípio do prazer que é a ideia moral e económica da nova sociedade capitalista. O seu consenso.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009


(José Ames)

CERVEJARIA


Beerhall (http://www.sentinelhillarchive.com)


"Não era a sua habitual audiência. Aqui confrontou-se com um clube exclusivo cujos 400-500 membros pertenciam à alta burguesia - muitos deles oficiais de alta patente, funcionários públicos, advogados e homens de negócios. O seu tom foi diferente do que usava nos beerhalls de Munique. No seu discurso de duas horas, não fez uma única menção aos judeus. Estava bem ciente de que as suas tiradas anti-semitas que excitavam as massas no Circus Krone seriam contraproducentes nesta audiência."

"Hubris" (Ian Kershaw)


A dissimulação, a capacidade de constantemente representar uma personagem para o seu público sempre intrigaram aqueles que queriam conhecer o verdadeiro homem.

Mas se Hitler, em grande parte era o medium dos sentimentos da massa e do seu desejo de morte, que alcançava alturas orgasmáticas nessas arengas de duas horas no beerhall, cujo esforço físico se podia medir pelas cinco libras do seu corpo com que o hissope da sua palavra satânica aspergia a multidão (de tal modo que era uma preocupação do serviço de apoio abastecer o púlpito com duas dezenas de garrafas de água), com a realidade da guerra e, sobretudo, com a invasão do leste, quando a sua sorte mudou radicalmente, um outro Hitler emergiu na grande ressaca. O demagogo sem massas, dependente da propaganda do seu ministro do interior para embelezar o desastre.

Este segundo Hitler que passa de objecto de idolatria para o de abominação já não possui realmente o poder. E a paranóia da máquina estatal e da sua engrenagem canibal é a melhor metáfora do cérebro dum homem que por um momento foi a loucura da nação.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009


Atouguia da Baleia (José Ames)

SURPREENDIDA PELO SONO


http://pro.corbis.com/images

"Por que dorme dessa maneira quando a avisei para não se deixar surpreender pelo sono? Como pode dormir numa pose tão imprudente? É inconcebível constatar que as suas damas não lhe fazem companhia. Uma mulher deve estar sempre alerta! Descuidar-se dessa maneira é uma marca de vulgaridade, embora seja outro tanto odioso afectar ares pudibundos, numa postura hierática, como um monge enclausurado, sentado de braços cruzados e dedos entrelaçados, recitando os encantamentos do Imutável."

"O Romance do Genji" (Murasaki Shikibu)


Contudo, To no Chujo, o pai que descobrira recentemente esta filha ilegítima na Província de Omi, está perfeitamente encantado com a sua graça natural.

Mas a "natureza" é precisamente o que tem de ser submetido ao código palaciano. Noutra ocasião, tinha encontrado a jovem "completamente encostada aos estores que formavam uma saliência, numa postura indigna de uma grande dama (...)"

O cinema nipónico tem-nos revelado abundantemente que esta etiqueta e esta extrema contenção dos sentimentos não são um arcaísmo do século X, mas enformam muito da maneira de ser desta nação ainda nos nossos tempos. A palavra é delicadeza. Que o diga o nosso Wenceslau de Moraes.

Sintomaticamente, quando irrompe a violência, não conheço, pelo menos no cinema, reacções mais histéricas e urros e gritos mais guturais, como se fosse próprio da raça um "metabolismo" mais vivo.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009


(José Ames)

OS PRINCÍPIOS


In Hitler's distorted view, these Bavarian children
would have represented racial purity

"A invasão da União Soviética, quando foi lançada muitos anos depois, era para ele - e não apenas para ele - o ponto culminante desta cruzada. Seria um erro sério subestimar a força ideológica de um punhado de ideias centrais de Hitler. Ele não era um simples propagandista ou um 'oportunista sem princípios'. Era na verdade ambas as coisas ao mesmo tempo: um magistral propagandista e um ideólogo. Não há contradição entre as duas."

"Hubris" (Ian Kershaw)


Hitler era o homem certo na altura e no lugar certos para reconduzir a Alemanha no caminho da destruição total.

A sua missão poderia não ter passado dum discurso sem sentido, como tantos outros que fazem sorrir os turistas, em qualquer speakers' corner. Era essa quase a situação, depois do putsch falhado de 1923, enquanto escrevia o "Mein Kampf " na prisão de Landsberg.

Mas veio o crash bolsista de Wall Street, com a sua sucessão de miséria e desespero, e essa missão, a convicção fanática do homem, revelaram ter a força dum íman para a nação desintegrada.

Hitler sentiu toda essa energia concentrada em si e aplicou-a nas obsessões de sempre. O anti-semitismo, por ter uma lógica independente da guerra, punha em causa, como o viu Hannah Arendt, o próprio projecto de dominação, mas não se pode dizer que a subordinação da guerra ao problema da "pureza racial" não fosse um princípio.

É que não basta ter princípios, é preciso que sejam bons princípios.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009


Covilhã (José Ames)

O OPTIMISMO POLÍTICO


Winston Churchill (1874/1965)


"Uma das ideias que eu tinha discutido em "The Poverty" (of Historicism) foi a influência da predição sobre o acontecimento predito. Tinha-lhe chamado "Efeito de Édipo", porque o oráculo representou um papel da maior importância na sequência de acontecimentos que levou ao cumprimento da profecia."

