domingo, 31 de julho de 2011

Alcácer do Sal (José Ames)

O QUE VEM DEPOIS, PRIMEIRO

Orador romano


“O hysteron proteron é um dispositivo retórico no qual a primeira palavra-chave duma ideia se refere a qualquer coisa que vem temporariamente depois da segunda palavra-chave. O objectivo é chamar a atenção para a ideia mais importante, colocando-a em primeiro lugar.” (Wikipedia)


Um discurso preparado permite estas antecipações para captar a atenção daquele que ouve. Na vida corrente, isso não é necessário. O nosso interesse pode ser até o de nunca mencionar o mais importante, sem que a outra pessoa deixe de ter isso presente. E o que são as “segundas intenções” senão sobrepor o menos importante ao que queremos dizer?

O orador, em princípio, não nos diz nada de novo. Se pretender inovar ou apelar à nossa liberdade de pensamento, o mais provável é que não seja entendido. Um discurso partidário, por exemplo,  deve ser o mais “esperado” possível para que se opere no corpo da audiência uma espécie de fusão. Esse fenómeno é a coisa que mais se aproxima do unicórnio chamado “pensamento colectivo”, sendo uma pobre caricatura do pensamento e perigosa, ainda por cima, por ser uma força manobrável.

O que ora em nome do partido precisa muitas vezes de empregar o “hysteron proteron” para marcar o ritmo e concentrar os espíritos no mais importante.

sábado, 30 de julho de 2011

(José Ames)

OS ESTÁBULOS DO FUTURO




Ao almoço, num restaurante de Ovar, uma família numerosa. Várias conversas, à vez, se entretêm. O avô, ternurento, aperta o queixo do neto, sem que este distraia a sua atenção do jogo que segue com a irmãzita numa pequena consola. Que flagrante da nova família esquizoidal! 

Assim, a irrupção do pequeno aparelho, em que os parentes não vêem manifestamente um concorrente e, muito menos um inimigo, com que se acomodam, preparados pela tv-dependência, como, talvez, um direito das crianças à sua privacidade (ao seu mundo) e às suas inclinações naturais, divide irreversivelmente a célula social básica, com o diálogo entre as pessoas ganhando a tonalidade lívida dum comportamento do jurássico e o cérebro dos herdeiros “ligado” à grande indústria do “entertainment”. 

Estão ali, sem estar. Não aprendem nada com os mais velhos, que apenas os aborrecem quando interrompem o seu transe.

Preparam-se, quiçá, para o mundo adulto da tecnologia, para os empregos, para um futuro que, sem piedade, eliminará os tecnologicamente “atrasados”. Mas, como bárbaros, prontos a transformar as basílicas em estábulos.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Elvas (José Ames)

A LINGUAGEM-HAMBURGER

http://apenas24horas.blogspot.com


A tendência para a "fast-language" é, a par de outras acelerações, típica da vida moderna. A que distância ficam já o telégrafo e a estenografia! 

Por exemplo, haveria que estudar, como se dum povo da floresta amazónica se tratasse, a linguagem dos SMS e os seus efeitos sobre, digamos, os sentimentos.

Será impunemente que se rompe com a sintaxe e a ortografia? 

O que resulta daí para o amor (talvez o tema da maior parte das mensagens)?

Uma falta de gramática não prometerá uma falta à palavra?

quinta-feira, 28 de julho de 2011

(José Ames)

PAINÉIS PUBLICITÁRIOS

http://irresistibleparis.blogspot.com

“Os segredos do Sul são
painéis publicitários no Norte.”

“Uma Viagem à Índia” (Gonçalo Tavares)



A publicidade não pode acabar com o segredo. Sempre que nos invade com novas revelações e exclusivos, na modalidade “à la carte”, a verdade retrai-se e esconde-se um pouco mais.

A maior parte das vezes é um caminho para a infância que as imagens exploram, para nos deixarem com a mesma sede. O imaginário é a mina destes investimentos. Na origem, está a infusão da tia Léonide, ou a gravura dum livro que se perdeu no sótão.

A exploração comercial desse mundo é um jogo aos dados medido pelos “vouchers” emitidos. Não há como chegar ao fundo desse imaginário. Mas um implante da infância e a vontade de acreditar nisso podem levar muito longe e são um segundo esquecimento.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Madrid (José Ames)

CREONTE




“Creonte - Não pertence a cidade ao seu chefe?
 Hémon - Nesse caso, também poderias reinar sozinho num país deserto.”


(“Antígona” de Sófocles, na tradução de Simone Weil)



Todo o poder tem um momento como este, que podemos chamar de orgulho. O orgulhoso é sempre um usurpador.

Mas não podemos dizer que se trate duma paixão sempre negativa para o Estado. No bom uso das paixões se encontrarão muitos exemplos do desvio útil desta energia. Se não fossem os ambiciosos, os políticos ficar-nos-iam ainda mais caros sem podermos esperar mais deles do que de funcionários.

