sexta-feira, 30 de setembro de 2011

(José Ames)

TRANSMIGRAÇÃO




"Mas aqueles que obedeceram às regras da moralidade convencional, e, por natureza e hábito, praticaram as virtudes sociais e cívicas, passarão outra vez sob a forma daquelas espécies sociais e simpáticas tais como as abelhas, as vespas ou as formigas."


 Platão (citado por Ernst Cassirer)



A metempsicose, ou transmigração das almas, faz ainda algum sentido?

Este pensamento significa a repetição das paixões na vida seguinte, segundo o esquema apresentado por Platão na história de Er, o Panfílio. Graças ao esquecimento provocado pela água do Letes, as almas precipitam-se sobre o fardo a que corresponde o "animal" que melhor resume a sua paixão anterior.

Isto leva-nos a pensar que, tal como a ideia da Graça no Cristianismo, só uma intervenção divina nos pode afastar do nosso destino e fazer com que deixemos de penar no mesmo círculo inferior.

Como ninguém pode mudar radicalmente sem uma espécie de morte, a conversão religiosa (em que, naquela religião, precisamente "se morre para o mundo"), dá-nos talvez o melhor exemplo da metempsicose como um processo "nesta" vida, o que tornaria o mito mais do que actual.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Leça da Palmeira (José Ames)

DIREITO É IGUALDADE



"Com os diabos, sabemos bem que tudo é explicável e racional nalgum sentido. Um automóvel que vira é racional para o espectador que só quer compreender. Mas o viajante que está dentro gostaria duma viatura racional, não de um acidente racional. E, melhor ainda, será que vai contra a mecânica o fabricante de automóveis que pretende construir um melhor automóvel?"


"
“Éléments d'une doctrine radicale" (Alain)




A discussão nasceu a propósito do direito que, nas palavras do filósofo, não é mais do que a igualdade.

Ora, todas as sociedades conhecidas foram, em maior ou menor grau, desiguais. Mas mesmo que a igualdade seja um conceito que não existe na prática em nenhum lugar e que as diferenças sociais e a justiça possível em cada momento histórico possam ser explicadas pelas circunstâncias e pela história de cada sociedade, o facto do direito "virar na curva" torna o seu aperfeiçoamento um objectivo legítimo. Também isto não é ir contra o direito, mas ser racional de um modo útil para a humanidade.

O problema é que o direito (a igualdade) actualmente existente pode ser justificado pela razão, quando o julgamos como espectadores ou como refractários a uma mudança que pode pôr em causa o nosso conforto.

E "infelizmente, a ciência é também reaccionária quando lhe dão dez mil francos por ano." (ibidem) Compreende-se o anacronismo do número se tivermos em conta que o texto foi escrito em 1910. Mas nada mudou, entretanto, quanto ao essencial.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

(José Ames)

MEIA-NOITE VIRTUAL




Que tem de mal um divertimento? Um aspirante à grande literatura e admirador de Paris dos anos 20, com os seus cometas americanos Fitzgerald, Hemingway ou T.S. Eliot, à meia-noite, toma o mesmo misterioso carro amarelo para se encontrar com os génios do tempo. Dali e Buñuel compõem o ramalhete, e o jazz, com Josephine Baker.

Parece que Woody foi generosamente financiado pela França e o filme não pode ter desapontado os seus investidores. O turismo, tal como o conhecemos, pode estar a precisar de um novo fôlego. Paris é, sem dúvida, uma das mais belas cidades do mundo, mas os seus monumentos, os seus museus e as suas perspectivas começam a colar-se demasiado ao postal e ao "déjà vu". Com a recriação duma época gloriosa (e é só escolher, na história do país), abre-se um novo segmento do turismo que se aproxima muito do virtual. As possibilidades de viajar e de encontrar os vultos preferidos do passado são, assim, infinitas.

Não há quase nada de pessoal no filme, nem o famoso humor que não se pode transplantar. Nem a cena final do "cortem-lhe a cabeça" ou a moral de que temos é de viver no nosso tempo, o salva. Quanto ao resto, já tínhamos adivinhado as preferências literárias do realizador.

Não admira que ele  se tenha declarado disponível para filmar em qualquer cidade. É só aplicar a fórmula. O turismo agradece.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Lisboa (José Ames)

CRESCEI E MULTIPLICAI-VOS




"A maior parte dos homens de hoje compreendeu que as matemáticas se enfiaram em todas as funções da nossa vida."


