sábado, 31 de outubro de 2009


(José Ames)

LACONISMO


http://brightminds.files.wordpress.com



"O constante enfoque no conhecimento técnico dos protestatários levava a que alguns dos oradores temessem arriscar qualquer opinião, se não estivessem completamente informados sob o ponto de vista técnico."

"Avoiding politics" (Nina Eliasoph)


A preocupação destes americanos de Buffalo parece abonar a seu favor. Não se deve falar do que não se sabe. E isso é coisa que nunca impediu um europeu politizado de emitir a sua opinião. O problema é que, realmente, o eleitor, ou o cidadão normal não possuem todos os dados necessários e acabam por decidir mais ou menos por imitação ou por coerência "histórica". Ora, a complexificação da política vem agravar esta incompetência (tantas vezes partilhada pelos técnicos especializados a que recorrem os governos, cada vez com mais frequência). O laconismo dos americanos em relação à política e às questões que requerem mais e mais informação vai, por isso, ser imitado.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009


(José Ames)

DECISÃO POLÍTICA



"A administração não é o governo. É o que se mostra nas nossas fábricas ou nas nossas casas de comércio; porque é uma grande verdade que um mau negócio pode ser muito bem administrado. Posso elogiar a ordem, o trabalho, a probidade; por esta clareza de tudo, posso ver muito bem que me arruíno e mesmo porquê; mas não espereis que este sábio administrador faça retirada, corte pontes, queime hangares. O administrador administra a doença, não a cura. É tarefa de Alexandre cortar a direito, ou então de César."

"Propos d'Économique" (Alain)


Muito bem. À administração não compete correr riscos, mas pode ser ela o maior dos riscos ao prolongar uma situação insustentável.

Curiosamente, o ideal de governo imaginado por Lenine, na esteira de Marx, é a perfeita administração das coisas. E a tradição americana desejaria que o governo federal governasse o menos possível.

Mas se o governo deve ser capaz de "cortar o nó górdio" ou de "atravessar o Rubicão", se necessário, ninguém o autoriza a correr riscos inúteis, porque as consequências caem sobretudo em cima dos governados. Como alguma imprevisibilidade é inerente ao risco, o melhor governo é aquele que tem sorte na sua decisão, suprindo a falta de coragem dos seus críticos.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009


Palermo (José Ames)

ANTES DO OCIDENTE




"Tu vives então como um mendigo das migalhas deixadas pelos Gregos. O que diz a isso o teu orgulho? Se encontras neles o que tu próprio pensaste, nunca esqueças que foi isso que, de um modo ou doutro, encontrou o seu caminho até ti. É realmente dos Gregos que isso te vem. O teu espírito é o seu brinquedo. Tu és um caniço sob o vento deles. Evoca, por quanto tempo te agradar, os assaltos furiosos dos Bárbaros, não é menos preciso que o teu pensamento regresse ao vento claro, ao vento vivificante e salutar dos Gregos."

"Le Territoire de l'homme" (Elias Canetti)


Porquê este privilégio dos Gregos? Não herdaram eles também, daqui e dali, o tesouro que nos legaram? Porque adoptámos a sua língua na nomenclatura científica?

Pela primeira vez, com eles, o espírito apareceu enquanto tal. Não a alma, a espécie de imagem que nos sobrevive que os egípcios e outros povos já conheciam. Mas o pensamento do pensamento.

Nessa aurora, a coisificação do espírito era ainda desconhecida. Daí essa ideia que voltar aos Gregos é o banho lustral por excelência.

Simone Weil diz que perdemos algures no passado a sua tradição científica, em que religião, filosofia e ciência eram partes de um todo. Hoje, a ciência é sobretudo poder (sobre a natureza, a economia, a política, etc.). Mas para que quereríamos hoje uma ciência contemplativa?

A verdade é que os Gregos ainda não eram o Ocidente.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009


(José Ames)

IDEIAS POR MÍMICA



"Mas eis a maneira como entendo que devamos disputar. Não quero disputas pro e contra, como fazem esses tolos sofistas da cidade e de outros lados; não quero, igualmente, disputar à maneira dos académicos por declamação, nem por números também, como fazia Pitágoras e como quis fazer Pico de La Mirandola em Roma; mas quero disputar por sinais somente, sem falar, porque as matérias são tão árduas que as palavras humanas não seriam suficientes para as explicar a meu gosto."

"Pantagruel" (Rabelais)


Thaumasto é um letrado vindo de Inglaterra para arguir contra Pantagruel sobre "problemas insolúveis, tanto de magia, alquimia, cabala, geomancia, astrologia, como de filosofia", mas é vencido pelo discípulo daquele, Panúrgio, através da simples mímica, em que as mãos se abrem ou se fecham e tocam esta ou aquela parte do corpo. "O Inglês não se atemorizou por isso e, levantando as duas mãos no ar, manteve-as de tal forma que os três dedos maiores apertavam a mão e passava os pulsos entre o dedo indicador e o médio, ficando os dedos auriculares na sua extensão; assim os apresentou a Panúrgio, depois acoplou-os de modo a que o pulso direito tocasse o esquerdo e o dedo mindinho esquerdo tocasse o direito."