É por isso que o povo precisa dos ambiciosos, sem poder nunca confiar neles. Porque todos acabam por pensar como Creonte.

Os Creontes da finança, por exemplo, na hora actual, comportam-se como se pudessem fazer lucros num país deserto…

terça-feira, 26 de julho de 2011

(José Ames)

A ARISTOCRACIA DA ARTE

Franz Liszt (1811/1886)


“Ainda não experimentei o piano (passavelmente gasto, dizem-me) da Academia, não tendo, habitualmente, nenhuma pressa em mostrar o meu talento tal como ele é, o que se torna muitas vezes um fardo muito desagradável para mim, dada a exigência tácita ou confessada que muitas pessoas se imaginam no direito de me impor que as divirta a propósito de tudo e de nada. Ora, na minha idade e com a minha disposição de espírito, não é sempre uma coisa agradável, e, aliás, não vejo que vantagem pode haver em fazer música para uma “bonne fille” demasiado complacente. O quer que se diga, a arte é uma aristocracia que não é fácil frequentar.”


“Correspondance” (Franz Liszt, citado por Frédéric Martinez)




É o Liszt sempre com preocupações místicas, para quem a música já não chega e que em Fevereiro de 1860 comunica ao gão-duque Charles-Alexandre a sua resolução de se “divorciar do público”. Está cansado de dar vida a uma imagem desabitada.

Uma crise como essa deve atingir, numa certa altura, todos os artistas que representam para um público. Mas no seu caso, não é a velhice que o impede de continuar a fazer o papel do galã, ou como, em “Singing in the rain”, o sonoro que revela uma voz impossível. Liszt está no auge da sua arte, mas sente-se usado pelo direito que os outros se arrogam de esperar dele novas proezas. Sente a necessidade de se separar do “equilibrista” e de levar a decepção aos outros. Já não tem nada a provar e a “aristocracia da arte” exige-lhe demasiado esforço.

A posteridade é que não está pelos ajustes e considera exclusivamente o artista. Tudo o resto, que ele pensava ser maior do que isso, parece aos nossos olhos uma veleidade, senão um outro tipo de pose.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Abbaye de Fontevraud (José Ames)

A MORTE DE BLANCHOT

Maurice Blanchot (1907/2003)


“Se é verdade que, para um certo Freud, o nosso inconsciente não poderia representar-se a nossa própria morte, isso significa no máximo que morrer é irrepresentável, não somente porque morrer não tem presente, mas porque não tem lugar, seja no tempo, seja na temporalidade do tempo.”

(Maurice Blanchot, citado por Jacques Derrida)



Derrida, na morte de Blanchot: “podemos dizer hoje que ele morre sem desaparecer, mas também que desaparece sem morrer. A sua morte pode permanecer impensável, ela já lhe tinha acontecido. Entre a ficção literária e o irrecusável testemunho, o instante da minha morte libera a sua narração e a sua inconcebível temporalidade.”

O que é irrepresentável na nossa morte, talvez seja apenas a diferença específica, porque, no essencial, ela impõe-se como a linguagem que já cá estava quando comunicamos e continua depois de nós deixarmos de estar. Pode-se representar uma condição? Seria como saltar sobre a própria sombra.

Blanchot pensou constantemente a morte e a sua própria morte. Esse tema que alimentava o seu pensamento era, de facto, uma fonte de escrita e de vida.

De algo que não se pode representar nasceram religiões e filosofias, de tal modo que talvez perdêssemos o mundo se viéssemos um dia a “dominar” a morte.

domingo, 24 de julho de 2011

(José Ames)

A PURGA



“Foi a guerra à hipocrisia que transformou a ditadura de Robespierre em reinado do Terror, e a característica deste período continua a ser a autodepuração dos dirigentes.”


(Hannah Arendt)



Essa característica pode ver-se, por exemplo, no filme de Koji Wakamatsu “United Red Army” (2007), em que os estudantes, ao mesmo tempo para se defenderem das infiltrações da polícia e se emularem uns aos outros na dedicação exclusiva à causa revolucionária, foram “canibalizados” pela ideia da pureza, ao ponto da própria acção se ter tornado um pretexto para a purga permanente.

O pensamento colectivo é sempre outra coisa que o pensar. Que um líder, pela certeza que consegue transmitir, pela intransigência, muitas vezes apenas verbal, possa transformar-se no único sujeito e na única vontade justifica que nalguns casos se tenha falado em poder hipnótico. Mas o que está por explicar é o papel das ideias nas operações deste poder. Há na adesão dos “hipnotizados” o mesmo tipo de entrega e de “liberação” de quem, finalmente, encontrou o absoluto que procurava… Como se para alguns de nós a consciência fosse um fardo por de mais pesado e fosse urgente “depositá-la” nas mãos do primeiro de confiança.