segunda-feira, 31 de maio de 2010


(José Ames)

COMPORTAMENTOS IMPROVÁVEIS





"É preciso submeter-se às regras da organização para se tornar um seu membro e continuar a sê-lo. É preciso declarar-se pronto a obedecer a ordens e a aceitar responsabilidades. E no seio duma zona pessoal de indiferença, é preciso igualmente estar pronto a aceitar a mudança permanente destas condições. É bem conhecido que um tal processo não funciona nunca de maneira muito planificada, mas comporta sempre um grau considerável de desvio, de ignorância, até de boicote, e tal não surpreenderá, por isso, ninguém. O que se revela em contrapartida surpreendente é a medida na qual se consegue, apesar disso, normalizar um comportamento muito improvável e o qual não poderia ser alcançado num outro contexto."


"Politique et Compléxité" (NIklas Luhmann)



A invenção individual é o melhor exemplo dum comportamento altamente improvável em que uma especialização sui generis coincide com o interesse pessoal. O criador, normalmente, encontra-se suficientemente motivado não só para se familiarizar com as práticas e os saberes necessários à produção que tem em vista, como para converter o que para a maioria seriam sacrifícios pessoais no seu melhor estímulo, e tudo isto, muitas vezes, com o incentivo psicológico dos outros apenas "em esperança". Se Mathilde de La Môle se aborrecia "en espoir", o inventor parece que se alegra a crédito sobre o seu futuro.

O comum dos mortais, porém, só fará coisas extraordinárias e acima das suas possibilidades individuais, sem motivos pessoais (mas não sendo necessariamente altruístas), nem as energias do instinto, a não ser no contexto duma organização. Uma empresa, por exemplo, consegue esse milagre de tornar normal uma especialização como a de servir cafés numa esplanada ou a de construir parquímetros que "não poderia ser alcançado num outro contexto".

domingo, 30 de maio de 2010


Portinho da Arrábida (José Ames)

A FORÇA DO INACTUAL


MacArthur e Hirohito

"Para além disso, o inimigo possui agora uma nova e horrível arma com o poder de destruir muitas vidas inocentes e causar incalculáveis danos. Se continuássemos a combater, não só daí resultaria o colapso final e a obliteração da nação japonesa, mas levaria também à total extinção da civilização humana.

Sendo este o caso, como deveremos Nós salvar os milhões dos Nossos súbditos, ou fazer-Nos perdoar diante dos sagrados espíritos dos Nossos Imperiais Antepassados? Foi por esta razão que Nós ordenámos a aceitação das provisões da Declaração Conjunta das Potências."

(Declaração do Imperador Hirohito, proclamada em 15/8/1945)


Os dois argumentos para a rendição de Hirohito, que uns dias antes ainda se mantinha inabalável na decisão de continuar a guerra, foram, em primeiro lugar as bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki e o poder de destruição do inimigo que ele, compreensivelmente, exagerou até o escatológico e, depois, a religião dos antepassados.

Hirohito, por muito divinizado que fosse e se sentisse não tinha todo o poder. Ele era obrigado a responder perante um tribunal superior a qualquer tribunal terreno, superior à sua própria consciência, o da tradição espiritual da sua nação.

Se ele arrastasse os seus súbditos para um holocausto, jamais seria perdoado, não pelo povo dos seus súbditos que, segundo a sua previsão, seria "obliterado", mas por algo que se pode dizer que não existe, que nem sequer é actual ( os mortos ).

sábado, 29 de maio de 2010


(José Ames)

INADVERTIDOS PECADOS



"Tenho muito medo dos meus pecados ocultos ('Et multum timeo occulta mea'), patentes aos teus olhos e escondidos aos meus. Em toda a outra espécie de tentações tenho uma certa possibilidade de fazer um exame de consciência, mas nesta a minha possibilidade é quase nula."


"Confissões" (Santo Agostinho, citado por M. Heidegger in "Estudos sobre mística medieval")


A motivação para o pecado, conforme observa Heidegger, não está, pois, do lado do conhecimento, mas da vontade. A compreensão é obscurecida pela atracção do pecado, seguindo-se a obstinação em não querer compreender que, finalmente, é apenas não querer resistir ao plano inclinado para a queda.

Kierkegaard ('Die Krankeit zum Tode') é citado, numa ampliação sibilina deste processo: "e esta corrupção da vontade vai mais além da consciência do indivíduo particular."

A conclusão só pode ser a de que o indivíduo não se pode salvar se não for agraciado, já que a atracção do mal (o afastamento de Deus) é a lei deste mundo, e o conhecimento só acrescenta uma ilusão de responsabilidade ao que não pode ser de outra maneira.

Mas, se é assim, como pode ter havido uma "corrupção da vontade"? E o que vem fazer aqui a consciência do indivíduo? Um mais além da consciência, na ideia de Kierkegaard, não deveria ser uma espécie de conversão da moral à física?

sexta-feira, 28 de maio de 2010


Dubrovnik (José Ames)

A RETÓRICA



"A retórica é a negociação entre indivíduos a propósito duma dada questão."

Michel Meyer


O que pressupõe esta ideia? Que não há boas nem más questões, mas apenas o sucesso ou o insucesso dos nossos esforços de persuasão.