Como é que desta muda argumentação, que os espectadores achavam tanto mais profunda quanto menos compreendiam, resultou uma conclusão tão peremptória a favor de Panúrgio é coisa que nunca saberemos e para a qual o autor se estava nas tintas.

Deve chegar-nos que este poder do ridículo atinja todo o género de ocultistas, esotéricos e sorbonícolas.

Um passo mais e saberemos ver em muitos dos nossos debates públicos, por detrás da linguagem a que por etiqueta política as pessoas se obrigam, a mesma mímica incompreensível que só se decide pelo absurdo.

terça-feira, 27 de outubro de 2009


Portinho da Arrábida (José Ames)

O DELATOR!



"The informant" (2009-Steven Soderbergh) é um filme muito estimulante, em que nada parece o que é. Matt Damon é Mark Whitacre, um alto quadro duma grande empresa agro-alimentar que, movido pelo seu sentido cívico, resolve denunciar a prática de fixação de preços, em prejuízo dos consumidores, seguida pela multinacional. Mas ao mesmo tempo que se presta à espionagem para recolher as provas necessárias ao FBI, continua a beneficiar de avultadas "luvas" e às prerrogativas ligadas ao seu lugar e a fugir desavergonhadamente ao fisco.

Além disso, o nosso homem sente-se compelido a mentir a toda a gente não só sobre esses rendimentos como sobre a sua história familiar, para desespero dos seus amigos e dos seus advogados. Mas não escapa à prisão, mesmo se o Fisco, graças a ele, recuperou 500 milhões de dólares da multinacional.

A dupla personalidade é a ideia que logo nos ocorre para explicar este bizarro comportamento. Mas a personagem é tão natural e convincente que, por outro lado, nos parece demasiado familiar, e o filme ganha um alcance que vai muito para lá do caso psiquiátrico.

Porque a motivação cívica de Mark é sincera e os riscos que corre para a sua carreira e as pressões de toda a ordem são reais. Ele, porém, não vê a necessidade de mudar nada na sua vida, não sente qualquer "compulsão" para a coerência, para além de alimentar a esperança de substituir os "criminosos" na direcção da empresa. E é isso que o aproxima tanto de casos (nada psiquiátricos) que todos conhecemos. Por exemplo, o do moralista que gosta de arengar sobre os privilégios dos outros, tirando o seu suplemento de superioridade moral de alegados prejuízos sofridos por causa da sua "frontalidade" e honestidade, sem por isso tirar as consequências quanto ao seu próprio "status quo".

segunda-feira, 26 de outubro de 2009


(José Ames)

O NÓS DO POLÍTICO


Niklas Luhmann (1927/1998)


"A falta de uma concepção de unidade "trinitária" (um povo, um território e um poder) serve ao mesmo tempo de cimento ao "Estado de direito"; pode ver-se aí um índice escondido do facto que o conceito de unidade da autodescrição do sistema político deve ser tomado de empréstimo de outro sistema funcional, a saber, o sistema do direito. Ele encontra-se com efeito no conceito de pessoa jurídica. O conceito de política, a partir daí, vê-se sempre encorajado a destacar-se do conceito de Estado, sem que nem por isso se saiba por que direcção deva enveredar."

"Politique et compléxité" (Niklas Luhmann)



O sistema político é por de mais complexo para se conhecer a si mesmo (na autodescrição), mas qualquer coisa como um conhecimento pode ser alcançada, por via indirecta, deduzindo, por exemplo, a sua unidade das relações que estabelece com o subsistema do Estado, cuja semântica é conhecida.

Quando Luís XIV disse: "O Estado sou eu.", na verdade, deu uma machadada no direito divino. O Estado diferenciado do sistema político talvez tenha começado aí.

Luhmann diz que no século XVIII o Estado era ainda uma coisa concreta, "imediatamente acessível" sob a forma de relações públicas opondo-se às relações privadas, "enquanto que depois de 1800 se fala mais em cidadania, da sujeição ao poder, etc."

Mas qual será, no final de contas, a racionalidade das decisões políticas se temos de nos inspirar num avatar abstractizante da sociedade como é o sistema do direito?

