quarta-feira, 31 de dezembro de 2008


(José Ames)

ECONOMIA DA DESIGUALDADE


Karl Polanyi (1886/1964)


"E quando Karl (Polanyi) deixou a África Ocidental dos séculos XVI e XVII e se virou para a Grécia clássica, a Grécia de Platão e Aristóteles, sofreu o mesmo choque. Foi a escravatura e a caça a escravos da sua própria raça, da sua língua, da mesma carne e do mesmo sangue que permitiu às cidades-estados gregas, e sobretudo a Atenas, terem desenvolvimento económico e liberdade para os seus cidadãos e estabelecer um sistema económico em que a reciprocidade e a redistribuição, e não as forças de mercado, regulavam as relações dentro da sociedade, com a força de trabalho mantida fora do sistema de mercado."

"Memórias de um economista" (Peter Drucker)



Segundo Drucker, Polanyi não conseguiu descobrir nos seus estudos históricos uma alternativa ao sistema de mercado que não fosse a servidão, por muito que odiasse "a crença no mercado de Ricardo e Bentham e também dos demónios contemporâneos de Karl, como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek da Escola Austríaca".

Isso não quer dizer, evidentemente, que a servidão não tenha as suas contrapartidas (insuportáveis para a consciência moderna), como se existisse, de facto, qualquer coisa como uma economia da desigualdade. Como diz o autor, foi a escravatura que permitiu, na Antiga Grécia, os primeiros esboços da liberdade e da democracia. Mas outra das conclusões de Polanyi, não menos "chocante", é que "o comércio dos escravos e as incursões para capturar escravos", contra a ideia feita, não foram "violentamente impostos por interesses rapaces (árabes no Leste, brancos no Oeste) a sociedades negras amantes da liberdade e harmoniosas", mas sociedades estáveis e economicamente sólidas, baseadas na redistribuição e na reciprocidade, como a do Daomé, assentavam "essencialmente no comércio de escravos", "com as trocas de mercado confinadas às exportações e importações rigorosamente separadas da economia interna".

Tal como a Grécia, a sociedade daomiana oferecia os dois lados da moeda. Mas mais próximos de nós estão os exemplos do chamado "socialismo real" que não deixava de proporcionar à sua nomenklatura as vantagens duma sociedade "estável e economicamente sólida", com a diferença em relação aos cidadãos atenienses de que não se podiam referir à maioria excluída, pela razão da desigualdade não poder ter existência oficial.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008


Braga (José Ames)

SE O ANIMAL ABANA A CABEÇA



"Ainda hoje, rigorosamente se cuida para que nenhum animal, aspergido pela libação, seja abatido se não tiver dado o seu acordo abanando a cabeça."

"Propos de table" (Plutarco, citado por Elias Canetti)


É isto uma anedota relatada por um pagão da decadência, logo, impregnado de algum cinismo, ou é uma perfeita metáfora política que esclarece a relação do povo com o poder?

Sabemos como as formas são importantes, embora elas sejam, para uma certa tradição, o sinal da inautenticidade ( a democracia formal, por exemplo). Respeitar a forma (quando o animal abana a cabeça), mas sabendo-se que não pode haver nenhuma identidade entre os motivos desse gesto e as suas consequências.

A única salvação para os "áugures" da política é que eles estão tão enganados quanto as vítimas do sacrifício.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008


(José Ames)

ADAPTAÇÃO


A Amiba


"Assim, o comportamento exploratório e a resolução de problemas criam novas condições à evolução dos sistemas genéticos, condições essas que afectam profundamente a selecção natural desses sistemas. Pode dizer-se que, após a obtenção de uma certa latitude de comportamento - e foi atingida até por organismos unicelulares (...) - a iniciativa do organismo em seleccionar a sua ecologia ou habitat vai à frente, logo seguida pela selecção natural dentro do novo habitat."

Nota do autor em "A racionalidade das revoluções científicas" (Karl Popper)


Popper sustenta que o ponto de vista biológico permite compreender a ideia do progresso cientifico, mas quando relaciona o comportamento exploratório com o comportamento de liberdade, entrevemos, ao mesmo tempo, o alcance político deste modelo.

A base genética daquele comportamento sugere, no contexto dos sistemas políticos, que a acção humana poderia ser irrelevante quanto ao essencial, no que toca à adaptação (por exemplo, por um efeito de compensação dos tropismos sociais e entre os desencontros das acções dos indivíduos).

Como o "comportamento exploratório", na sociedade política, não está confinado à actividade técnico-científica (que de resto não é especialmente motivada pela adaptação) e nele se devem incluir, por exemplo, as revoluções, fracassadas ou não, a função de adaptação ecológica seria tão inconsciente e involuntária como a de base genética...

domingo, 28 de dezembro de 2008

A DESCOBERTA DA PERSONAGEM



"Oiça, querida Annette," disse o príncipe, tomando subitamente a mão de Anna Pavlovna e por alguma razão arrastando-a para baixo. "Trate-me disso e eu serei para sempre o seu mais devotado escravo-escrafo, com um f, como um dos meus anciões de aldeia escreve nos seus relatórios. Ela é rica e de boa família e isso é tudo o que eu quero."