Claro que ninguém é inteiramente persuadido sem que a sua razão avalize a transacção. A retórica podia ser, assim, tanto um meio de confundir a razão para levá-la a sancionar um mau acordo, como um recurso à imaginação e à beleza da forma para estimular uma razão "preguiçosa" e levá-la a fechar uma boa negociação.

Tudo está em se perceber que a retórica pode ser muito mais do que uma arte gramatical e alargar-se a todos os meios, atmosferas ou entusiasmos condicionantes da razão, desde que sejam devidamente manipulados, isto é, com arte.

quinta-feira, 27 de maio de 2010


(José Ames)

O QUE AUGUSTO TEM DE IGNORAR


Octávio César Augusto (63a.C./14d.C.)


"Hesitava-se em geral entre a severidade 'revolucionária' e o alinhamento pelo estado real dos costumes; a hesitação é sensível na própria legislação augustana: sem entrar nos detalhes, digamos que ela é menos temível na sua aplicação efectiva do que parece à primeira vista, e que Dion Cassius a caracteriza com justeza, quando faz aconselhar isto a Augusto: 'Vigia os costumes dos cidadãos, sem no entanto os examinares de modo importuno; julga todos os casos que te forem levados por terceiros, mas fecha os olhos aos casos em que nenhum acusador se apresente.'"

"L'élégie érotique romaine" (Paul Veyne)


Já não era fácil, no tempo de Augusto, conter os costumes na forma mais desejável e mais útil para o Estado. O método aconselhado por Cassius podia ser tão dissuasivo como a fiscalização aleatória dos nossos títulos de transporte que funciona, é verdade, mas com malhas muito largas.

Aquele príncipe era tudo menos um espírito draconiano e conhecia, pelos exemplos da sua própria casa, o avanço que levava a corrupção dos antigos costumes.

O poder não podia, nem que quisesse, inverter esse rumo, e fechar os olhos a tudo o que pudesse oficialmente ignorar era o menos gravoso para o seu prestígio.

Daí a alguns anos nasceriam os monstros da gens Claudia que mostrariam o verdadeiro carácter da revolução dos costumes.

quarta-feira, 26 de maio de 2010


Arouca (José Ames)

DISPERSÃO




"In multa defluximus."

Santo Agostinho


Dispersamo-nos por muitas coisas. Ninguém tem tempo para nada. Ou são os filhos, ou é o emprego, ou é a vida de "inactivo", seja o que for que acelera o filme da nossa existência por falta de intervalos para fazer uma coisa que, no cinema, nos subtrai ao papel de espectadores e, na vida, ao de "sprinters" para a morte.

E que quer Agostinho com o seu eu "continente", todo num ponto de consciência e de verdade diante do seu Deus? Salvar-se, claro. Mas o que é que isso pode significar, hoje, para os que se dispersam e fogem da "continentia" como o "diabo da cruz"?

Há um sentido moderno, técnico, para a salvação. Vem do inglês save (de guardar no disco ou noutro suporte qualquer). E o que não se salva (grava), perde-se para sempre, ou tem de se repetir tudo. Trabalho perdido, vida perdida. Haverá aqui uma metáfora, à medida do nosso ser sem transcendência?

terça-feira, 25 de maio de 2010


(José Ames)

SABER E PODER


http://mtroi.blog.uol.com.br


"Saber ou poder, é preciso escolher. Aqueles homens inumeráveis que erguem uma antena no telhado crêem com isso tocar a ciência; mas, pelo contrário, desviam-se dela. É uma caça apanhar na armadilha essas ondas invisíveis e impalpáveis; mas é só uma caça. Curiosidade de poder, não curiosidade de saber. Aquele que ouve em Paris os rouxinóis de Oxford nem aprende história natural, nem a física. Bem pior, perde o gosto de aprender, pelo contraste entre a extrema facilidade desta sintonização que coloca na sua posse um concerto longínquo e a extrema dificuldade de saber aquilo que faz quando regula uma certa superfície de condensador e um certo comprimento de bobina (…). Desde que o avião voou sem a permissão dos teóricos, os técnicos escarnecem dos teóricos."

"Sur les Philosophes" (Alain)


Este poder de ligar à corrente um aparelho mais ou menos complexo para facilitar a nossa vida, de sintonizar as ondas de rádio ou de "navegar" na Web, de facto, não nos ensina nada, embora responda às expectativas de quase todos.

Nem todos enfrentam o dilema entre saber e poder. Antes da revolução técnico-científica, a curiosidade de saber já era preterida em favor do outro tipo de curiosidade. Podemos até perguntar-nos se a curiosidade de saber, que é uma das ideias feitas sobre a infância, não é antes uma curiosidade de poder e se, pela vida fora, não somos apenas consequentes com esse princípio.

Porque o verdadeiro saber tem de ser saber por saber, algo que se basta a si próprio e que encontra as suas raízes na ideia de contemplação platónica.

