sábado, 31 de agosto de 2013

Sem título

Aveiro

 

EFÉMEROS MODELOS

 


Constantino (272/337)


"Os funcionários principais do império eram saudados pelo próprio soberano com os enganosos títulos de vossa Sinceridade, vossa Gravidade, vossa Excelência, vossa Eminência, e vossa sublime e maravilhosa Magnitude, vossa ilustre e magnificente Alteza.

"(...) Um observador filosófico poderia encarar o sistema do governo romano como um magnífico teatro, cheio de actores desempenhando papéis de toda a espécie e repetindo a linguagem ou imitando as paixões dos seus modelos originais."

"Declínio e Queda do Império Romano" (Edward Gibbon)


Esta segunda vida dos grandes papéis na política de Roma e Constantinopla parece confirmar o "mot" de Marx sobre a repetição da tragédia como farsa, na história da humanidade.

O espírito não está lá. Uma realidade completamente diferente e que, a maioria das vezes, ignora o seu nome, empunha a máscara do passado, prestando-lhe a sua homenagem ao mesmo tempo que completamente o desvirtua.

Mas essa já não é a situação de hoje.

O passado secou como fonte de inspiração. Em vez disso, servidos por uma coorte de analistas e sociólogos forjamos os nossos efémeros modelos.

E a única repetição é como a da moda, destituída de qualquer sentido histórico.

 

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Sem título

 

(José Ames)

 

SILÊNCIO AMEAÇADOR

http://photographyheat.com

 

"Abordar uma semiótica do silêncio: pode ser uma semiótica da reticência, uma semiótica do silêncio no teatro, uma semiótica do silêncio em política, uma semiótica do silêncio no discurso político, isto é, uma longa pausa (...);"

(Umberto Eco)


Um regime palavroso parece, pelo contrário, o menor dos males na política. Não se concebe, de facto, a democracia sem o exagero da palavra. Os Gregos eram um povo tagarela. Isso talvez os tenha feito 'descolar' do 'estado teológico', como dizia Comte.

O grande silêncio vinha do mundo dos não-cidadãos, essa massa de produtores sem direitos que ainda fazia parte da Necessidade.

A ideia de Hegel é que esse 'silêncio' tinha consequências de longo alcance. O escravo diligente estaria destinado a vencer o patrício cuja virtude não resistiria à corrupção dos costumes. Os estóicos não estavam longe de admitir que o escravo pensava melhor.

O 'menos mau dos regimes' escapará a essa regra do estoicismo? Para além de tudo, a palavra já não é o que era. Não conhecemos a palavra livre a não ser, talvez, nalgumas tertúlias. A palavra política é, em primeiro lugar, mediatizada. Até os partidos que representam um colectivo artificial perdem a fala que lhes é própria e, sobretudo, já não falam para o seu 'nós' , a sua parte do eleitorado, mas para a televisão.

Tudo isto gera um grande desejo de silêncio, mas de um silêncio ameaçador, porque já não faz parte do político. Pertence mais à esfera do doméstico, que era no tempo dos Gregos o mundo privado e, no fundo, o da Necessidade. Arendt dixit.

 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

OS "LIDOS"

Bagno a Mergellina per De Magistris: "mare eccellente"

 

Proibir o livre acesso às praias, mesmo quando sabemos que alguns contornam a lei de forma a dificultar a entrada, arrepelaria os cabelos de qualquer um, neste país de belas praias e extensos areais.

Quando fui pela primeira vez a Itália, fiquei chocado com essa lei, tão pouco democrática. Se não se quiser esportular os guardiões das melhores praias, os chamados Lidos, é preciso procurar um acesso público mais rasca e, por exemplo, na Puglia, quase sempre sem areia e cheias de pedras cortantes.