"A definição funcional da política como a realização de decisões constringentes e colectivas para o sistema societal deveria aparecer como a única proposição sólida; mas ela permanecerá controvertida na medida em que será compreendida em parte dum modo demasiado amplo e em parte demasiado estreitamente." (ibidem)

domingo, 25 de outubro de 2009


Porto (José Ames)

CATACUMBAS





A catacumba está fora da visão e por isso o poder pode ser surpreendido. O olho triangular não domina esse labirinto dos mortos. O seu dardo certeiro precisa de luz e da distância suficiente para ler. Quem tivesse de percorrer o enigma para o compreender seria um guia de cegos e nunca um déspota esclarecido. Faltava-lhe a percepção simultânea e a acção fulminante. Um grande espaço exige uma grande velocidade para abolir o tempo. Porque o oprimido é aquele que não tem tempo para responder. Bastava que o desafio existisse por um momento para pôr fim ao reino absoluto do Único. Os pequenos territórios estagnam porque o rebelde encontra um déspota indolente e fraco. O ar do império forma redemoinhos inconsequentes no enclave sem horizontes. Se é verdade que a primeira necessidade política é a segurança – mesmo o herói precisa de confiar quando dorme -, homem nenhum pode iludir o poder absoluto sem sacrifício do sono. E aí está a grande esperança de toda a servidão: que a maior força precisa de se tornar em fraqueza e contar com a fidelidade e o medo dos outros. É como se Gulliver mudasse do país dos anões para o país dos gigantes durante o sono. O despotismo interessa-se pelos vivos. Só é preciso pôr sentinelas junto dos mortos quando eles ressuscitam. A região dos mortos que tem espaço para novos inquilinos e para o trabalho dos que transportam e arrumam os despojos, quando não para a contemplação dos túmulos, é o lugar ideal para a conspiração. A cidade dos jacentes, do último destino de toda a acção comunica esse silêncio hostil a toda a vaidade revolucionária e a perspectiva do tempo mais solene que relativiza todas as coisas. As catacumbas fizeram os mártires iluminados do circo. O olhar que perscruta a superfície tem medo que o olhem debaixo de terra. Por isso é mais seguro o cemitério ao ar livre ou a cripta gerida pelos sacerdotes. A noite continua a ser a metáfora mais geral do inimigo da ordem. O mundo da imaginação revela-se para muitos a saída para a rebelião individual. Ou a selva do guerrilheiro, a poesia. Mas o déspota aprendeu pelo seu lado a controlar os esgotos e o crocodilo de cada sanita. A espalhar os mortos pela cidade, a recensear. A polícia desceu ao reino da clandestinidade e trouxe a notícia fatal para a tranquilidade do tirano: as catacumbas estão em toda a parte. O homem, no seu íntimo, despreza, se é livre, o medo de quem oprime que é a principal causa do seu excesso. Rebelde no espírito, não é a ordem que sonha destruir. Mas o pensamento da servidão e da miséria.

Comecemos pela coragem de pensar sozinhos, quando se pode pensar. A humanidade não nos força.

sábado, 24 de outubro de 2009


(José Ames)

O HOMEM DE HEISENBERG


Werner Heisenberg (1901/1976)


"O astronauta lançado no espaço extra-terrestre e prisioneiro duma cápsula repleta de instrumentos, onde cada encontro físico real com o ambiente significaria uma morte imediata, pode bem ser considerado como a simbólica incarnação do homem de Heisenberg – um homem para o qual será tanto menos possível encontrar alguma vez outra coisa que não ele próprio e as coisas feita pelo homem quanto com mais ardor se empenhou em eliminar todas as considerações antropocêntricas nos seus encontros com o mundo não humano que o rodeia."

"La crise de la culture" (Hannah Arendt)


Para Heisenberg, de acordo com o seu princípio de incerteza, "o homem perdeu a objectividade do mundo natural": "nós decidimos, pela nossa selecção o tipo de observação empregue, quais os aspectos da natureza a determinar e quais os aspectos que serão deixados na sombra".

Já soubemos tudo o que importava, mesmo se deixávamos a maior parte no segredo do "Pai celeste". Será que isso mudou e que aquilo que nunca viremos a saber alguma vez nos fará falta?

Se o conhecimento for uma resultante dos nossos problemas, e sendo eles cada vez mais complexos, mais planetários, quanto mais não seja porque crescemos em número, haverá todo um continente teórico, puramente especulativo, que funcionará como os mitos funcionaram para a ciência. Entre esses mitos, o mais persistente é o de que estamos a ir ao encontro do "desconhecido" (contra a ideia de Heisenberg).

sexta-feira, 23 de outubro de 2009


Ponte de Lima

DIÁLOGO DE CULTURAS


Umberto Eco


"Mas a verdadeira lição que devemos tirar da antropologia cultural é a de que temos de adoptar critérios se quisermos dizer que uma cultura é superior a outra. (…) Não basta meramente descrevê-la (como fazem os antropólogos, temos também de afirmar um sistema de valores que é indispensável. (…) o problema dos critérios é um problema de categorias contemporâneas, não é um problema histórico."

"Reason in the age of terrorism" (Umberto Eco)


Um antropólogo famoso descreveu o comportamento de uma tribo da Polinésia diante de um ecrã. O olhar dos "espectadores" foi atraído por uns galináceos que passavam no canto da tela, e foi tudo o que viram da projecção. Esta descrição é também uma avaliação: aqueles selvagens não souberam dirigir o olhar na direcção que consideramos "certa". Portanto, temos aqui um critério implícito. Podemos estar conscientes de tudo o que envolve uma simples descrição?

Quando Eco diz que precisamos de critérios para julgar refere-se, sem dúvida, ao processo da consciência e a algo que se pode discutir.