"Guerra e Paz" (Leão Tolstoi)


Aquela razão desconhecida para baixar a mão é explicada mais à frente. "E com a familiaridade e a graça que lhe eram peculiares, levantou a mão da dama de honor até aos seus lábios, beijou-a e fê-la oscilar para cá e para lá, encostando-se na cadeira e olhando noutra direcção."

Tosltoi adopta aqui o ponto de vista dum espectador da cena, como se não soubesse que o príncipe precisava duma certa amplitude para o movimento que pretendia imprimir à mão de Anna Pavlovna.

Suponho que na maior parte dos romancistas o futuro das personagens é, em grande parte, desconhecido do próprio autor, mas aqui trata-se do minuto seguinte. E quem é assim capaz de descobrir a sua personagem, momento a momento, escreve com ela, mais do que é o seu "autor". É habitado por outro espírito cuja vida é a escrita.

sábado, 27 de dezembro de 2008


Canterbury (José Ames)

O FANTASMA DE HELENA



"Muitos deles, não sabendo que modificação pode ser ou não perigosa, preferem conservar tudo, sem se darem conta que a conservação no meio das circunstâncias que mudam constitui ela própria uma modificação cujas consequências podem ser desordens. A maior parte invoca as leis económicas tão religiosamente como se tratassem das leis não escritas de Antígona, quando mudam quotidianamente diante dos seus olhos."

"Ne recommençons pas la guerre de Troie" (Simone Weil)


De facto, o conjunto das relações económicas a que actualmente se dá o nome de capitalismo e que resume a palavra sistema não se deixa compreender pela ideia dum jogo de mecanismos que pudessem ser isolados e cuja função se pudesse programar e prever.

Os que julgam "pôr um pauzinho na engrenagem" trazem apenas mais complexidade ao sistema e contribuem para uma melhor adaptação deste ao seu ambiente. É uma negatividade completamente "recuperada", como se dizia há uns anos atrás, contra as intenções dos seus autores.

Os que, pelo contrário, defendem o statu quo, opondo-se a qualquer mudança (excepto às admitidas pelo príncipe de Salina, para que tudo fique na mesma), obteriam, naturalmente, o contrário do que desejam, quando tudo muda, não fosse a sua "acção" o contrapeso da dos seus adversários políticos.

Quando os fenómenos económicos são cristalizados "numa abstracção impossível de definir, e se atribui a essa abstracção, sob o nome de capitalismo, tudo o que cada um sofre e vê sofrer à sua volta", "basta que um homem tenha carácter para devotar a sua vida à destruição do capitalismo ou, o que é o mesmo, à revolução."

Simone diz que destruir uma abstracção não faz sentido, mas que também não fazia sentido fazer uma guerra de 10 anos por uma mulher que, segundo Eurípides, nem sequer estava já em Tróia.

A nossa acção parece ter um objecto tão real quanto o próprio sistema que a inspira.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008


(José Ames)

OS DIMINUTIVOS DE PESSANHA


Pirilampos


"Mas voltemos aos bichos. Fora do domínio da arte e entrando na realidade da vida, é interessante registar que há no Japão sítios afamados para ir ouvir o coaxar das rãs, outros sítios para ir ver os lumes vagabundos dos pirilampos cruzando-se no espaço, durante a noite escura; outros ainda para ir ouvir cantar - se o termo é admissível - certos insectos, uns semelhando os nossos grilos, outros de espécies diferentes. E a todos estes sítios concorre o povo em multidão, como para uma festa, em determinadas épocas do ano."

"Cartas" (Wenceslau de Moraes)


Não vejo, entre nós, nada que se pareça com este amor da natureza, a não ser nas crianças que, certamente, nunca achariam absurda a ideia de ir de propósito ouvir um coro de rãs ou de cigarras.

Mas a influência ocidental e o espírito positivo, provavelmente fizeram deste culto uma memória do passado.

Para aqueles de nós que vivem junto ao mar, decerto, a contemplação da natureza continua a fazer sentido, mas é como se o amor das pequenas coisas, em que primavam aqueles nipónicos, já não nos fosse dado.

Essas coisas, por outro lado, fazem-me lembrar os diminutivos na poesia de Pessanha, outra alma fascinada pelo Extremo Oriente.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008


Foz (José Ames)

QUANDO ELA É MAIS PRECISA


http://leftwingconspiracy.com/wp-content/


"Em parte nenhuma a liberdade é mais importante do que ali onde a nossa ignorância é maior - na fronteira do conhecimento, por outras palavras, onde ninguém pode prever o que se vai encontrar um passo mais à frente."