Podem dizer-me que esse é um efeito da lei da oferta e da procura, dada a escassez de areia em muitas zonas costeiras italianas, e que em Portugal nos podemos dar ao luxo de abrir os areais a todos. Mas não concordo que a lei venha estabelecer e consagrar uma desigualdade tão gritante. Outros factores, não decorrentes da lei, como a distância, a natureza do local, 'corrigem' a saturação das belezas naturais.

Os tesouros artísticos do Vaticano são um exemplo em sentido contrário. A barreira do 'ticket' não basta para o museu ser o espaço que devia ser. É como um centro histórico invadido por automóveis que já não permite nenhuma espécie de circulação. Alguns museus, vítimas do seu próprio sucesso, já não têm nada para mostrar, a não ser multidões a arrastar os pés.

Mas serão os 'Lidos' a solução?

 

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Sem título

 

Burgos

 

OS MISSIONÁRIOS DA ESFINGE

Édipo e a Esfinge de Tebas

"O facto de que a maioria de nós nunca deveria ter ouvido falar de Édipo se não fosse Freud devia tornar-nos conscientes de que somos quase completamente dependentes dos nossos missionários ou intermediários alemães para o nosso conhecimento da Grécia, Roma, Judaísmo e Cristianismo, e que, por muito profundo que o conhecimento possa ser, só há uma interpretação; e disseram-nos apenas aquilo que pensaram que precisávamos de saber."

"The closing of the american mind" (Allan Bloom)

Por detrás deste conhecimento de segunda mão, estão, na perspectiva de Allan Bloom, pensadores como Heidegger e Friederich Nietzsche.

O niilismo filosófico foi aculturado pelos Americanos numa versão "sem abismo", nas palavras deste autor.

A perda de significado e o desvirtuamento são inerentes à vulgarização, isso parece-me evidente.

Mas a tendência para o relativismo de valores é o fruto espontâneo duma cultura que perdeu o sentido do sagrado, muito antes de Nietzsche ter anunciado a morte de Deus.

A filosofia alemã caucionou um processo "natural" que, por sua vez, proporcionou o quadro desse pensamento.

O professor Bloom revela-se aqui o que na polémica marxista se chamaria de idealista. Isto é, ele defende que são as ideias que mudam o mundo.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

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"Florença" (José Ames)

PENSAR PARALISA A ACÇÃO?

"Cada qual age na situação dada, mas então quem pensa na situação dada? Eu vi-os quase todos, e os militares também, sempre à frente ou atrás, deliberando sobre o que teria podido ser (...) ou sobre o que será, assim o crêem, dentro de quinze dias. Cada qual pode observar que prever é o que maravilhosamente nos distrai de ver."

Alain ("Souvenirs concernant Jules Lagneau")

Na situação concreta e que pede decisão pronta, entretemo-nos com os possíveis que nunca foram, nem nunca serão, e é isso a que chamamos pensar a acção.

Muito bem. Vejo até uma razão para divagarmos dessa maneira. É que geralmente quando conjecturamos sobre a possibilidade, recorremos a ideias feitas, tiradas da nossa experiência passada, e isso é sempre mais fácil do que conceber ideias novas adequadas à novidade da situação.

Pensar a situação, seria então realmente ver. Porque o que é ver sem pensar?

O ser dividido é a experiência mais comum.

Quantas vezes, em frente ao mar, me pergunto o que seria preciso para estar realmente ali, com todo o pensamento e todos os sentidos.

 

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

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"Rua Escura" (José Ames)

 

A RAZÃO ALUCINADA


calgary.rasc.ca/africapix.htm

"O transcendente é o que não pode ser englobado."

Emmanuel Lévinas

A ideia do Todo, que por definição englobaria tudo o que pode ser pensado, encontra aqui um limite que tem a ver com a ideia do Sujeito.

O Todo não poderia incluir Deus como parte da colecção, ou seria apenas um produto da nossa razão, como a própria ideia de totalidade.

Que haja coisas que não possam ser pensadas e que se incluem no Todo de contrabando é o que decorre de podermos conceber a razão como uma finalidade humana.