"Unended Quest" (Karl Popper)


É por isso que o optimismo é politicamente preferível ao pessimismo, apesar de parecer querer fechar os olhos à realidade. De resto, quem vê tudo negro, para além de poder ganhar uma úlcera, não conhece melhor o futuro, a não ser neste ponto: é que a predição pessimista, no que de nós depende, tem todas as probabilidades de ser confirmada pelos factos.

Mas há um problema de comunicação a ter em conta. O optimista pode transmitir aos outros a ideia de que a sua atitude é uma mera fachada, de que não há nada por detrás, como nalguns cenários. E, evidentemente, não é por se martelarem as palavras que se comunica a convicção.

A influência dos media na imagem do político optimista pode, além disso, transformar a coragem e a determinação em "intolerável demagogia". Em certas circunstâncias, até "o sangue, suor e lágrimas" pode ser uma mensagem optimista, porque, embora com sacrifícios, se "promete" a vitória.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009


(José Ames)

RECÔNDITA HARMONIA


http://plato-dialogues.org/fr/plato.htm


"Da filosofia, diz-se que ela é amor da sabedoria; e a sabedoria, pensa-se ainda nela em termos de conhecimento. Aquando da publicação do meu livro "Totalité et Infini", em alemão, foi-me pedido um prefácio. Eu disse que aquilo que eu ensino permanece, no fim de contas, muito clássico; repete-se de acordo com Platão que não é a consciência que funda o Bem, mas que é o Bem que apela à consciência. A sabedoria 'é o que o Bem ordena. É em vista do Bem que toda a alma faz aquilo que faz' (A República)."

(Émmanuel Lévinas - Propos recueillis par Joël Doutreleau et Pierre Zalio)


Admite-se mais facilmente que a consciência seja modificada pelo interesse (o "wishful thinking" é disso uma modalidade) do que por uma abstracção maiúscula como o Bem. De mais a mais, sobretudo depois duma certa vulgarização da revolução einsteiniana, estamos todos mais inclinados a dar crédito à ideia de cada um tem a sua verdade do que è imagem platónica do sol. Tornámo-nos fiéis do ponto de vista, e a verdade de um homem vale a de outro.

Platão foi obrigado a simplificar e gostava de ser, muitas vezes, inconclusivo, como se a lógica fosse depressa de mais, ou se, na sua superior pedagogia, achasse que a perfeição não nos educa, por também sermos feitos de terra e não só de ideias.

A situação actual é a dum paganismo sem hierarquia, de partículas, com ídolos como o poder, o dinheiro ou o prazer. É a razão que continua a procurar uma totalidade e uma lei única. Por isso somos todos nostálgicos da ideia do Bem. Talvez, através da discórdia e do aparente individualismo, seja essa a "recôndita harmonia" que leva Platão a dizer que "é em vista do Bem que toda a alma faz aquilo que faz".

domingo, 22 de fevereiro de 2009


Rye (José Ames)

O QUE NÃO SE PODE DIZER


Niels Bohr (1885/1962)


"(...) mesmo quando o fenómeno ultrapassa o domínio das teorias físicas clássicas, a descrição do dispositivo experimental e o relato das observações devem fazer-se na linguagem corrente, convenientemente enriquecida pelos termos técnicos da física. [...] A própria palavra experiência refere-se a uma situação tal que possamos dizer a outros aquilo que fizemos e aquilo que aprendemos."

(Niels Bohr, citado por Florence de Lussy in "Simone Weil - Oeuvres" - Gallimard)


"Toda a diferença entre a posição de Simone Weil, o seu 'realismo' que a obriga a remontar a noções intuitivas e imediatas, e a da física quântica, reside precisamente nesta noção nova de quantum de acção, que é, segundo a etimologia, alogon, 'o que não se pode dizer'. A mecânica quântica começa necessariamente com uma crise de palavras, comenta Cathérine Cherally." (ibidem)

Fala-se aqui de realismo a propósito da posição de Simone Weil, mas a ideia que subjaz é, com Descartes, a de que podemos compreender o mundo através de ideias distintas e evidentes por si mesmas, dado que só um Génio Mau nos poderia enganar quando temos uma certeza dessas.

A concepção weiliana dum acordo entre a estrutura do mundo e a matemática, acordo que inspira, mesmo na ciência moderna, a busca duma teoria que possa explicar tudo é, além disso, evidentemente, platónica.

A teoria da evolução, por exemplo, permite supor que aquele acordo seja aparente, ou exista só até certo limiar que é o da capacidade da nossa própria razão. Esse limiar explica-se por uma necessidade antropológica, sem recurso a um génio tortuoso. O nosso conhecimento do universo é necessariamente especulativo, já que só pode ser "falsificado" pelos avanços microscópicos da nossa experiência.

sábado, 21 de fevereiro de 2009


(José Ames)

A LUZ DA JUSTIÇA



"Uma sociedade aberta (isto é, uma sociedade baseada na ideia de respeito pelas opiniões dissidentes e não pela sua simples tolerância) e uma democracia (isto é, uma forma de governo dedicada à protecção de uma sociedade aberta) não podem florescer se a ciência se tornar posse exclusiva de um conjunto fechado de especialistas."