Quantos, na chamada "aldeia científica" comungam desse espírito quase religioso? É só ver o género de competição que ali grassa e a natural ambição de ser publicado e reconhecido pelos seus pares.

segunda-feira, 24 de maio de 2010


Pico (José Ames)

JUSTIÇA DE UM DIA



"As pessoas descontraem-se completamente. Não têm aquela energia ferozmente tensa, essa resolução misturada de angústia tantas vezes observadas nas greves. Estão resolvidas, certamente, mas sem angústia. Estão felizes, cantam, mas não A Internacional, não a Jovem Guarda; cantam-se canções, muito simplesmente e está muito bem. Alguns dizem piadas, de que se riem para se ouvirem rir. Não são más. Claro que estão felizes por fazerem sentir aos chefes que eles já não são os mais fortes. É de facto a sua vez. Isso faz-lhes bem. Mas ninguém é cruel. Está toda a gente demasiado contente. Evidentemente, não se acredita que tudo vá mudar, mas tem-se confiança. Há a certeza de que os patrões vão ceder. Acredita-se que um novo golpe acontecerá ao fim de alguns meses, mas todos estão preparados. Diz-se que se alguns patrões fecharem as suas fábricas, o Estado tomará conta delas."


"La vie et la grève des ouvrières métallos" (Simone Weil)


Foi assim durante o Governo da Frente Popular, em 1936, segundo Simone Weil. Fábricas ocupadas, plenários e canções, num clima de libertação e de grande esperança.

Quem viveu o 25 de Abril sabe o que isso é. Mas no nosso caso, dava-se, ao mesmo tempo, uma mudança de regime que tornava a ideia da libertação imediatamente política, carreando os sonhos que não sabíamos que sonhávamos, porque as frustrações, essas eram bem reais.

Há no testemunho de SW um acento que não engana. Os acontecimentos eram vividos como se fosse a primeira vez e nenhum precedente, nenhuma "lição da história" lançava a sua sombra sobre a mais louca das esperanças.

Nunca mais os chefes serão olhados daquela maneira, como se a organização não fosse uma necessidade, independentemente das pessoas que a põem a funcionar. E algum francês (ou português), tirando alguns abecerragens, se reverá hoje neste retrato da filósofa que não se queria "en vadrouille dans la classe ouvrière"?: "Para todo o Francês, o Estado é uma fonte de riqueza inesgotável. A ideia de negociar com os patrões, de obter compromissos, não ocorre a ninguém. Querem ter o que pedem. E querem tê-lo porque as coisas que pedem desejam-nas, mas sobretudo porque depois de se terem vergado durante tanto tempo, quando, enfim, levantam a cabeça, não querem ceder. (…) Depois de passivamente terem executado tantas e tantas ordens é demasiado bom poder, enfim, dá-las àqueles de quem as recebiam."

domingo, 23 de maio de 2010


(José Ames)

ABERTURA DE ESPÍRITO?


Confúcio (551/479 A.C.)


"Do Confuciano 'Não faças aos outros o que não queres que eles te façam a ti', ao Cristão: 'Faz aos outros como querias que eles te fizessem', é um avanço real. A moralidade de Nietzsche é uma mera inovação. A primeira é um avanço porque ninguém que não admitisse a validade da velha máxima poderia ver a razão para aceitar a nova, e quem quer que aceitasse a velha imediatamente reconheceria a nova como uma extensão do mesmo princípio. (…) Mas a ética nietzscheana só pode ser aceite se estivermos dispostos a mandar para o lixo a moral tradicional como um simples erro e pormo-nos então numa posição onde não encontraríamos fundamento para qualquer juízo de valor."

"The Abolition of Man" (C.S. Lewis)


A ideia de Lewis é que os nossos princípios fundamentais, a razão prática em que nos baseamos para os actos com mais significado para nós, não resistem a uma crítica "destrutiva", porque não podem ser demonstrados (nada que Gödel já não tivesse aplicado à própria matemática). Esses princípios presidem à existência de qualquer sociedade sob a forma duma certa tradição. Não pertencem à natureza, nem nasceram dum "decisão" humana, mas são a única fonte dos juízos de valor. O único progresso possível seria interior a esta nebulosa metafísica e eis por que, segundo Lewis, "nunca houve, nem nunca haverá, na história do mundo, um juízo de valor radicalmente novo."

Nietzsche foi um dos que tentou criar novos valores, abrindo a porta ao niilismo moderno. Em consequência disso, cada vez mais pessoas pensam que a sociedade pode dispensar de todo os valores, ou criar, para cada indivíduo, valores à la carte.

A nossa mentalidade encurrala-nos numa situação deveras difícil, porque queremos ter uma "mente aberta". Mas este autor diz-nos que ter uma mente aberta "em relação aos últimos fundamentos, quer da Razão Teórica, quer da Razão Prática é uma idiotia." Por um lado, não podemos deixar de sujeitar esses princípios a um exame da "razão científica", já que expulsámos o sagrado das nossas vidas, por outro, precisamos dos valores cujos fundamentos destruímos com essa inconclusiva "investigação".