Poderíamos até falar, neste caso, da razão como instrumento alucinatório.

 

domingo, 25 de agosto de 2013

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"Dogville" (José Ames)

 

A SESTA DE UM FAUNO

Leão Tolstoi (1844/1930)


Leão não resistia à tentação de deitar Sofia no sofá. Ele, para quem o comércio entre homem e mulher é clandestino aos olhos de Deus. Ao ponto do desejo de descendência ser uma falsa razão, como se lê na “Sonata a Kreutzer”.

Mas depois da queda, o grande homem devia apontar, com o rigor dum contabilista, as vezes. Isso devia permitir-lhe não ter a desculpa do esquecimento e submeter a imaginação a um rol sem contemplações. E, pensando bem, isso prova que o escritor era sincero no seu arrependimento, e que quando jurava não tinha em mente nenhuma escapatória.

Todo o homem cai, e não é o cair que é “grave”, mas o corpo e a alma que se convence de que existe uma necessidade. Assim, libertar-se desse enredo é ir além da aparência e negar a prova. Para o que é preciso alguma fé em si mesmo. Porém, aquele que promete, sabendo que não vai cumprir, condena-se à partida, e a relação com a verdade moral corrompe-se. Tornamo-nos aquilo que somos para os outros: homens sem palavra.

Um erro inaugural compromete todo o raciocínio. No frontão do templo da sabedoria o “conhece-te a ti mesmo” é perdão e não juízo condenatório. É preciso saber encontrar a coragem e um espírito novo, depois de cada malogro. Por isso, ao reduzir a paixão a número, Tolstoi se desembaraçava do libelo contra o espírito e da indulgência descritiva que é uma introdução ao próprio mal.

Diz-se que Deus vê tudo, e pode-se entender isso assim: no nosso espírito, a unidade da consciência é lei; a forma mais segura de não incorrer na falta é não dar azo a qualquer automatismo da associação mental. Tudo se converte em pensamento, e esse é precisamente o pecado contra o espírito. Não se pode deixar de pensar naquilo a que um interesse vital deu um nome. As palavras armam-nos ciladas e o ideal é envolver a queda inevitável do silêncio sem legendas.

Mas é preciso que a ideia exista, que já tenha sido pensada. Desenho na areia a forma que imagino. Apago. Repito noutro espaço liso. O sol convoca todos os faunos depois da sesta. A imprudência começou já não sei onde. Era necessário um outro corpo para pensar outra coisa. A acção que arrisca uma mudança de cenário torna-se decreto que antecipa.

sábado, 24 de agosto de 2013

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"Erosão" (José Ames)

 

A MUSA CEREBRAL

 


Denis Diderot (1713/1784)


"Ah! como me seria possível revelar a fraqueza de um sentido que deveria ser em mim mais perfeito do que nos outros, um sentido que eu outrora possuí na maior perfeição, numa perfeição como certamente pouca gente do meu ofício alguma vez teve! - Oh! isso não posso!"

Beethoven ("Testamento de Heiligenstadt")


Não podemos imaginar um pintor cego, mas o mestre de Bonn, aparentemente, é o exemplo de que a melhor música pode ser escrita sem ouvido.

Sabemos que só ele era capaz de "ouvir" algumas passagens do que tocava e que teve de renunciar à condução de orquestra.

Um cego poderia imaginar uma pintura e descrevê-la. Baseado na memória, ou na sensação do tacto, se fosse cego de nascença, a acreditar no que diz Diderot ("Lettre sur les aveugles").

Mas seria isso ainda pintura? E a música que já está na sua forma acabada na cabeça do compositor?

Nestas experiências, a arte ignora a resistência da natureza (nos suportes, materiais e instrumentos) e tenderá, por isso, a ser demasiado abstracta.

Mas diz-se que era assim que Mozart compunha. E sem correcções ainda por cima.