"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)



Sem as matemáticas não poderíamos simplesmente viver, dado o crescimento da humanidade e a complexidade dos problemas que tem de resolver só para prover à "administração das coisas".

O défice em matemática é, assim,  uma certeza de menos futuro, ou de drástica simplificação da nossa organização.

A complexidade dos sistemas humanos tem como consequência, talvez inevitável, que todas as outras "linguagens" ganhem em retórica o que perderam em efectividade. E, com isto, nada será como dantes. O humanismo é a primeira vítima dessa reciclagem.

Vamos ao encontro de mais tecnologia e de mais necessidade de abstracção. O "crescei e multiplicai-vos" tinha uma medida que perdemos ou que nunca conhecemos.


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

(José Ames)

OS NOVOS LUDDISTAS




"Será você um luddista? Sabe de alguém que o seja? Alguém que esteja farto da tecnologia e resista ao seu domínio sobre as nossas vidas quotidianas, mesmo se de um modo discreto, evitando os computadores e os jogos de vídeo, o vaivém diário do automóvel, ou o telemóvel?"


"Against Technology" (Steven E. Jones)



Ned Ludd foi um operário têxtil inglês do início do século XIX que destruiu o seu tear, (segundo uns) num ataque de fúria, tornando-se  o símbolo duma luta emocional e desesperada contra o progresso do maquinismo.

Assim postas as coisas, poder-se-ia dizer que as gerações mais velhas são luddistas à sua maneira. E nas empresas todos aqueles que "resistem à mudança" são potenciais luddistas, tudo dependendo de estarem em condições de ceder a um ataque de fúria.

Mas, nos nossos tempos, está também muito espalhado o medo da tecnologia se desenvolver contra nós. Começando por ser um "prolongamento dos nossos órgãos", como diria McLuhan, a bem-vinda prótese artificial para nos fazer descolar do planeta ou de condições tidas como humilhantes, teme-se que sejamos nós um dia a prótese da nossa criação. Isto, claro, já não é apenas emoção, embora toda uma vertente do cinema moderno explore esse medo. E começou por ser literário um dos mitos mais reveladores: Frankenstein.

Marx não teve qualquer simpatia pelos "coup de tête" luddistas. Ele julgava ter a chave do problema da dominação tecnológica. O poder, ao substituir o objectivo do lucro pelo da satisfação das necessidades sociais, encontraria o limite natural e racional para o desenvolvimento da tecnologia.

E, como desejo, este programa é pacífico. Só se torna funesto quando o poder toma os desejos por realidade. Nessa altura, os ataques de fúria são muito menos mortíferos.

domingo, 25 de setembro de 2011

Lisboa (José Ames)

JOHANN SEBASTIAN





"Sem Bach, a teologia seria desprovida de objecto, a Criação fictícia, o nada peremptório. Se há alguém que deva tudo a Bach, é realmente Deus. O que são todas as melodias ao pé daquela que sufoca em nós a dupla impossibilidade de viver e de morrer?"


"Fragments" (Cioran)




A "boutade" de Cioran não deixa de ser certeira no essencial. O sentimento cria o seu objecto e a música vai, no sublime, mais longe do que as outras artes ou até a própria poesia, que é, no entanto,  a "reserva de oiro" das grandes religiões.

Já chamaram a um pintor (Giotto) o quinto evangelista, pois que nos seus frescos podemos "ver" o Evangelho, com um olhar puro, antes de todo o artifício e de toda a retórica. Mas Bach, que regressou do Letes depois do seu próprio evangelista (Mendelssohn) ter espalhado a palavra, é a epifania do divino e o milagre da "ressurreição", ao nosso alcance, quando todo o corpo é ouvido.

Além disso, não foi ele o mais humilde servidor da sua arte, a ponto de toda a vaidade lhe ser estranha e a música parecer destilada apenas do trabalho, desse trabalho, em que Simone Weil, por exemplo, via uma espécie de santidade?

sábado, 24 de setembro de 2011

(José Ames)



O "SHIFT"

http://elizabethrossmx.blogspot.com


"Ela tinha traçado uma linha entre o que se poderia chamar o seu impudor profissional e o seu pudor privado, como uma médica ou uma assistente social; era sensível como um esfolado a uma palavra mais pessoal, mas falava impessoalmente do que quer que fosse (...)"