Haverá, realmente, limites à abertura do espírito e à utilidade da inovação?

sábado, 22 de maio de 2010


Vila do Conde (José Ames)

ANTI-PETRARQUISMO


Francesco Petrarca (1304/1374)

"Anti-petrarquismo: os dois épodos e a sátira de Horácio sobre as feitiçarias de Canídia, a fealdade da mulher do soneto CXXX de Shakespeare, a 'Vénus Anadyomène' de Rimbaud, os sonetos de Saint-Amant e de Téophile de Viau sobre as velhas e as feias, os epigramas de Marcial ou os Épodos de Horácio sobre as velhas lúbricas e venais, 'La Vieille Heaulmière' de Villon. Sem esquecer a frigidez, 'a fria majestade da mulher estéril' de que fala Baudelaire, só faltando a respectiva adjectivação, donde os 'gelos' de que muitas vezes falam os 'Sonetos pour Hélène' de Ronsard, ou o soneto I, 171 do 'Canzoniere' do mesmo Petrarca, ou a 'Princesa de Clèves', altaneira desmistificação duma mulher fria e preocupada sobretudo com a sua tranquilidade, no que ingénuos viram uma exaltação cornelliana da fidelidade conjugal."

"L'élégie érotique romaine" (Paul Veyne)


Esta resenha não significará uma tradição (cujo impeditivo não seria saltar-se do século de Augusto para o Segundo Império, em França), mas a idealização da mulher na figura de Laura tem tão pouco a ver com a mulher em qualquer das épocas que não nos choca imaginar o extremo oposto.

A fealdade e a velhice são bons assuntos da sátira só quando julgam que as ilusões que têm sobre si próprias as mantêm em pé de igualdade com a beleza e a juventude, perante os outros. Veyne, porém, inclui no anti-petrarquismo a frigidez, que pode ser, a da mais bela das "estátuas", e isso faz com que o verdadeiro motivo da des-idealização não seja tanto a mulher frígida quanto a frustração do amante.

No soneto de Rimbaud (ver abaixo), por outro lado, fala a mais feroz das misoginias atacando um dos símbolos eróticos da Antiguidade (Afrodite que emerge do oceano), descrevendo a mulher com a incompreensão do que usa como termo de comparação um modelo anoréctico (ou do outro sexo).


Venus Anadyomène


Comme d'un cercueil vert en fer blanc, une tête
De femme à cheveux bruns fortement pommadés
D'une vieille baignoire émerge, lente et bête,
Avec des déficits assez mal ravaudés;

Puis le col gras et gris, les larges omoplates
Qui saillent; le dos court qui rentre et qui ressort;
Puis les rondeurs des reins semblent prendre l'essor;
La graisse sous la peau paraît en feuilles plates:

L'échine est un peu rouge, et le tout sent un goût
Horrible étrangement; on remarque surtout
Des singularités qu'il faut voir à la loupe…

Les reins portent deux mots gravés: CLARA VENUS;
—Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
Belle hideusement d'un ulcère à l'anus.


sexta-feira, 21 de maio de 2010


(José Ames)

O TREINO DAS EMOÇÕES


Clive Staples Lewis (1898/1963)


"Permanece ainda verdadeiro que nenhuma justificação da virtude dará ao homem a capacidade para ser virtuoso. Sem a ajuda de emoções treinadas o intelecto é impotente contra o organismo animal. Eu mais depressa jogaria cartas com um homem bastante céptico em relação à ética, mas que tivesse sido educado na convicção de que "um cavalheiro não faz batota", do que com um irrepreensível filósofo de moral que tivesse sido educado entre batoteiros."

"The Abolition of Man" (C.S. Lewis)


Era este o entendimento de Platão, que queria que o coração (the chest, na versão de Lewis), sede da coragem, fizesse a ligação entre o cérebro (demasiado abstracto) e o ventre (demasiado visceral).

Vê-se na questão das maneiras o que significa essa ligação. Um homem que tem apenas a ideia do que é uma boa atitude nunca será espontâneo. Só o cálculo o impedirá de cometer gaffes. Como isso nem sempre é possível e, além do mais, a "consciência" é desprovida de graça e naturalidade, não há nada como saber essas coisas como que por instinto, e é isso que quer dizer educar as emoções naquela citação. Como Descartes e outros sabiam, é possível tirar um bom ou um mau partido das paixões, mas sem elas ficamos só com o moralismo anémico de um velho.

A minha ideia é de que hoje se perdeu essa ciência e que as paixões deixaram de ser vistas como tal (como algo que se "sofre"). Já não são a energia do homem virtuoso, mas a expressão do indivíduo, e isso só não é um direito porque, eventualmente, tornaria a sociedade impossível.


quinta-feira, 20 de maio de 2010


Vila Franca de Xira (José Ames)

NEM PICASSO



Volto a um dos temas com que iniciei este blogue. Se o Museu Berardo acolhe, e se "agora são disputados por galerias de todo o mundo", é porque o território do "politicamente correcto" se alargou. Do desprezo à consagração: parece ser a recompensa dum esforço colectivo pela "visibilidade". Porque, como diz o ex-graffiter, Gustavo Pandolfo, no "Ípsilon" do passado diz 17, o "graffiti é apenas pessoas a dizer: Estamos aqui. Queremos contribuir para a mudança. Vamos lá!" e se até "criam um clima de romantismo na desordem urbana" (Vitor Belanciano)…

O turiferário tem o cuidado de falar apenas em muros e prédios devolutos, et pour cause… Quanto à fronteira entre a arte e o vandalismo, parece ser uma questão de velocidade. Os taggers talvez sejam mais apressados e já tudo parece servir-lhes de suporte, sem se preocuparem se é a fachada dum banco ou a casa dum operário. Gustavo Gandolfo diz que "É pequeno olhar para o graffiti como vandalismo, quando vemos a Grécia em convulsão ou um navio a poluir quilómetros de oceano nos EUA" Claro que isso justifica tudo, porque se tivermos um tumor cancerígeno não é urgente limpar as unhas. Embora se o combate contra o cancro depender do nosso estado psicológico, então o asseio e o cuidado de si passam a ser importantes. Um mundo feio, preparado pelos serial killers da paisagem, só nos deprime ainda mais, quando temos de enfrentar a poluição ou a crise económica.