 

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

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(José Ames)

A REALIDADE TEÓRICA

Allan Bloom (1930/1992)


"A improbabilidade e decrepitude teóricas são, como toda a gente sabe, a causa principal da doença da União Soviética. E o Mundo Livre não está muito atrás. Nietzsche é o mais profundo, mais claro e mais poderoso diagnosticador da doença. Afirma que existe uma necessidade interior para abandonarmos a razão com bases racionais - que portanto o nosso regime está condenado."


"The Closing of the American Mind" (Allan Bloom)


Bloom escreveu estas linhas antes da "débacle".

Mas devem contar-se pelos dedos os que concordarão com o diagnóstico de Nietzsche e que vejam uma causa teórica por detrás da Queda do Muro de Berlim.

Porém, nenhuma das outras explicações parece estar à altura do que se passou, pois o que mais mudou foram as ideias.

Nem os desvios duma pretensa "linha correcta", nem o culto da personalidade, nem o contexto internacional ou a perfídia do inimigo de classe valem alguma coisa para dar conta do facto de as pessoas terem deixado de acreditar.

Nenhum regime da História se reclamou tanto da Razão e da Ciência. Por isso, a teoria tem de ser o nó do problema.

 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

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Aveiro (José Ames)

 

O MOÇO DE ESCRITÓRIO

Fernando Pessoa

 

"A mania do absurdo e do paradoxo é a alegria animal dos tristes. Como o homem normal diz disparates por vitalidade, e por sangue dá palmadas nas costas de outros, os incapazes de entusiasmo e de alegria dão cambalhotas na inteligência e, a seu modo, fazem os gestos da vida."

"O Livro do Desassossego" (Fernando Pessoa)

A inutilidade de tudo. A redução ao absurdo como "bebida predilecta" para um organismo exangue e incapaz de agir por falta de ilusões, de ser habitado pelo deus.

Neste deserto, até o quotidiano do escritório da rua dos Douradores assume proporções trágicas.

O niilismo filosófico encontrou em Pessoa o seu cantor. Ele desdobra-se nos outros nomes para povoar a língua, como que para provar que "viver não é preciso".

Mas, com o abalo que sentiu pela partida do moço de escritório, apanhamos o abúlico doutrinário em flagrante delito:

"foi uma parte vital, porque visível e humana, da substância da minha vida. Fui hoje diminuído. Já não sou bem o mesmo. O moço de escritório foi-se embora!"

 

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

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"Gestação" (José Ames)

 

RAZÃO E PRECONCEITO

Jean-Jacques Rousseau (1712/1778)



"A razão tornou-se um preconceito para nós. Rousseau observou que no seu tempo muitos homens, que eram liberais, um século antes teriam sido fanáticos religiosos. Concluiu que eles não eram realmente razoáveis, mas, ao contrário, conformistas. A razão transformada em preconceito é a pior forma de preconceito, porque a razão é o único instrumento para libertar o preconceito."


"The Closing of the American Mind" (Allan Bloom)


E isto porque as ideias não são coisas que se adquiram e conservemos intactas, ou com a simples usura do tempo, pela vida fora.

Por maioria de razão, quando a elas aderimos pela atracção da opinião pública e sem as termos formado através das pessoais vicissitudes.

Neste caso, mudando o contexto social, conservamos, por coerência a forma exterior, mas o conteúdo pode ter deslizado 180ºs.

É assim que alguns "revolucionários" dos 20 anos se tornam, com os anos, empedernidos conservadores, sem no entanto abdicarem dos punhos erguidos e do agitar de bandeiras.

A pertença torna-se, simplesmente, mais importante do que a alma.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

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Génova

 

O CRITÉRIO DA VERDADE

 




"Na ambiguidade dos valores, é sempre o falso que leva a melhor. É o nosso único recurso contra o indecidível, contra o desaparecimento dos critérios de verdade. Por conseguinte, quando os critérios estéticos de distinção desaparecem (como na apreciação da Arte actual), tudo faz referência ao carácter de autenticidade ou de falsidade. A autenticidade, a assinatura de uma obra, leva a melhor sobre o seu valor."