"O Mito do Contexto" (Karl Popper)


Isto é o que repugna a alguns espíritos, por não verem a ligação lógica. Que a democracia se dedique "à protecção de uma sociedade aberta" e não a um alegado poder do povo.

Não há forma do povo governar directamente. O mais aproximado é que todos, nos limites da lei, possam influenciar o governo. O facto de só alguns utilizarem essa possibilidade não modifica em nada o alcance do princípio. O que é preciso é que essas pessoas não estejam dependentes nem condicionadas pelo governo. O povo não pode senão delegar. Por isso é essencial que a pluralidade que existe no povo se reflicta nas diferenças expressas. É por isso que é fundamental uma escolha esclarecida para o que contribui uma ciência que se pode explicar e compreender (mas há, evidentemente, uma tendência na ciência moderna que pode retirar todo o significado à democracia).

Embora não seja aparente, há uma estreita relação entre a justiça e as decisões esclarecidas. Daí que a liberdade seja uma condição da justiça.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009


Ericeira (José Ames)

A LIBERDADE DO RISO



"Segundo todas as indicações, Hitler foi um soldado empenhado, mais do que simplesmente consciencioso e cumpridor do seu dever, e não lhe faltava coragem física. Os seus superiores tinham-no em alta estima. Os seus camaradas mais próximos, sobretudo os estafetas, respeitavam-no e parece até que gostavam dele, apesar de também os poder irritar e de ser, aos seus olhos, uma espécie de puzzle. A sua incapacidade de rir (sense of fun) tornava-o um alvo fácil para se meterem, de boa mente, com ele. 'Que tal se fôssemos à procura duma Mamsell?' sugeriu um dia um telefonista. 'Eu morria de vergonha se andasse atrás de sexo com uma rapariga francesa!' interjeitou Hitler, provocando uma onda de gargalhadas nos outros. 'Olha para o monge!' um disse. A resposta de Hitler foi: 'Não tendes nenhum sentido de honra germânica?'"

"Hubris" (Ian Kershaw)


Nesses tempos de jovem soldado, em campanha no norte de França, Hitler costumava isolar-se com o seu Schopenauer, habitado já pela ideia de ser uma criatura excepcional. Não sabia ainda qual viria a ser um dia a sua missão, depois de ter encontrado tantas dificuldades para ser o grande artista que almejara ser. Descobriu mais tarde, pelo efeitos nos outros, que "sabia falar". Não para um pequeno grupo, todavia. Fora feito, sim, para dar voz às "massas". Havia qualquer coisa na multidão que ele sabia captar (apesar da imagem de ferocidade, gostava de agradar). A fórmula, porém, não funcionava sem a predisposição das massas e isso era obra da conjuntura política e social. Sem o acordo não havia essa música sinistra. O efeito cómico em Chaplin, no "Grande Ditador", vem da separação dessas realidades complementares.

O que muitas vezes se tem dito sobre o sinal de perigo que representa o não se saber rir e a falta de sentido de humor confirma-se aqui exemplarmente. A dúvida, que pode evitar os passos em falso, é afugentada por um ego fanático e imperialista.

Alguma coisa de bom pode às vezes vir de um homem que se leva demasiado a sério, mas no caso do poder absoluto isso equivale ao desastre.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009


(José Ames)

A BELA ADORMECIDA



"O sono de Endymion" (Girodet)


"Se outrora me tinha exaltado acreditando ver algum mistério no olhar de Albertine, agora só era feliz nos momentos em que desses olhos, dessa face mesma reflectindo como os olhos, tão depressa doce como inabordável, eu conseguia expulsar todo o mistério."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


Entretanto ocorrera o cataclismo gomorreano.

Marcel não podia já acreditar que o mistério fosse rico de promessas que o fizessem feliz a ele. Precisava de estar seguro de que conhecia tudo (o que pensava, os seus projectos) da sua amiga. Como isso é impossível de qualquer ser humano, a sua maior ventura consistia em vê-la adormecida; parecia-lhe então que a possuía mais completamente, "como uma coisa inconsciente e sem resistência da muda natureza". Cada movimento desse corpo entregue ao sono fazia nascer uma nova mulher e até "raças, atavismos, vícios repousavam no seu rosto."

Mas o que tinha tudo isto a ver com Albertine?

Nesta análise admirável é o fetichismo do desejo que se revela, a sua absoluta impessoalidade e por que é que o real é um lugar a que se tem sempre de regressar.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009


Castelo do Queijo (José Ames)

O ESTRANHO AMOR DE SCOBY


Graham Greene (1904/1991)


"Dizem que não se pode amar duas mulheres, mas o que era esta emoção senão amor? Esta faminta absorção daquilo que não iria ver mais? O cabelo grisalhando, a linha dos nervos sobre a face, o corpo engrossando prendiam-no mais do que a beleza dela alguma vez fizera. Não tinha calçado as botas contra os mosquitos e os seus chinelos estavam a pedir remendo. Não é a beleza que amamos, pensou, é o fracasso - o fracasso de não permanecer jovem para sempre, o fracasso dos nervos, o fracasso do corpo. A beleza é como o sucesso: não podemos amá-la por muito tempo."