A questão do graffiti não é saber se é arte ou deixa de ser, mas da sua imposição no espaço público. Picasso, para pintar a minha parede ou tornar a cidade numa espécie de estúdio cubista, não era o seu nome que lhe dava esse direito. De resto a "obra uniforme que dir-se-ia concebida apenas por um deles" ( os gémeos brasileiros que expõem no CCB) é um juízo que se poderia aplicar ao conjunto do "movimento". Isto quanto à originalidade. Mas penso que não importará tanto a expressão, como a marcação do território a golpes de spray.

Como em toda a crise moral, começa-se por um argumento falacioso (neste caso, o do direito à expressão do "artista urbano") e acaba-se na homenagem oficial.

Com os taggers a chegaram aos museus, temos de chamar a isto a estetização do repelente. E é mais uma coluna do templo derrubada.

quarta-feira, 19 de maio de 2010


(José Ames)

NEC PLUS ULTRA


Hugo Grotius (1583/1645)

"Nem Deus pode fazer com que dois e dois não dêem quatro."

(Grotius)


Ou seja, Deus não pode tudo. Deus não pode desdizer-se. Mesmo se a aritmética fosse apenas uma aplicação do cérebro e outros seres inteligentes no universo não precisassem de racionalizar para se moverem no espaço, o "Criador" estaria obrigado a uma lei, a uma coerência consigo próprio.

Este limite da Omnipotência não é muito diferente do que impedia Zeus, por exemplo, de ignorar a Anankê, a personificação do destino, e o limite fixado pelos Antigos ao oceano (o nec plus ultra).

Esta contradição vem de se atribuir a Deus uma qualidade política (mas onde acabará a antropomorfização?), a do poder. Todos os senhores da terra, do presente e do passado, conhecem o jugo que é a contrapartida desse poder sobre os seus súbditos.

Por isso não faz sentido dizer que Deus não pode ir contra a matemática. Nem sequer sabemos se o universo pode ser compreendido, através da ciência dos números ou doutra ciência qualquer. O que temos são espantosos resultados práticos.

Mas aqui não funciona a ideia de Engels de que a melhor prova da existência do pudim é comê-lo.

terça-feira, 18 de maio de 2010


Porto (José Ames)

A MATANÇA DOS INOCENTES


"O Massacre dos Inocentes" (Rubens)

C.S. Lewis (1898/1963) cita os Analectos de Confúcio num ensaio sobre a educação ("The Abolition of Man"): "O Mestre disse: Aquele que se põe a trabalhar num fio diferente destrói toda a tecedura."

O problema é que inovar quando a tarefa é a de transmitir a herança do passado, tarefa essencialmente conservadora, é, como diz Arendt, privar os novos da sua própria iniciativa, do seu poder de começar algo de novo, a partir do passado.

Todas as experiências pedagógicas que sacrificam esse conteúdo a uma moda formalista, a um método que se arroga a auto-suficiência dum sistema, são uma outra "matança dos inocentes".

A função de transmitir deve ser separada da função de criticar, e o ideal era que não fossem "contemporâneas".

segunda-feira, 17 de maio de 2010


(José Ames)

O ECLIPSE DAS PAIXÕES


Publius Ovidius Naso (43 a.c/17 ou 18 a.d.)

"Quando um homem tem uma paixão, já não é autárquico e nada podia ser mais contrário à moral antiga. Esta não era puritana, nem kantiana: era a receita da felicidade (do mesmo modo que no Extremo-Oriente se chamam filosofias ou sagezas a receitas de auto-transfiguração) e o meio presumido de se ser feliz era limitar as ambições e os desejos, a fim de dar o menos azo possível às coisas e aos outros para nos ferirem."

"L'élégie érotique romaine" (Paul Veyne)


Talvez que esse modelo de controle sobre os seus próprios actos, essa ideia de liberdade, fosse o contraponto da escravatura então instituída. Dos escravos não se esperava que fossem senhores de si próprios (contra a moral de um Epicteto e, já nos nossos tempos, a dialéctica hegeliana). Tudo o que pudesse sugerir a escravidão era considerado vil, com a excepção da licença poética (os elegíacos estudados por Veyne podiam declarar-se "escravos" duma liberta).