"O paroxista indiferente" (Jean Baudillard)


Diz Baudillard que, na era do vírus, da "vertigem da indiferença", o bem é contaminado pelo mal, e reciprocamente, deixando-nos sem poder distinguir.

Mas o bem e o mal já foram há muito substituídos pela teoria dos valores, também eles atacados pela ambiguidade e pelo artifício.

Esta obsessão por uma marca do "autêntico" que, em última análise, nos remete para o corpo físico, significa que "o falso levou virtualmente a melhor", ou, por outras palavras, que tudo se volveu insignificante e artificial e que já só podemos encontrar um critério válido fora do Mundo, numa Natureza que guarda ainda o segredo da fundação e da transcendência.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

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(José Ames)

 

GASTOS LOUCOS

http://www.ehow.com

 

Dizia Alain que a verdadeira desordem não era existirem grandes fortunas; a verdadeira desordem era haver loucas despesas.

Entende-se que as 'grandes fortunas' não se metem debaixo do colchão, caso em que tudo seria muito diferente. António Champalimaud, por exemplo, terá gasto dinheiro 'loucamente'? Parece que não foi nisso que se distinguiu, mas antes no seu empreendorismo narcísico ou em fazer fortuna com o dinheiro dos outros, fortuna que nunca foi para 'debaixo do colchão', nem foi ocasião para extravagâncias ruinosas para o país, mas que ele teria podido permitir-se.

Um burocrata do Estado, sem arriscar nada do seu 'pé-de-meia' podia fazer igual figura, sempre com o dinheiro que não era seu, mas se falhasse, o pior que lhe podia acontecer era ter de apresentar a demissão. Há aqui uma grande diferença.

Voltando ao aforismo alainiano, a escala em que uma 'grande fortuna' pode ser oferecida em 'potlatch' aos deuses inferiores, pode não ser muito menor, em certos casos, do que uma política governamental irresponsável ou simplesmente errada, mas no nosso país será esse o estilo dos muito ricos? A Inglaterra deve gastar mais com a lista civil da Rainha do que esses outros aqui em despesas 'sumptuárias'.

Portanto, a 'verdadeira desordem' tem outra causa. E nem o génio individual dos nossos hipotéticos 'grandes empresários', nem os putativos esforços de quem nos governa em prol do 'bem comum' chegam para endireitar a nossa jangada.

Uma coisa só parece certa: é que não há rumo, nem pode haver (fora da retórica). Mas basta uma ficção, como a de reivindicar o destino quando ele é conhecido.

 

 

domingo, 18 de agosto de 2013

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Salamanca

 

O MARQUÊS DE HORÁCIO

 

Condorcet, que fugia aos Jacobinos, depois de ter criticado a Constituição Montanhista, foi denunciado pelo livro que trazia no bolso (Hugo). O lugar foi Bourg-La Reine, que se tinha tornado em Bourg-Egalité.

Era um livro do poeta Horácio, o menos 'subversivo' dos autores latinos. Mas esse gosto 'esquisito' foi suficiente para desmascarar o marquês filósofo e matemático, aos olhos dos zelosos cidadãos que o prenderam.

O fanatismo da razão é o pior dos fanatismos. Não precisa de ser auxiliado pela cólera para mostrar a lâmina. O actor que interpretou Robespierre no "Danton" de Wadja (Wojciech Pszoniak) revela-nos um homem imperturbável e glacial, desafecto: a sua pessoa desvia-se para deixar passar o comboio fantasma. O comboio com as faixas e as bandeiras do futuro, com a deusa da Razão no lugar do maquinista.

A ironia da situação não pode ter escapado ao iluminista. Traído por Horácio, Deus meu!