"The Heart of the Matter" (Graham Greene)


Scoby vai tomar os comprimidos que para sempre o removerão do caminho daqueles que ama. Escondeu o suicídio sob um ataque fulminante há muito anunciado, para que o esquecessem mais depressa. Toda a gente tem de morrer.

Os seus cálculos revelaram-se acertados. Louise aceita o esquálido consolo de Wilson, o polícia que espiava o marido, e Helen, a amante, entrega-se a um Baxter alcoolizado que a assediava desde que chegara à colónia.

Dando razão ao comentário final do padre Rank, Scoby, perdendo-se como católico, na verdade desafiava o único amor que lhe importava. Oferecia a Cristo o fracasso de ter de se condenar para não fazer sofrer.

Mas se o suicídio fosse descoberto, poderia alguma dessas mulheres compreendê-lo?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009


(José Ames)

INQUISIÇÃO



Qual é a culpa do Padre Flynn (Philip Seymour Hoffman), no filme "Doubt"(2008-John Patrick Shanley), que o leva a submeter-se à inquisição da reitora (Meryl Streep)?

No duelo de palavras no seu escritório, ela admite ter alguns pecados graves na consciência. Todos confessados e perdoados. Mas não considera que isso funcione no caso do padre. Ele há-de sempre voltar ao mesmo, porque está na sua natureza.

Não são os actos que estão em causa, mas o pensamento. E este, para o inquisidor, não pode deixar de ocupar o espírito, quando as circunstâncias o proporcionarem. E é isto que condena o padre aos seus próprios olhos. Ele sabe que esse pecado, pelo menos, não o poderá evitar, porque se alimenta do que o faz viver, tão íntimo como o seu corpo, tão natural como ceder ao seu próprio peso.

A teologia deu-lhe um nome. Diabo é o que se atravessa (do Grego Διάβολος , lançar através de ), mas que não vem doutro lado senão de nós mesmos.

Nada parece mais anacrónico nos tempos que correm do que esta problemática. É verdade que a história (que tem um final quase ridículo, com a inquisidora por sua vez atacada pelo Tentador: - e se Flynn estivesse inocente?) se passa nos ingénuos anos sessenta.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009


Lisboa (José Ames)

ESSE OBSCURO OBJECTO DO DESEJO

"Esse Obscuro Objecto do Desejo" (1977-Luis Buñuel)



O dinheiro isola o burguês da sociedade. Mateo é ingénuo com as mulheres e com a vida. Antes da explosão com que termina o filme, vemo-lo contemplando a imagem tranquilizadora duma mulher no labor da agulha. A música que sucede o altifalante ao noticiário do terrorismo inspira-lhe uma carícia na mão de Conchita. Esse momento de paz parece dar razão à moral do privilegiado, e no entanto… A mesma pulsão de morte se esconde na subversão do amor pelo desejo e no atentado arbitrário do bombista. A Mateo apenas interessa esse corpo que continuamente lhe foge, porque não está todo nas suas mãos e a introdução lhe é recusada. O dinheiro que por todos os lados prende a mulher desejada é desfeiteado no seu poder de negar a posse simbólica ao ambicioso. Haverá melhor ilustração da ideia filosófica do escravo tornado senhor pela virtude? Conchita concede tudo menos o direito do outro poder dizer: - és minha. Dionísio, o tirano, também não podia ter o espírito de Platão, embora o pudesse pôr a ferros. É o que nos elucida talvez melhor sobre as relações do poder e da liberdade. Dizer não, tem como condição a força de vencer a morte e salvar a alma. O escravo dá o corpo mas não o que pensa, e as confissões arrancadas sob tortura são a tentativa de obter a posse absoluta. Quando o carrasco leva a vítima a perder o respeito por si própria conseguiu os seus intentos. E é a mesma palavra honra que nos diz ser o que vulgarmente se chama sexo uma questão moral. O prazer narcisista só pode trocar-se por um valor que é tanto maior quanto mais ideal. O amor que todo o ser humano tem a si mesmo revê-se no que a mulher só é por metonímia. Conchita, a imigrante que não sabe fazer nada, que é expulsa por um simples recado, tem o poder de arruinar o rico Mateo, explorando as suas obsessões primárias. O direito de pernada roubava o desejo do senhor e deixava a noiva livre, porque todo o prazer depende do valor nele investido pela privação e pela luta. A sociedade, por outro lado, não podia ter deixado de encontrar uma segunda virgindade, mais preciosa do que a sacrificada debaixo do nobre. Por isso o amador procura o consentimento e a prova de que o amor é digno do amor-próprio. Mas a sevilhana sabe como fazer render o desejo e tornar-se um objecto à medida do dinheiro do personagem de Fernando Rey e do seu vazio espiritual. Enquanto não se dá toda, tudo lhe é permitido para aumentar o seu próprio preço, com a condição de se manter inviolada e, portanto, acreditando a ficção do destino amoroso. A tortura de Mateo quando descobre o strip-tease (mas repara: sem cama, diz ela) ou assiste à cópula de Morenito ( simulada, ele não gosta de mulheres) é um paradoxo da virtude que mostra assim a força da sua ideia e a sua superioridade sobre o joguete da paixão. Porém, é uma hipótese de alma que Conchita permite ao velho seduzido, que não é tolo nem fraco, mas a criança inventada pelo dinheiro.

domingo, 15 de fevereiro de 2009


(José Ames)

DE ZANGÕES E DE DEMÓNIOS


Socrates and his Daemon by Eugène Delacroix
Ceilings of the Library, French National Assembly, Paris.