O problema é que não está tudo "em cima da mesa" quando entramos num debate de culturas.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009


(José Ames)

A MÁXIMA DO CARDEAL


Triple Portrait de Richelieu (Philippe de Champaigne)


"Richelieu, que tinha a clareza de inteligência tão frequente nessa época, definiu em termos luminosos esta diferença entre moral e política, à volta da qual se semeou depois tanta confusão. Ele disse, mais ou menos: Devemos precaver-nos de aplicar as mesmas regras à salvação do Estado e à salvação da alma; porque a salvação das almas se opera no outro mundo, enquanto que a dos Estados só se opera neste."

"L'Enracinement" (Simone Weil)


Ora aí está uma máxima de homem de Estado que nenhum particular, se for cristão, deveria adoptar. Porque equivale a dizer que nada do que façamos neste mundo pode influenciar a salvação ou a perda da nossa alma, o que é um pouco calvinista (só pela graça e não pelas obras seremos salvos).

Por outro lado, a salvação do Estado, que é sempre neste mundo, pode justificar os maiores crimes que nem assim a moral os poderá julgar porque se trata exclusivamente de política.

Aquela máxima podia ainda ser interpretada de outra maneira, se entendêssemos, por exemplo, que por se operar no outro mundo, isto é, na eternidade, a salvação não deixa de se merecer neste mundo. Mas, assim, a política só ficaria isenta da moral por ser efémera.

Ao tornar a centralização do poder e o prestígio da França nos seus grandes objectivos, o cardeal Richelieu incorreu, algumas vezes, no desagrado da Igreja, como quando apoiou os protestantes suíços ou fez uma aliança com os Suecos, contra as ambições dos Habsburgos. Neste caso, escolheu o poder da França contra o poder da Igreja Católica, e nunca se tratou da salvação da sua alma. A não ser que a glória de Luís XIII (e a sua própria) engrandecessem a de Deus…

quarta-feira, 21 de outubro de 2009


Mora (José Ames)

A RELIGIÃO CIVIL


The Declaration of Independence


"Os feriados americanos, tal como o "Thanksgiving" e o "Fourth of July", podem incorporar uma "religião civil", unindo os Americanos, dando-lhes a conhecer o que são e celebrando o seu modo de ser um povo (Bellah 1967). Mas, na prática, a maneira dos grupos recreativos celebrarem estes – e todos os outros – feriados revelou uma "religião civil" cujo objecto de veneração era o próprio consumismo. Comparem-se as celebrações de Buffalo com incarnações mais antigas dos mesmos feriados. No Orange County, Califórnia, no fim dos anos 1880, por exemplo, alguns homens proeminentes do lugar ter-se-iam levantado nas celebrações do 4 de Julho para ler a Declaração de Independência (Hansen e Ryan 1991). Toda a cidade assistiria à parada – preparada com a "prata da casa" – e as celebrações eram como uma de Anaheim, em 1885, que celebraram os marchantes como "cidadãos" e membros de organizações cívicas."

"Avoiding politics" (Nina Eliasoph)


É admirável que ainda em 1880, naquelas circunstâncias, se pudesse ler a Declaração de Independência, cem anos depois dos acontecimentos. Sabemos, entre nós, como já hoje, pouco mais de trinta anos passados, os ideais de Abril parecem, à maioria dos eleitores, pelo menos, ingénuos. Talvez a luta política, tal como a vivemos, seja responsável por um desgaste mais rápido das palavras. O certo é que a celebração do consumismo, por ocasião do que deveria ser um ritual cívico já não distingue os dois lados do Atlântico.

terça-feira, 20 de outubro de 2009


(José Ames)

PANÚRGIO E OS DECOTES



"Muito mais, perdi eu com o processo – E que processo podes tu ter (dizia eu), tu não tens terra nem casa. . Meu amigo (disse ele), as donzelas desta cidade arranjaram, por instigação do diabo do inferno, uma espécie de corpete ou de cachecol alto que lhes escondia tão bem os seios que não se lhes podia meter a mão em cima, porque a fenda daqueles a tinham posto por detrás e era completamente fechado pela frente, coisa com que os pobres amantes, dolentes, contemplativos, não estavam muito contentes. Uma bela terça-feira apresentei requerimento ao Tribunal, constituindo-me parte contra aquelas donzelas, e mostrando o grande empenho que tinha no assunto protestei que, com a mesma razão, eu faria coser a braguilha das minhas calças no traseiro, se o Tribunal não o ordenasse. Em resumo, as donzelas formaram sindicato, mostraram os seus fundamentos e passaram procuração para defesa da sua causa; mas eu prossegui com tanta firmeza que, por decisão do Tribunal, foi dito que os cachecóis subidos não se usariam mais, a não ser que fossem fendidos um pouco à frente. Mas custou-me muito."

"Pantagruel" (Rabelais)


Panúrgio conta ao seu amigo Pantagruel o processo que teve em Paris, por causa dos decotes, no que podia ser um exemplo de privatização indevida de um bem público.