"O Homem Sem Qualidades" ( Robert Musil)



Existe uma espécie de "entre parêntesis" do nosso pensamento quando exercemos determinadas funções. Continuamos os mesmos, mas procedemos como se obedecêssemos a um outro princípio. O princípio burocrático, por exemplo. Conheci chefes inacessíveis, senão mesmo intratáveis, que, fora da empresa, eram excelentes pessoas. A função tomava conta deles, a ponto de ficarem irreconhecíveis. Quanto maior o poder, mais esse desfasamento é visível. Não nos devemos deixar enganar pela aparente bonomia dos poderosos. Há sempre um certo grau de desprezo que se pode esconder atrás da afabilidade. O conde de Guermantes, em Proust, que parecia o mais altivo e orgulhoso dos dois, não chegava à altura dos preconceitos e do sentimento de superioridade do seu primo, o príncipe, cujos modos exteriores eram o mais democráticos possível.

O "parêntesis" pode revestir-se de características esquizóides no caso do clandestino ou do conspirador. São, na verdade, "compartimentos estanques".

O comportamento de Diotima podia chocar o seu amigo aristocrata, Leinsdorf, pela sua "liberdade" e pela "indulgência" com que falava das paixões humanas. Mas Diotima não fazia mais do que mudar de registo, premindo o "shift" adequado.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Almada (José Ames)

VOX CLAMANTIS IN DESERTO

by Andrea Costakazawa


"E o que tem graça é fundar-se nos elogios que dão os religiosos de uma religião e cidade aos seus correligionários, como se estes houvessem dizer mal uns dos outros, principalmente quando compõem para exaltar a religião 'como fazem expressamente os nossos e, entre eles, o jesuíta Franco que só conta maravilhas e milagres dos seus'".

(Verney, carta de 1/1/1753)




Nem os correligionários, nem os indiferentes. Dizer mal de tudo pode ser um desporto nacional, mas ainda assim precisamos de alguém de quem dizer mal de tudo nos aproxime. O grupo predispõe a uma espécie de crítica superficial e inútil para qualquer fim que não seja o reforço do próprio grupo.

Mesmo quando nos esforçamos por ser justos e imparciais raramente nos dispomos a fazer nosso o ponto de vista do outro, nem que seja em tese, para o podermos compreender.

Quanto mais reconfortante não é blindarmos a nossa razão com as paredes do colectivo e termos, assim, preto no branco, o sinal de que são os outros que são facciosos!

Tire-se, porém, o cimento social e a própria razão da crítica se perde. Os que já não querem saber da política, por exemplo, também não sabem dizer mal.

Quem quiser ouvir a verdade deverá procurar o homem sem família e sem amigos, nem correligionários...

Por isso se diz desse homem que é "a voz que clama no deserto".

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

(José Ames)

ENZIMAS E CORDELINHOS

Lord Acton (1834-1902)



“Para com as forças emergentes do dia, para a ideia que a poderia ter salvo, a ideia dum governo unindo as melhores propriedades da monarquia às melhores propriedades da república, ela não tinha simpatia nem compreensão. De qualquer modo, não estava casada com as máximas que fizeram a grandeza da sua raça, e a inimizade dos príncipes e dos emigrados salvou-a das paixões do velho regime. Condé falou dela como uma democrata.”

“Lectures on the French Revolution” (Lord Acton)




O espectro das opiniões políticas muda constantemente, mas é raro que as diferenças deixem de ser mantidas. Condé, um homem da nata aristocrática, considera Maria Antonieta uma inimiga política, uma democrata, nem mais nem menos.

O regime pode mudar de mãos e até de cor, mas, sob outras designações, observamos a mesma distância, como se as ideias fossem um simples pretexto para uma diferença mais fundamental.

É tarefa do sociólogo fazer a destrinça e mostrar como o sistema cria, até certo ponto, as posições “vazias”. O historiador, esse, deve representar-nos o drama, por assim dizer, no primeiro grau. É tão importante conhecer o enfatuamento romano dos jacobinos (a "enzima" que, nada tendo de material, põe o processo em andamento, como diz Musil), como as verdadeiras forças agindo por detrás das personagens “antigas”.