"É a este nível que se torna explicável que, como foi muitas vezes notado, a própria consciência moral deixasse de funcionar sob as condições de uma organização política totalitária, e que isso se verificasse em boa medida sem que interviesse o medo do castigo. Nenhum homem que não possa tornar efectivo o diálogo consigo próprio, quer dizer nenhum homem privado da solidão que todas as formas de pensamento requerem, poderia conservar a integridade da sua consciência moral."

"A Promessa da Política" (Hannah Arendt)


Se a consciência moral for aquela espécie de demónio de que falava Sócrates - ele próprio se definia como um zangão espicaçando o espírito dos outros, a tendência para fugir-lhe deve ser a coisa mais natural do mundo. Daí os atractivos do re-ligare, sob qualquer forma que seja, da comunhão ou da simples distracção do espírito em qualquer corrente de produção de conteúdos.

A organização totalitária, no limite, podia ser completamente interiorizada, tornando quase simbólicas as formas de coacção. Podemos encontrar na formação militar espartana o modelo dessa sociedade.

O espírito crítico nasceu com o primeiro fora do passo. Com a separação acusadora do colectivo.

sábado, 14 de fevereiro de 2009


Benavente-Espanha (José Ames)

DE BOM A BURRO



"O príncipe Miuchkine desconcerta. Ninguém se priva de reconhecer, na sua falta de jeito, o doente ou o ingénuo que não sabe de que terra é. Apesar disso, a sua simples presença desencadeia revelações e explicações em cascata, 'nada tinha acontecido e no entanto tudo se passava como se qualquer coisa de muito importante tivesse acontecido'. Uma embriaguez é contagiosa, a moral não menos do que a alcoólica."

"La Bêtise" (André Glucksmann)


O príncipe é, evidentemente, a personagem de "O Idiota", de Dostoievski.

Toda a bondade que transparece ao longo do romance se encontra desfigurada por aquele título. Mas não sabemos se essa é apenas a imagem que os homens ditos normais têm duma pessoa que se aproxima da santidade. De qualquer modo, Glucksmann não parece ver qualquer ironia no emprego da palavra pelo autor russo.

A candura (ou a estupidez) de Miuchkine tem o condão de transformar a tensão de cada um consigo próprio numa venturosa aquiescência. Não é que a inteligência seja metida "debaixo do alqueire", mas antes uma completa ausência de vaidade, incluindo a da inteligência: "(...) quantas coisas belas não vemos a cada passo, cuja beleza o homem mais degradado não pode deixar de sentir? Olhai as crianças, olhai a aurora do Criador, olhai a erva que cresce, olhai os olhos que vos contemplam e que vos amam."

Que fenómeno desarmante é o que se observa nas pessoas influenciadas pela presença do "Idiota"?

Miuchkine não é um optimista por ideologia como Candide. Ele , realmente, a Criação.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009


(José Ames)

O MUNDO DOS PROJÉCTEIS


A conquista do México por Hernán Cortés



"(...) os agentes da globalização nunca agem como habitantes na sua propriedade. Agem como pessoas desenfreadas que não encontram já em sítio nenhum motivos para respeitar uma ordem doméstica, seja ela qual for. Na medida em que abandonam a sua casa, os conquistadores atravessam o espaço indiferente sem terem penetrado no "caminho", no sentido budista do termo. Quando saem da casa comum que constitui o espaço interior do mundo na velha Europa, dão a impressão de serem projécteis que se desfazem de todas as suas ligações para se lançarem numa não-esfera e não-proximidade gerais, constituídas por recursos - conduzidos apenas pelos seus mandatos e apetites e mantidos em forma pelo fitness da crueldade."

"Palácio de Cristal" (Peter Sloterdijk)


Nós, que "demos novos mundos ao mundo", saberemos do que é que se está a falar? Porque a má consciência é completamente desajustada, ela é apenas o subproduto da cultura como olhar sobre o passado. Os "projécteis" vão mais longe e acertam melhor, neste caso, se a ingenuidade e a ilusão prevalecerem.

Mas o Brasil, por exemplo, nasceu da conversão desses projécteis a uma nova "ordem doméstica".

É quando a velocidade das comunicações cria um espaço instantâneo que se perde o caminho de casa. A brutalidade, se atendermos às consequências - pois os novos predadores são incapazes de matar uma mosca -, é apenas o sintoma da perda da realidade, ou melhor, duma parte do sistema ter migrado para o não-real.