Mas essa problemática deixou quase de fazer sentido nos nossos dias e ninguém já fala de paixões. Temos explicações mais do que suficientes nas "condições de existência" para tudo o que nos desvie de um qualquer caminho que pudéssemos ter idealizado. E não nos sentimos mais infelizes por isso porque não temos de nos mostrar superiores a ninguém.

domingo, 16 de maio de 2010


Museu Britânico (José Ames)

MÚSICA AMBIENTE


"Mais de oitenta por cento dos adolescentes americanos não sabem ler em silêncio; há sempre um pano de fundo, música mais ou menos amplificada. A intimidade, a solidão que permite um encontro em profundidade com o texto e a sua recepção, entre a letra e o espírito, é hoje uma singularidade excêntrica, psicológica e socialmente suspeita. É inútil demorarmos sobre a derrocada do nosso ensino secundário, sobre o seu desprezo da aprendizagem clássica, do que se aprende a decorar. Uma forma de amnésia planificada prevalece largamente agora nas nossas escolas."

"Les Logocrates" (George Steiner)


Há pessoas que dizem que não conseguem estudar sem um ruído de fundo, ou que precisam de um fundo musical para lerem um livro. Mas talvez isso mobilize apenas o nível de atenção requerido por uma compreensão considerada suficiente. Para quê fazer ecoar os vários sentidos duma palavra numa frase ou interrogarmo-nos sobre os termos em que é descrita uma experiência científica, quando o que nos interessa é passar num exame?

Assim, fechamos o acesso à atenção profunda com a camuflagem ambiental. O silêncio é cada vez mais um privilégio que ninguém quer porque deixa passar o pensamento, e o pensamento é sempre disfuncional, interrompe o quer que estivermos a fazer e atrasa o nosso progresso em direcção à eficiência imediata.

Ainda se há-de escrever a história desta surdez, que é paralela à causada pelos headphones nos nossos adolescentes.

sábado, 15 de maio de 2010


(José Ames)

A TENTAÇÃO


"Conversão de S. Agostinho" (Fra Angelico)

"Não se conhece o homem a si mesmo, se não aprender sobre si mesmo na tentação." (Nescit se homo, nisi in tentatione discat se)"

Santo Agostinho


Oscar Wilde dizia que era capaz de resistir a tudo, menos… a uma tentação. Depreende-se que Agostinho quisesse dizer que só se aprende resistindo, porque é assim que ganhamos força e podemos emergir da onda que nos quer arrastar. As tentações ou as provas de força são, portanto, necessárias para conhecermos os nossos limites. Mas é isso conhecermo-nos a nós mesmos, ou é só conhecermos o que vale a nossa vontade?

A favor dessa distinção está o facto deste doutor da Igreja ter sido o primeiro teórico da vontade dividida ("tornei-me um problema para mim mesmo": quaestio mihi factus sum).

Prescinde-se aqui da figura do grande divisor, que atravessa o nosso pensamento e nos aliena de nós mesmos: o Diabo renegadíssimo. E a tentação sendo, aos olhos de Agostinho, o que nos desvia de Deus, pode ter uma qualidade quase mecânica (no fundo, o mal é um mecanismo).

De qualquer modo, sendo menos prática, a moral socrática do conhece-te a ti mesmo é muito mais ambiciosa.

sexta-feira, 14 de maio de 2010


Varsóvia (José Ames)

JAZZAR


"(O jazz) é essencialmente uma arte colectiva. A criação nele é raramente individual. Quando numa orquestra um solista improvisa é apoiado pelos membros da secção rítmica que podem influenciar enormemente a sua maneira de improvisar, do mesmo modo que o jogo do solista influencia, pelo seu lado, o estilo da secção rítmica. Decerto acontece que o jazz conheça a criação individual: tal é o caso do pianista tocando o solo sem o menor acompanhamento. Mas os solos de piano derivam directamente da criação colectiva, porque, na origem, os pianistas de jazz tocavam unicamente para fazer dançar, e, como se disse acima, os dançarinos influenciam os músicos, pelo menos do ponto de vista rítmico (que é o mais importante)."

(Hugues Panassié, "Le Point" nº XL, 1952)


O articulista diz que os músicos de jazz não tocam como se ensina nos conservatórios, pois tocam "como cantam". Sendo o estilo vocal negro muito diferente da técnica vocal europeia, temos aqui um dos mais prolíficos encontros de raças e culturas diferentes.

Já se comparou o jazz à conversação. Isso esclarece, talvez, o que se passa quando se fala só por falar, com outra ou outras pessoas. As palavras não estão ali por elas mesmas e não tem importância aquilo a que se referem. Muito da nossa conversação é coral. Uma anódina observação sobre o tempo, só para não estarmos calados, é já um passo de dança.

Por isso as pessoas com um problema de adaptação de ritmo parecem menos sociáveis.

quinta-feira, 13 de maio de 2010


(José Ames)

O CÂNONE GREGO


Paestum


"Nunca se teriam feito na Grécia contemporânea templos colossais como em Selinunte e Agrigento; nem se teriam acumulado, como aconteceu em Agrigento, tantos templos e todos grandiosos num só vale. Não se encontram na Grécia, como aqui, cinquenta vasos todos num único túmulo. Já existia então uma tendência sumptuosa e quase megalómana, na Sicília; a que, depois do domínio espanhol se chamou spagnolesca."

"Dom Bastiano, arqueólogo romeno naturalizado italiano, in "Viaggio in Italia" de Guido Piovene)


"Os verdadeiros Gregos atinham-se aos cânones" diz o mesmo arqueólogo para distinguir "a fantasia, o empirismo, o realismo, o estro individual" da arte antiga na Sicília.