As companheiras de Lisístrata, em Aristófanes, faziam uma greve sexual contra a guerra intestina que enfraquecia os Gregos, mas as donzelas de Panúrgio não tinham motivo mais forte do que os caprichos da moda (os corpetes abertos, com Carlos V, foram substituídos pelos fechados e subidos com Francisco I).

Talvez que isto tenha alguma coisa a ver com a moda das silhuetas anorécticas…

segunda-feira, 19 de outubro de 2009


Portalegre (José Ames)

ERROS NOSSOS



http://idd.fba.up.pt/roadtowonderland


"Nós procuramos nas obras dos pensadores antigos as passagens que, pouco a pouco, moldaram a nossa visão do mundo. Deploramos a maior parte das suas ideias, as que estavam erradas. Que há de mais estéril do que este género de leitura? O que me interessa mais nos autores antigos são justamente as ideias erradas. Elas poderiam conter os gérmenes daquilo que mais nos faz falta e nos faria sair do terrível impasse que é a nossa visão moderna do mundo."

"Le territoire de l'homme" (Elias Canetti)


Os erros podem ser mais instrutivos do que as ideias certas e acabadas. Quando abordamos uma verdade, nada sabemos ainda de como se chegou a ela e de que maneira e quantas vezes errou e teve que recomeçar aquele que a descobriu, e, assim, ficamos quase tão pobres como antes. Sabemos talvez alguma coisa sobre os objectos do "terceiro mundo", como lhes chama Popper, que são o produto da mente, mas ficamos na completa ignorância do caminho percorrido e, numa palavra, do modo como somos feitos.

A escola que explicasse os erros do passado formaria melhor os espíritos e ajudar-nos-ia a reconhecer os erros do presente.

Quanta à conclusão de Canetti, será assim tão evidente que a nossa visão do mundo é o resultado de más escolhas?

domingo, 18 de outubro de 2009


(José Ames)

ANTI-PASCALIANA


Blaise Pascal (1623/1662)


"Ele desconhece de todo essa oposição, tão grave e tão mal definida, que deveria, três séculos depois dele, denunciar, entre o espírito de finura (finesse) e o de geometria, um homem inteiramente insensível às artes que não podia imaginar esta junção delicada, mas natural, de dons distintos; que pensava que a pintura é vaidade, que a verdadeira eloquência faz troça da eloquência; que nos embarca numa aposta onde afunda toda a finura e toda a geometria; e que tendo trocado a sua nova lâmpada por uma velha, se perde a coser papéis aos bolsos, quando é a hora de dar à França a glória do cálculo do infinito…"

"Introduction à la méthode de Léonard de Vinci" (Paul Valéry)


Pascal tinha razão em distinguir os dois espíritos. Mas o mesmo homem pode possuir ambos e ser sensível, em diversos graus, a um ou a outro. É o que quer dizer pensar com a cabeça ou com o coração. Um homem inteiramente cerebral seria uma espécie de monstro, e não faltam os falsos exemplos na história, por desconhecimento. Mas é justo considerá-lo cerebral por comparação com alguém mais intuitivo.

Valéry diz que não havia revelações para Leonardo, mas só problemas: "Um abismo fá-lo-ia pensar numa ponte." Talvez o mais relevante em Da Vinci fosse, de facto, o engenheiro, mas a que problema responde a sua pintura? Poderemos distinguir o seu gosto pela experimentação (que nos deixou obras tão precárias como a Ceia de Santa Maria delle Grazie) da ideia que transforma em pintura? Podemos imaginá-lo como um supremo artífice, senhor de todos os seus recursos, mas só inspirado pela ideia de experimentar?

O célebre sorriso da obra-prima do Louvre será como o Gato de Cheshire, um sorriso que aparece e desaparece, um sorriso sem corpo, emblema de que não há nenhuma psicologia por detrás, mas o vazio da perfeição?

sábado, 17 de outubro de 2009


S. Pedro do Estoril (José Ames)

DESIGUALDADES



"A igualdade presente na esfera pública é, necessariamente, uma igualdade de desiguais que precisam de ser 'igualados' sob certos aspectos e por motivos específicos. Assim, o factor igualizador não provém da natureza humana, mas de fora, tal como o dinheiro – para retomar o exemplo de Aristóteles – é necessário como factor externo para igualizar as actividades desiguais do médico e do agricultor. A igualdade política é, portanto, o oposto da igualdade de todos perante a morte que, como destino comum aos homens, decorre da condição humana ou da igualdade perante Deus -, pelo menos na versão cristã, na qual deparamos com uma igual pecabilidade inerente à natureza humana."