O não-real é tudo o que há de mais lógico e, não tendo já o homem no seu centro, na linha duma evolução agora secular, simplesmente reclama outros órgãos e outros sentidos.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009


Braga (José Ames)

A GENEROSIDADE DE ANDREIA


"Caridade" (Giotto)


"Isso não impedia que Andreia pudesse ser melhor em relação a mim, que me amasse mais - e tive muitas vezes a prova disso - do que pessoas mais amáveis. Mas o menor ar de felicidade que se mostrasse, se não fosse causada por ela, produzia em si uma impressão nervosa, desagradável como o ruído duma porta que se fecha com demasiada força."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


Sempre me interessou esta passagem. O género de pessoa como a jovem amiga de Marcel aqui retratada é mais comum do que parece. E não se pode, cabalmente, chamar de egoísta a este comportamento. Andreia gostava realmente de fazer felizes os outros e não havia nada que mais fizesse, a ela própria, irradiar felicidade. Porém, se estivesse em nós mesmos a causa de nos sentirmos felizes, por termos feito determinada leitura ou termos ouvido um certo trecho de música, por exemplo, ou se fosse uma terceira pessoa a causa disso, o rosto de Andreia logo se fechava, como se fosse motivo de censura a bondade alheia.

De certa maneira, ela vivia para os outros, mas com uma generosidade interessada, como um santo que fizesse o bem para alcançar o Céu e, no fundo, desconhecendo o significado da palavra caridade.

É, portanto, um egoísmo paradoxal. Andreia é para si o centro do mundo, sem deixar de ser generosa, mas a sua generosidade precisava dos outros à sua volta, como satélites.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009


(José Ames)

A POLÍCIA NO COMITÉ CENTRAL


Roman Malinovski


"Quando, durante a guerra, Malinovski foi capturado pelos alemães, Lenine mandou-lhe roupas; após a Revolução, contudo, confrontado coma as provas, mudou de opinião: 'Que grande porco. Um pelotão de fuzilamento ainda é bom de mais para ele.' Malinovski foi julgado em Novembro de 1918, tendo sido, ironicamente, acusado pelo marido de Elena Rozmirovitch, Nikolai Krilenko, num tribunal chefiado pela própria Elena. Malinovski foi executado."

"O Jovem Estaline" (Simon Sebag)


Malinovski era um dos agentes da Okhrana infiltrado no próprio comité central bolchevique, de modo que a polícia do czar era informada a par e passo da movimentação dos revolucionários e pôde atirar com o famoso Djugachvili (Staline) para os gelos da Sibéria.

O mais interessante é que este dandy conseguiu granjear a total confiança das suas vítimas. Lenine, como se viu, não era o menos ingénuo. Num momento em que já era conhecida de todos a traição de Malinovski, ainda contemporizava, achando que ele tinha servido melhor o partido do que a polícia.

O autor atribui a este caso o agravamento da paranóia conspirativa que tomou conta de Staline, uma vez no poder. Se Malinovski era um traidor por que não qualquer um dos outros?

Mas se uma "águia" como Oulianov e um homem tão naturalmente suspicaz como Staline puderam ser assim enganados é a prova de que no ambiente rarefeito do poder ( e a clandestinidade só agrava essa situação) não há defesa contra o erro, por mais grave que seja. E é quando é mais preciso falar em nome da verdade.

O poder é a tentação no deserto e o diabo fala a língua do bom senso.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009


Ledesma (José Ames)

A VOZ DA MONTANHA


"Spiritual Voices" (1995-Aleksandr Sokurov)


Junto à fronteira com o Afeganistão, um grupo de soldados russos entrega-se à rotina do seu posto de vigia, no grande silêncio das montanhas.

Em voz off, o diário de guerra, nostálgico e indolente, comenta as idas e vindas no espaço confinado daqueles homens. A câmara parece divagar, como um insecto na paisagem árida, poisando aqui e ali, descansadamente: um soldado estirado ao sol, um outro que dorme, um pássaro no arame sobre os camuflados que param um momento por baixo, e até o olho de um cão que reflecte a magra festa da passagem de ano.

Claro que o tempo não é o tempo real. A lentidão, a quase ausência de montagem, quando se foi "educado" pelo cinema americano, parece excessiva. Mas é como o romance-catedral com um imenso átrio que afasta os pouco corajosos.

É esse tempo vagaroso que nos permite um certo modo de estar naquele lugar e de conhecer aqueles jovem lacónicos no seu desterro. Os silêncios fazem falar a alma. Dou comigo a pensar que os russos são naturalmente tristes. Não se passa nada e ninguém quer falar. Ou é a montanha que é a grande voz. Há uma frase do diário que sugere isso: - quanto mais se sobe, menos valor tem a vida e mais se ama a montanha.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009


(José Ames)

O CAMPO DE FORÇAS


Robert Musil (1880/1942)


"Um pouco como um ensaio, na sucessão dos seus parágrafos, considera numerosos aspectos de um objecto sem querer apreendê-lo no seu conjunto (porque um objecto apreendido no seu conjunto perde de imediato a sua extensão e transforma-se em conceito), ele pensava poder considerar e tratar o mundo, tal como a sua própria vida, com maior justeza do que de outra maneira. O valor duma acção ou duma qualidade, a sua essência e a sua natureza mesmas pareciam-lhe depender das circunstâncias que as rodeavam, dos fins que elas serviam, numa palavra, do conjunto variável de que faziam parte."