 

sábado, 17 de agosto de 2013

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(José Ames)

 

TINTURA DE TORNESOL

 

Jules Michelet (1815/1879)

"O prelado lembrava que Deus tinha muitas vezes revelado a virgens, por exemplo às sibilas, aquilo que escondia aos homens. O demónio não podia fazer pacto com uma virgem; era preciso pois que se assegurassem que ela era de facto virgem. Assim, a ciência levada ao seu extremo, não podendo ou não querendo explicar-se sobre a delicada distinção entre boas e más revelações, humildemente remetia das coisas espirituais para o corpo, e fazia depender do mistério feminino esta grave questão do espírito."

"Jeanne d'Arc" (Jules Michelet)

A incrível história de Jeanne, uma pastora de 18 anos, que se apresentou ao Delfim de França com a missão de expulsar os Ingleses e, depois das vitórias militares, ter tornado possível a sagração, em Reims, de Carlos VII, acabou queimada como feiticeira, é a mais maravilhosa das apologias do Cristianismo e uma verdadeira "Imitação".

É o sacrifício do Justo na sua versão feminina, tema que não podia deixar de apaixonar o maior historiador da França, cuja inspiração permanente foi uma espécie de fisiologia do transcendente, como aquela que atribui à Mulher.

O que impressiona naquela citação é a implícita aliança do demónio com o sexo. Como se a Igreja, através dela, dispusesse dum teste tão "visível" como o da tintura de tornesol.

Mas é o que nos parece uma ingenuidade quase incompreensível em todos os actores da tragédia que explica o heroísmo de Jeanne e a credulidade do poder que por um momento lhe foi confiado.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Sem título

Bragança

 

AS IDEIAS

Platonic Banquet - Feuerbach, Anselm Friedrich

"Não é fácil para o filósofo renunciar ao conhecimento, mas a grande descoberta do século vinte é, provavelmente, a de que, mesmo assim, é preciso renunciar."

"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)

Evidentemente, não são apenas os sistemas que estāo em causa. Nenhum dos 'istas' tem entrada na Nova Academia. E, por estranho que pareça, até os cultores do aforismo ficam à porta. Talvez, a crença num princípio unificador - de que Einstein, por exemplo, nunca desistiu - encontre graça aos olhos dos guardiões do Templo.

Por um lado, o conhecimento absoluto em que se acreditou durante milénios, a ideia ingénua da acumulação do saber - não tínhamos diante de nós o exemplo da 'lousa por escrever' que é cada novo ser que chega ao mundo? - e que é, continua a ser, o melhor que temos, por outro, como diz Musil, temos de renunciar a ele para seguir em frente.

Esta renúncia é mais um esquecimento, como o provocado nas almas pelo rio Letes.

Inesperadamente, desembocamos em Platāo. Encontraremos o caminho, como se o percorrêssemos pela primeira vez. Lembrar-nos-emos das novas ideias e da ligação do corpo e da alma...

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quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Sem título

(José Ames)

 

A PÉROLA E A OSTRA

 

Diz Michel Houellebecq ('Les particles élémentaires') que o 'eu' é uma nevrose intermitente. Nessas intermitências, não coincidimos com o que somos. Não por culpa nossa, evidentemente, pois começamos por não saber o que somos.

Proust foi o primeiro a falar nas 'intermitências do coração', a propósito do amor. Para onde vai o coração nesses intervalos? E de que realidade se fala ao invocar a nevrose do eu?

A pérola e a ostra. Podíamos chamar à primeira o sintoma do que 'vai mal' na existência da segunda? Se essa é a realidade, damo-nos bem com ela, porque apreciamos ambas.

Mas, em princípio, a nevrose devia fazer-nos infelizes. A pérola da nossa espécie, a consciência desenvolvida, seria então o sintoma de um desequilíbrio, de uma separação irremediável?

Segundo uma das personagens do romance, Michel Dzerjinski (como o chefe da Tcheka), não é a consciência que está em causa, mas o seu aprisionamento pelo eu, o que é também uma questão gramatical.