"A Condição Humana" (Hannah Arendt)



A História é esclarecedora sobre o facto dos homens não darem, ao longo dos tempos, o mesmo valor à igualdade na esfera pública. Isso, por um lado, deve-se, sem dúvida, à interpenetração do sagrado e do profano que fazia com que as diferenças mundanas fossem desvalorizadas perante a ideia, por exemplo, de que somos todos "filhos de Deus". Por maiores que fossem as desigualdades sociais e os desníveis de poder, a visão religiosa era suficientemente utópica e intemporal para que a lei comum que todos rege na vida e na morte prevalecesse. Mas quando a cortina desceu sobre o transcendente as desigualdades apareceram desamparadas no mundo político. Por isso se pode dizer que a ideia da igualdade é filha da Revolução, quando os homens, pela primeira vez, conceberam o sonho de que são senhores do seu próprio destino.


Arendt diz também que "do ponto de vista do mundo e da esfera pública, a vida e a morte e tudo o que comprova a uniformidade são experiências não-mundanas, anti-políticas e verdadeiramente transcendentes", o que nos leva a interrogar-nos sobre se a própria política, tal como a entendemos hoje, não nasceu (ou renasceu), também, com a Revolução.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009


(José Ames)

PEREGRINAÇÃO



No final da "Peregrinação", Fernão Mendes Pinto conta como, estando na enfermaria da prisão à espera que lhe cortassem os polegares em cumprimento do resto da sua sentença, "os procuradores dos pobres apresentaram, então, recurso para a Mesa da Consciência, chamada Bafo do Criador de Todas as Coisas, com sede em Pequim", e alcançou a liberdade com os seus companheiros.

Bafo é a palavra adequada para significar a transcendência que não pára de influenciar a vida. Como sopro, espírito, alma. Mas ao mesmo tempo tem a marca duma cultura que diviniza alguns homens e reduz à indignidade a grande massa dos outros.

Um tribunal chamado Bafo do Criador é sem dúvida um grande progresso comparado com o total arbítrio dos poderosos.

O nosso mais famoso aventureiro encara as suas desventuras, em primeiro lugar, como merecidas, pecador como era aos seus próprios olhos e, depois, como desígnio indiscutível da Sorte que, apesar de tudo, julgava que o favorecia. Daí talvez a incredulidade dos seus leitores.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009


Águeda (José Ames)

TEASING


http://media.mlgpro.com


"A ausência de conversação coerente deixava a conversa 'normal' confusa, deixava pouco claro o que poderia acontecer no contexto do grupo para além da provocação (teasing). Deixava a maior parte dos membros sem saber os factos básicos acerca uns dos outros – o que é que cada um fazia como modo de vida, se tinham alguma vez estado casados, a idade que tinham, os seus apelidos, por exemplo."

"Avoiding politics" (Nina Eliasoph)


O convívio destes grupos, em Buffalo, passa por certos rituais (bailes, lotarias, jogos) que lhes dão uma aparência de identidade. Mas quando as pessoas se encontram numa situação em que seria normal falarem sentem-se obrigadas a seguir um certo número de regras que previnem o envolvimento pessoal, a conversa séria e, bem entendido, a política. Eliasoph observou que aqueles que emitem verdadeiras opiniões são mal vistos e que um período mais longo se arrisca a ser considerado "alta cavalaria" (getting on a high horse).

Claro que isto é uma espécie de censura, mas auto-imposta pelo protocolo para preservar uma certa ideia de "bom ambiente" e de informalidade. Escusado será dizer que é uma censura muito mais eficaz do que aquela com que poderia sonhar um governo anti-democrático.

Nessas condições, a provocação, bem intencionada ou maliciosa, a troca do que chamamos "bocas" para rir são a única conversação possível, acompanhada pelo silêncio dos que desaprovam (por estar out of line) ou dos que nada têm a acrescentar.

Num filme que revi recentemente, "Amici Miei" (Mario Monicelli) encontrei esta vontade do grupo se divertir, de ser irresponsável, exponenciada até ao egoísmo desenfreado e ao desacato público. Parece que os americanos de Buffalo não chegam a esta fúria, aborrecendo-se na devida proporção.

Para terminar, se quisermos observar a conversação dos nossos próprios grupos, não chegaremos a resultados tão diferentes quanto isso. Na conversa tudo é pretexto e nada serve para outra coisa, desde o futebol à política. Mas talvez sejamos menos "teasers" por os grupos estarem menos desenraizados.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009


(José Ames)

UMA VISITA AO LOUVRE



"Lembro-me como de uma coisa extraordinária – porque Proust só saía à noite – de Proust me vir buscar à rua de Anjou, numa manhã, com o fiacre de Albaret, para ir ver o S. Sebastião de Mantegna no Louvre. Tinha o ar duma lâmpada eléctrica que tivesse ficado acesa durante o dia (…). No Louvre as pessoas já não olhavam os quadros – olhavam-no a ele, estupefactas."

"Le Passé Défini" (Jean Cocteau)


O mundo da arte era o único mundo real para o Proust desse tempo (antes apenas vislumbrava essa realidade), o único que o faria alterar os hábitos nocturnos, ditados pelas necessidades da escrita. Escrita que era como a dor causada pela fome que fazia esquecer a outra dor, incurável, de Mylia, a personagem de "Jerusalém", de Gonçalo Tavares.