O respeito absoluto pelo cânone não impediu alguns artistas de afirmarem a sua superioridade. Mas não do modo pessoal de que a emigração no sul da península itálica nos dá os primeiros indícios. A originalidade do artista mede-se pela perfeição do seu trabalho, como se, de acordo com a ideia platónica, não houvesse nada a inventar, mas tudo devesse ser "recordado" dum modelo transcendente.

O ideal da harmonia e da medida parece explicar o classicismo helénico, que não teria podido produzir a arte colossal de Paestum e de Selinunte, o excesso de Agrigento. Mas quando se sabe que os Gregos tinham uma palavra para significar o contrário daquele ideal, a hibris (que o Larousse define assim: "Entre os Gregos, tudo o que, na conduta do homem, é considerado pelos deuses como desmesura, orgulho e devendo concitar a sua vingança."). só podemos admirar uma ideia da arte e da arquitectura tão sábia e tão realista em relação às paixões que procura preencher o mundo com provas contra elas.

quarta-feira, 12 de maio de 2010


Santarém (José Ames)

LA DOLCE VITA


Escravo seduzido pela matrona?
(Mosaico da Piazza Armerina)



"Havia em Roma cumplicidades de salão, um esoterismo mundano e também uma publicidade da dolce vita; lisonjeados por falarem deles, os nobres não desdenhavam ter uma amante conhecida, se ela lhes fosse inferior, se não fosse uma dessas matronas que era preciso oficialmente respeitar; faziam publicidade disso junto dos seus pares, e até, se fossem personagens públicos, junto do bom povo."

"L'élégie érotique romaine" (Paul Veyne)


Se lhes fossem inferiores, isto é, se fossem plebeias ou libertas; as escravas e os escravos não podiam pesar na balança. Eram, com toda a "naturalidade", um objecto doméstico, incluindo nessa qualidade o facto de serem sexuados, sem merecerem sequer, na maioria dos casos, o ciúme da uxor ; as escravas, se não fossem libertadas pelo seu senhor, não chegavam ao estatuto de concubinas ou amantes e, por isso, não eram coisa sobre que se fizesse publicidade.

Quanto ao amor das matronas ( senhora dos seus actos, é, segundo Veyne, um dos sentidos da noção de matrona) que deviam usar um vestido comprido (a stola) assinalando que eram intocáveis, tinha depois de Augusto, muito perigosa publicidade. O amante surpreendido, fosse ele senador, podia, nestes casos, "ser espancado pelos escravos do marido, regado pelo mijo da criadagem, por ela sodomizado ou pelo marido em pessoa, desfigurado, castrado como Abelardo ou, no melhor, libertado contra o pagamento dum resgate."

Só o apelo do fruto proibido podia levar a correr tais riscos. Se os Romanos tivessem a mesma ideia sobre o sexo que nós temos, um território sexual tão vasto como o que a escravatura lhes proporcionava teria antecipado de alguns séculos a sua decadência.

terça-feira, 11 de maio de 2010


(José Ames)

RISO CONDICIONADO


Alice e a rainha de Copas


"Quando, durante uma festa na corte, a rainha acabou de contar uma história e todos os cortesãos se puseram a rir, inclusive um ministro surdo, este levantou-se, pediu que lhe fosse concedido o favor de poder também contar uma história, e contou a mesma."

"A Repetição" (Soren Kierkegaard)


Pela mesma razão ( a lisonja ) que levou os cortesãos a rirem-se com a anedota da rainha, estavam obrigados a rirem-se uma segunda vez, mas para além de terem de fazer entender nesse riso que o ministro não tinha tanta graça como a soberana, deviam ainda reprimir a vontade genuína de se rirem causada pela repetição. A não ser que a rainha fosse a primeira a dar o exemplo de desprezo pelo seu ministro.

Mas seria, de facto, uma repetição? Se pensarmos que a versão da rainha não podia influenciar a segunda versão, porque o ministro era surdo, então era mais repetição do que se ele a pudesse ter ouvido e tivesse, ao mesmo tempo, pretendido ser original.

segunda-feira, 10 de maio de 2010


Ronda (José Ames)

AS ÁRVORES DA LIBERDADE




"Na manhã de 25 de Fevereiro de 1848, soube-se em Chavignolles, por um indivíduo proveniente de Falaise, que Paris estava coberto de barricadas – e, no dia seguinte, a proclamação da República foi afixada na câmara municipal. Este grande acontecimento deixou os burgueses estupefactos."

"Bouvard et Pécuchet" (Gustave Flaubert)


Flaubert diz a seguir que os mesmos burgueses puderam descerrar o peito e aderir cordialmente ao movimento, quando as principais autoridades, desde o tribunal à universidade, deram a sua adesão ao Governo Provisório e, tal como em Paris, o conselho municipal de Chavignolles mandou plantar as "árvores da liberdade".