"Der Mann ohne Eigenschafen" (Robert Musil)


Ulrich, a personagem de Musil, chegou assim à conclusão de que "todos os acontecimentos morais tinham lugar no interior de um campo de forças cuja constelação os carregava de sentido e continha o bem e o mal como um átomo contém as suas possibilidades de combinações químicas."

Se os nossos actos só podem receber um sentido final, a partir da consideração do "campo de forças" de que fazem parte, isso equivale a uma espécie de inocência da acção, porque nunca teremos o conjunto debaixo do nosso olhar.

A moral no "sentido ordinário", pelo contrário, diz-nos quando fazemos o bem ou o mal, independentemente de conhecermos ou não o "conjunto".

É pois um sentimento que interpreta a complexidade como se ela fosse um conceito.

domingo, 8 de fevereiro de 2009


Lisboa (José Ames)

O BRAÇO DA ALAVANCA


Aquiles e Heitor


"Um uso moderado da força, o único que permitiria escapar à engrenagem, exigiria uma virtude mais do que humana, tão rara quanto uma constante dignidade na fraqueza. De resto, a moderação também não é sem perigo; porque o prestígio, que constitui a força em mais de três quartos, é feito antes de tudo da soberba indiferença do forte pelos fracos, indiferença tão contagiosa que ela se comunica àqueles que são o seu objecto. Mas normalmente não é um pensamento político que aconselha o excesso. É a tentação do excesso que é quase irresistível."

"L'Iliade ou le poème de la force" (Simone Weil)


Simone exemplifica como essa tentação, em Homero, passa de herói para herói e dum campo para o outro. Não há quem, no momento da força, da sobrepujança, conserve o espírito de moderação, para no dia seguinte se entregar ao desespero, como Heitor diante do filho de Peleu: "Imploro-te, pela tua vida, pelos teus joelhos, pelos teus pais."

A engrenagem de que fala Simone Weil submete o indivíduo, que não é mais do que coisa entre coisas, força dentro da força. Se é o instinto do poder ou a intuição política que levam o forte a tratar o fraco como coisa, não é na psicologia que se deve procurar a explicação, mas na mecânica da situação.

O homem, deliberadamente, mas sem conhecer tudo o que está implícito nessa posição, nomeadamente, o desenvolvimento da tirania a partir dos lugares respectivos e dos movimentos necessários de cada um - como se existisse uma lógica espacial, coloca-se no braço da alavanca e a partir daí já não se pode falar mais em liberdade.

Como já Platão sabia, o tirano é o menos livre dos homens.

sábado, 7 de fevereiro de 2009


(José Ames)

A MÚSICA ATERRADORA




"Eu não tinha assistido, pessoalmente, ao começo do incêndio do Palácio da Justiça, mas tinha sabido disso, antes de ver as chamas, pela mudança de tom da massa. As pessoas gritavam umas às outras o que se tinha passado, mas eu não compreendia, eram expressões de alegria, sem violência, nem voracidade, as expressões da libertação. O fogo criava a coesão: sentia-se o fogo, a sua presença era esmagadora e, mesmo onde ele não se podia ver, estava na cabeça de todos: a sua força de atracção e a da massa eram uma e a mesma coisa."

"Le Flambeau dans l'oreille" (Elias Canetti)


Canetti descreve os acontecimentos de 15 de Julho de 1927, em Viena, donde resultou a morte de 90 pessoas, abatidas pela polícia. Acontecimentos que deram lugar a trinta anos de tentativas goradas para os explicar e que a obra "Masse et Puissance" resume, porque "nada é mais misterioso, mais incompreensível do que a massa."

Era "o vago, e não os seus detalhes" que era preciso compreender. O autor compara o fenómeno à música, uma música empolgante que nos transporta, mas uma música aterradora. Será essa experiência que os adeptos vão procurar, sem o saberem, aos estádios ou os fiéis aos grandes rallies religiosos? E poder-se-á falar em sentimento ou em pensamento comum?

Deverá a sociedade proteger-se desses estados de precipitação da massa (que "não precisa dum Führer" para se formarem, ao contrário do que muitas vezes se pensa), encontrando-lhe exutórios para os conter, controlar e canalizar?

Entre o entusiasmo colectivo e o estado de massa haverá, talvez, apenas uma diferença de grau, mas o suficiente para fusionar toda a estrutura social.

Canetti admirava-se, quando a maré desceu, que a cidade ainda existisse.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009


Évora (José Ames)

O "ARROTO DE STALINE"


Blast-furnace complex No 5 "Severyanka" at Cherepovets


"A presença de Estaline como exilado voltaria a assombrar esta região (Solvitchegodsk). Em 1940, deu ordem para a construção de uma enorme fábrica de aço em Cherepovets, porque se lembrava deste local do seu exílio em Solvitchegodsk, apesar de aquele ser totalmente inadequado: os mais próximos depósitos de minério de ferro e carvão encontravam-se a mais de 1000 milhas de distância. Mas os seus conselheiros estavam assustados de mais para lhe dizer. A Segunda Guerra Mundial atrasou a construção, mas esta começou em 1949. Devido à sua localização inconveniente, ainda é conhecida como "o Arroto de Estaline".