Mas por que levou o jovem Cocteau consigo nessa visita ao Louvre? Para poder partilhar a sua admiração pelo pintor paduano ou para pôr à prova uma teoria sobre esse quadro em especial? Em qualquer dos casos, estamos ainda no contexto da obra que se escreve.

A escultura está tão presente no quadro do Louvre que a Sebastião bem podiam faltar os braços como numa estátua antiga. Não se podia significar melhor que a arte é o próprio objecto da pintura.

terça-feira, 13 de outubro de 2009


Arouca (José Ames)

ABRAÇOS DESFEITOS


"Abraços desfeitos" (2009-Pedro Almodóvar)


Almodóvar é um virtuoso. É sim senhor. Mas "Abrazos rotos" deixa-me com a impressão que outros filmes seus já produziram em mim. Não sei se é a temática ou o tipo de personagens de que não gosto (um pouco contra a vontade), ou de todas aquelas peripécias. De tanta agilidade e "savoir-faire", esperava-se mais. Estou consciente de que não aduzi ainda nenhum indício de crítica e que me fico pelo mau travo. Talvez que este autor seja demasiado complacente com o seu trabalho. Com a mesma complacência da "família" que julga uma das cenas do filme reeditado dentro do filme, em que uma mulher fala exuberantemente do traficante que levou para a cama.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009


(José Ames)

O DISCURSO DO MÉTODO



"O regresso ao irracional é, antes de mais nada, uma tentativa de preencher o vazio criado pela decadência da religião. Sob este grande acesso de irracionalidade encontra-se aquela nostalgia do absoluto, aquela fome de transcendente que observámos nas mitologias, nas metáforas totalizadoras da utopia marxista da libertação do homem, na visão freudiana do sono absoluto de Eros e Tanatos, na punitiva e a apocalíptica ciência do homem desenvolvida por Lévi-Strauss."

"Nostalgia do Absoluto" (George Steiner)


Ter a resposta para todas as perguntas é a grande diferença da religião em relação à ciência, ao ateísmo, ou a qualquer ideologia.

No fundo, talvez todos desejemos uma "feliz" integração não só no meio mais próximo, mas no próprio universo. E isso é o que não está ao alcance do homem-problema, dotado do órgão mais eficaz para se adaptar e encontrar soluções, mas sempre aquém da paz interior (mesmo a fé em Deus deve ser vivificada pela dúvida).

Por isso, sonhamos com uma teoria que explique tudo, mesmo os seus próprios fracassos. E para não sermos acusados de obtusa ideologia, preferimos chamar a essa teoria: método. Mas é sempre o discurso do dito.

domingo, 11 de outubro de 2009


Viseu (José Ames)

PURITANISMO


Puritanos


"Os voluntários não dizem apenas 'Eu preocupo-me, mas acho-me impotente em relação a esse assunto'. Em vez disso, tentam estrenuamente dizer-se a si mesmos que simplesmente não se preocupam com assuntos que se sentem impotentes para controlar. Paradoxalmente, eles queriam acreditar que as pessoas são interesseiras (self-interested), precisamente porque estavam a tentar convencer-se e aos filhos que o mundo é bom, moral e que faz sentido."

"Avoiding Politics" (Nina Eliasoph)


É a teoria da mão invisível, modelo portátil. Tudo acaba em bem porque o mundo não pode funcionar melhor do que quando cada um trata da sua vida. Mas os desmentidos da realidade devem colocar problemas de consciência mesmo aos mais empedernidos.

Este pudor em reconhecer, em público, a mais pequena nuance de idealismo e de boa-vontade não paroquial, o horror de assumir posições políticas que possam dar a ideia que não existem motivos puramente pessoais nesse envolvimento, não é, como o fenómeno do apoliticismo europeu, um resultado da discussão estéril e da desilusão dos eleitores. Deve-se ver aí uma manifestação do individualismo triunfante e um genuíno espírito de independência com conhecidas raízes na história americana.

E não é sem virtude, nem sem algum realismo, que se evitam as situações de falso poder e de falso protagonismo que tanto alimentam o nosso imaginário político.

Toda essa relutância quanto à política que demonstram os voluntários de Eliasoph redunda, porém, numa irremediável separação das máquinas partidárias em relação aos problemas reais.

sábado, 10 de outubro de 2009


(José Ames)

JERUSALÉM


Gonçalo M. Tavares

Há um contexto germânico no romance de Gonçalo Tavares que se situa algures no pesadelo do século XX. Não são só os nomes, que nada têm a ver connosco, também as "qualidades" de algumas personagens (nada se parece tanto com os nossos vícios como as nossas virtudes), o estilo de vida no hospício e depois na prisão em que Mylia cumpre a sua pena-destino. E é, evidentemente, o título que cita o salmo (137, 5-6) "Se eu te esquecer, Jerusalém, que seque a minha mão direita. Que a língua se me cole ao céu da boca, se deixar de pensar em ti, se não te preferir, Jerusalém, a todas as outras alegrias.". A cidade celeste é como a parte visível de um díptico, a outra é o Holocausto, que parece estar no fim (ou no princípio?) destas trajectórias mecânicas. O crime inexpiável é o do esquecimento. Numa das citações daquele salmo, Mylia refere-se ao hospício Rosenberg, onde foi "normalizada" e submetida a uma esterilização que correu mal. É essa violência que é pecado esquecer: "Se eu me esquecer de ti, George Rosenberg, que seque a minha mão direita". O livro é ainda mais negro por conhecermos a história dos campos. Essa esperança última, essa derradeira dignidade não encontrou ali também o aniquilamento?