Esta fisiologia linfática atribuída ao burguês estava de acordo com as ideias da época. Esse burguês é indistinguível da ordem instituída, é ela que o faz prosperar e todos os estremeções que essa ordem possa sofrer são literalmente "viscerais". Mas se a nova ordem se limita a plantar árvores da liberdade, por que não soltar um libérrimo viva do peito desoprimido?



domingo, 9 de maio de 2010


(José Ames)

A VISTA DE DELFT


"Vista de Delft" (Jan Vermeer)


"Estava morto. Morto para sempre? Quem pode dizê-lo. Decerto que as experiências espíritas não mais que os dogmas religiosos são incapazes de provar que a alma subsiste. O que se pode dizer é que tudo se passa na nossa vida como se entrássemos nela com um fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não há nenhuma razão nas nossas condições de vida sobre a terra para sermos obrigados a fazer o bem, a ser delicados, mesmo a ser polidos, nem para o artista ateu se crer obrigado a recomeçar vinte vezes um trecho do qual toda a admiração que possa vir a suscitar pouco importará ao seu corpo comido pelos vermes, como o pano de muro amarelo que com tanta ciência e refinamento pintou um artista para sempre desconhecido e quase só identificado sob o nome de Ver Meer."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


A "Vista de Delft" de Vermeer, emprestada pelo museu de Haia, levou um Bergotte moribundo ao Louvre. O ensaio geral desta morte no romance foi a visita do mesmo Proust a essa exposição umas semanas antes. O seu estado de espírito era o mais fúnebre possível, conforme se pode ler nas linhas que escreveu a uma amiga: "Indo, enfim, um pouco melhor, saí no outro dia ao fim da tarde, em condições para crer que a minha morte seria o fait divers do dia seguinte entre os cães atropelados."

A espécie de imortalidade que alcançam os grandes artistas decerto que não diz nada ao esqueleto na Divisão 85 do Père-Lachaise. E o "fardo de obrigações" carregou-o Proust pelo menos nos últimos dez anos de vida até à exaustão.

É curioso que tenha recorrido ao platonismo para explicar a sua estranha paixão, quando a celebridade e a perpetuação da memória podiam ser motivos suficientes, como eram para os contemporâneos de Platão.

Mas talvez que só o recurso a uma vida anterior estivesse à altura do sacrifício do artista, transcendendo a própria história e elevando esse sacrifício a uma essência desconhecida.

sábado, 8 de maio de 2010


Matosinhos (José Ames)

A HORDA SILENCIOSA


Funerary stele for two young children and their pedagogue


"Ao que se diz, os dirigentes dirigem porque são duma clarividência superior à média. Há, como esse, mitos à espera de urgente revisão."

(Frédéric Lordon in "Le Monde Diplomatique", 10/2/2010)


Infelizmente, não podemos viver sem os mitos e não se destrói um mito quando se quer.

Apesar do descalabro, das provas de imprevidência e da demasiado humana cupidez, ainda são muitos os que pensam que aqueles que alcançaram os lugares de direcção algum mérito devem ter e que, de qualquer modo, ao ocuparem a cadeira do poder foram ungidos pelo espírito de direcção, espírito que não desce sobre o comum dos mortais.

No outro dia, tive acesso ao vídeo sobre um debate do "Plano Inclinado", com Guilherme Valente, Nuno Crato e Medina Carreira. Não acompanho a visão do primeiro do maquiavelismo triunfante do chamado "eduquês". Acredito mais numa invasão silenciosa dos bárbaros da nova (mas realmente velha) pedagogia que pode prescindir dum Átila a comandá-los e que defenda por eles as suas teses abstrusas. Assim, burocraticamente, tentaculando pelos ministérios e as direcções-gerais, atingem melhor os seus fins (bem intencionados, admito). São uma horda pacífica e engravatada com pressa de enterrar toda a herança do passado em nome dum futuro radioso da tecnocracia e do politicamente correcto. Mas este é um mito que não conseguiram inculcar porque esta escola não funciona.

sexta-feira, 7 de maio de 2010


Samotrácia (José Ames)

DEFIXIONES



"(…) na Grécia e em Roma, quando se quer mal a alguém, essa pessoa é votada aos maus demónios enterrando um objecto maléfico ou um tablete de maldição perto da sua casa ou junto dos túmulos. Todo o infeliz podia pois supor que um inimigo o tinha enfeitiçado. Os maus sonhos provavam que no momento mesmo em que se desenrolava o pesadelo alguém estava em vias de enfeitiçar a pessoa dessa maneira (…)"

"L'élégie érotique romaine" (Paul Veyne)


Não é possível descrever melhor a alma promíscua e a mentalidade supersticiosa. Parece que a individualidade é apenas uma ilusão. É um estado quase sibilino, em que tudo é presságio e tudo serve de prova para as paixões.

Sabemos que a crença na feitiçaria sobreviveu até aos nossos dias e que a independência dos espíritos está à mercê de qualquer perturbação social. Não precisamos de chegar ao pânico para sentirmos o poder dos "demónios", termo que podíamos bem substituir pelo de colectivo, porque tudo o que nos rouba a nós mesmos é "demoníaco" e nada nos transporta melhor para fora de nós do que a influência dos outros "en masse".

Alguns juízos públicos apresentados na televisão são verdadeiras ordálias anteriores no espírito ao concílio de Latrão (1215).

Paradoxalmente, o progresso dos media criou um novo tipo de promiscuidade mais eficaz do que os tabletes de maldição.