"O Jovem Estaline" (Simon de Montefiore)


É por isso que as ditaduras, com o tempo, se destroem a si mesmas. Falta ao poder absoluto o "instinto de conservação", que deixa de ser accionado quando os sinais que lhe vêm da realidade têm de atravessar o vácuo do medo.

Staline que, na sua juventude, tudo sacrificou à causa revolucionária, não recuando perante o assassinato e a chantagem do terror, não passou a ser outro homem, nem mudou de direcção quando se apoderou das alavancas do Estado. Passou só a ter um machado maior, continuando a pensar só pela sua cabeça e a tudo subordinar ao "Império Soviético Mundial". Para grande infelicidade do seu povo, não teve quem lhe fizesse frente, porque "o lugar da oposição era na cadeia", se não pudesse ser no outro mundo. Quando já não tinha que saltar pela janela ou recorrer aos seus mil disfarces para escapar aos espiões da Okhrana, o sucesso condenou-o a empregar os seus inúmeros talentos (não era um homem grosseiro, como certa propaganda gosta de o apresentar) no reforço do poder. E todo o poder que se torna a razão de si mesmo é suicida.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009


(José Ames)

UM FUNERAL


Mahatma Gandhi (1869 – 1948)


Quando morrer ficarei mais perto de ti. O corpo é um obstáculo.” Disse o Mahatma a uma das suas fiéis. E eu não posso deixar de pensar nisso ao ver a urna daquele que foi um soldado do partido e deixou dezasseis anos da sua vida no Tarrafal. Que o homem que já não é mereça aquela homenagem é a melhor refutação do materialismo. Por nada deste mundo o partido abandonaria o cerimonial do enterro dos heróis, porque o heroísmo é o seu mito de origem. As flores encheram a capela mortuária dum vermelho sem mácula. O corpo pertencia menos à família do que à organização, e os gritos da viúva foram discretamente evacuados pelos mais novos que se portaram com a dignidade da hora. No rosto deles lia-se o juramento de continuar a luta. De vez em quando, flutua uma alegria a despropósito entre os camaradas que não se viam há muito. O operário que fez campismo comigo em Mira vai deixar a fábrica para se tornar funcionário. Este amigo de ideias abruptas, que gosta de bater com o punho, vai continuar a geração da dureza e da intolerância. Mas eu não tenho o direito de julgar a barriga dum homem que trocou um emprego estável e bem remunerado pela febre das reuniões e a amizade desnaturada do partido. O carro fúnebre manteve o andamento grave conveniente, mas da fila alguns impacientes escaparam para esperar à porta do cemitério, onde corria a brisa suave. Uma carrinha com altifalantes encostou-se às grades. Em cima, reconheci um dos camaradas mais devotados que cheguei a ir ver ao hospital, quando foi baleado em Custóias. Esmago o cinismo na areia do caminho entre as campas. O morto aguarda a terra envolvido na bandeira da foice e do martelo. Um intelectual discursa. Insurge-se contra os órgãos de informação que não quiseram publicar a biografia do morto. Mesmo naquele momento solene, em que as palavras parecem sacerdotais e o espírito é recolhido pela comunidade dos fiéis, é preciso inventar a política e o combate. Como se a alma deste modesto militante, a quem a doença e a democracia tinham habituado a uma espécie de reforma, pudesse não ser justificada pela simples poesia do adeus. Falou também um velho companheiro do Tarrafal, com o coração e sem procurar efeitos. Disse esta coisa reveladora: prosseguir era necessário para ver se de uma vez por todas livramos a nossa pátria da injustiça e do fascismo. Talvez não fossem exactamente estas as palavras. Mas fica-nos a ideia de que se luta pelo repouso, o que é o pensamento dum velho, e no fundo é toda a religião. Sabemos que o espírito é perpétua oposição e que a ideia da paz lhe é consubstancial. As revoluções têm necessariamente de ser traídas.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009


Lamas de Mouro (José Ames)

A SAÍDA DO SER



"Verificamos, portanto, no prazer um abandono, uma perda de si, um êxtase, outros tantos sinais que descrevem a promessa de evasão que a sua essência contém. Longe de aparecer como estado passivo, o prazer abre na satisfação da necessidade uma dimensão em que o mal-estar entrevê a evasão."

"De l'évasion" (Emmanuel Lévinas)


Não é do ser que sentimos a nostalgia, pois, nas palavras de Lévinas, o prazer é "um processo de saída do ser", uma evasão enganadora que nunca cumpre as suas promessas.

Há então uma evasão que as cumpre e que vai ao encontro da tradição religiosa. É a ideia grega da prisão da alma.

O prazer não é aqui, aparentemente, objecto da moral e, de qualquer modo, surge como o sinal duma necessidade metafísica (a de ultrapassar os limites do ser). Mas é a via do "senso comum", ou do cavernícola platónico.

Mas pode-se perguntar se este desajuste entre o prazer e a necessidade não é apenas uma questão filosófica.

Claro que a evasão faz sentido (há toda uma indústria a isso dedicada), mas compreender que não se "sai para lado nenhum" também. Que os limites do ser resultam sobretudo da nossa fraqueza e da nossa distracção.