sexta-feira, 9 de outubro de 2009


Serra da Boa Viagem (José Ames)

ALQUIMIA



Niels Bohr (1885/1962)


"O gráfico é capaz do contínuo de que a palavra é incapaz; ele tem sobre ela a vantagem da evidência e da precisão. É ela, sem dúvida, que lhe ordena de existir, que lhe dá um sentido, que o interpreta; mas já não é por ela que o acto de possessão mental é consumado."

"La méthode de Léonard de Vinci" (Paul Valéry)


Popper criticava a interpretação de Bohr da teoria quântica e a sua tese da complementaridade entre onda e partícula, porque, dizia, "Bohr, parecia, pensava a compreensão em termos de figuras e modelos – em termos de uma espécie de visualização"("Unended Quest"). E nós não temos de "ver" a microfísica para compreender uma regularidade estatística.

Mas há uma passagem crucial da "evidência" e "precisão" do gráfico para esta nova modalidade de compreensão. Para além de se perder a evidência, passamos a ler (ou a interpretar) o que sai de uma espécie de caixa fechada, a cujo interior não temos acesso.

Ora, isto aproxima muito esta física, com a qual temos uma relação cada vez mais distante e indirecta com… a alquimia. A diferença é que esta não teve nunca um sucesso objectivo (embora pudesse ter alimentado as esperanças de alguns homens de génio durante séculos).

quinta-feira, 8 de outubro de 2009


(José Ames)

O CANSAÇO DA ARTE


Céleste Albaret (1891/1984)


"Tão depressa ela (a frase da sonata) veio à memória como desapareceu e eu encontrei-me num mundo desconhecido, mas agora sabia, e tudo não cessava de mo confirmar, que esse mundo era um daqueles que eu não podia conceber que Venteuil pudesse ter criado, porque quando, fatigado da sonata que era um universo esgotado para mim, tentava imaginar outras igualmente belas mas diferentes, eu não fazia mais do que aqueles poetas que enchem o seu Paraíso de prados, de flores, de ribeiros, que são duplicados dos da terra."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


John Keats diz que "A thing of beauty is a joy for ever". Proust, mais psicólogo, admite que mesmo a mais bela das composições pode cansar. Podemos chegar a conhecê-la como os cantos da casa e enterrá-la num hábito.

No entanto, no tempo do romancista, não era fácil ouvir a música que se queria, quando se queria. Os que viram o filme de Adlon "Céleste" ou leram as memórias da sua governanta, sabem que algumas vezes pagou a músicos para tocarem em sua casa, só para ele.

Mas o mais interessante é o que acontece, neste caso, à sonata de Venteuil. Será possível que alguém se canse de "Guerra e Paz" e que a beleza que uma vez sentiu ao ler essas páginas só possam ser despertadas por algo do mesmo nível, mas diferente: "Anna Karenina", por exemplo?

A dimensão parece aqui vir ao caso. Ninguém pode ter todo o romance de Tolstoi no seu espírito, como pode ter uma frase musical ou mesmo uma sonata.

E talvez que sejamos nós que precisemos de mudar para continuarmos a ser sensíveis à beleza duma obra de arte ou duma composição musical quando as julgamos dominar.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009


Dubrovnik (José Ames)

PROPRIEDADE


http://www.japanfocus.org/data/The life of the peasants is good after land reform, 1953


"Confunde-se demasiadas vezes o amor da propriedade com este sentimento do trabalhador que reivindica uma parte dos produtos do trabalho. Aquilo que se ama na propriedade, em primeiro lugar, é a liberdade dos trabalhos, mais do que o livre uso dos produtos. Por isso nenhum homem ama com o mesmo amor o trabalho no seu próprio campo, mesmo árido e ingrato, e o trabalho de um criado de quarto, mesmo muito mais suave e muito mais bem pago."

"Propos d'économique" (Alain)


Parece que a história da colectivização da terra, na antiga URSS, por exemplo, provou isso mesmo. Não é que, administrativamente, a coisa não pudesse funcionar e que com as técnicas adequadas não se pudesse atingir a auto-suficiência. Mas não seria, de facto, o modo mais produtivo e o que tiraria melhor partido da motivação das pessoas ( pelo menos, na nossa cultura).

Se a situação fosse de fome e escassez, o método administrativo teria que ser olhado como um terrível desperdício, que nenhum governante se deveria permitir.

A alegria é mais "económica" do que a tristeza. O ponto de partida não devem ser as condições mínimas de existência, mas as condições mínimas para agir.