"The Constitution of Liberty" (Friedrich Hayek)


Porque não se vê imediatamente a relação entre a liberdade e a riqueza e o progresso social é que parece que ela aproveita mais aos que se sabem encaixar no poder, aos que beneficiam de um golpe de sorte ou de uma situação adquirida sem esforço. Em suma, a liberdade parece favorecer os fortes em detrimento dos fracos e dos que nada têm.

Se em cima disto, acreditarmos que são os sistemas, a economia ou a política que "determinam", no fim de contas, o papel de cada um, a liberdade ficaria reduzida a bem pouco, àqueles actos que, precisamente, não põem em causa o "status quo".

Contra esta análise simplista dos factos sociais, devíamos aprender com os paradoxos da ciência moderna e admitir que a verdade pode ser contra-intuitiva.

Mas é preciso reconhecer que o princípio de que a liberdade só começa com a Lei entra em contradição com o facto de que, na realidade, o sistema é que é a lei. A liberdade pode não ter condições de existência onde é mais celebrada como "ideologia".

Como diz Hayek, é quando não sabemos, que precisamos do concurso de todos e, sobretudo, dos mais capazes, que só se revelam se todos puderem desenvolver as suas potencialidades. Só assim poderemos escapar às consequências das decisões erradas, tanto mais catastróficas quanto mais forte e mais centralizado for o poder que toma tais decisões, poder que, como crítica, só conhece a consumação do desastre.

As ditaduras não podem tratar os seus casos Madoff que se confundem com elas, porque os ditadores se vão prender a eles mesmos.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008


(José Ames)

PRENÚNCIOS DA ERA TÉCNICA


Como dizem os franceses, Eça não vai por quatro caminhos no que tem a dizer. Em "A Cidade e as Serras", há uma discussão de ideias de força desigual, representando Zé Fernandes o bom senso e a medida humana (como outro Sancho Pança), enquanto Jacinto é um apóstolo da Mecânica (hoje diríamos Tecnologia), mas superficial, limitando-se a estar informado por um certo tipo de revistas e a apetrechar o 202 com a última novidade, pronto a rogar pragas à menor avaria, como que a dar a deixa ao homem do campo que somará as frustrações do amigo, como a do peixe da Dalmácia para honrar o Grã-Duque, encravado no elevador, e, na altura certa, lhe saberá despertar o desejo pela rusticidade natal de que o célebre arroz de favas será o remate apropriado.

A "má-vontade" do romancista contra a técnica e o mundo de operários e engenheiros de que o burguês dos Campos Elísios se torna refém para se poder dizer "à la page", resume-se neste mimo de bizantinice: uma máquina para apertar os botões das ceroulas.

Em comparação com o idealizado regresso à terra, o falso conforto da "Civilização" e a dependência de alguém como um electricista para reparar os constantes chiliques da instalação não têm qualquer hipótese.

Mas vê-se que uma posição equilibrada nos daria um mau romance por nos remeter para os lugares-comuns. Eça não pretendeu ser justo ou injusto em relação à técnica (apesar de tudo, nas suas viagens, sempre se servia do princípio da máquina a vapor), mas apenas cobrir de ridículo os estrangeirados e os que se entregam de olhos fechados à sedução de cada novo brinquedo.

Mas Jacinto nem essa desculpa tem, porque se aborrece mortalmente.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008


Serra da Boa Viagem (José Ames)

O FUNDO DA QUESTÃO


http://www.relationshiptherapylondon.co.uk/


C. morreu.

Por quê esta entrada no diário de Scoby (em "The heart of the matter"), escondida entre os registos anódinos do dia a dia sobre as refeições e o tempo?

Neste extraordinário romance, Graham Greene fala-nos de um homem reservado, secreto, camuflado na sua função de polícia numa colónia africana que podia ser um claustro e o seu emprego de porteiro do convento, interceptando, em vez dos servos e do camponês, o comerciante sírio ou os filhos de Cham.

O paraíso possível para Scoby é um estado próximo da irresponsabilidade, não ter obrigações, não as da profissão, naturalmente, mas as que envolvem a sua salvação, porque ele acredita que temos de responder pelos que nos estão próximos ou que a sorte colocou no nosso caminho.

A partida de Louise, a mulher, atingida pelo "paludismo" moral do europeu é um enorme alívio, mas só dura até conhecer outra pedra rolada pelo destino: Helen, que podia ser a sua filha perdida, C.

As duas palavras que escreveu no diário não exprimem nada. É como se ele tivesse inventado uma lápide só para si e a mnemónica de um epitáfio.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008


(José Ames)

O CUL-DE-SAC LEIBNIZIANO

Gottfried Leibniz (1646/1716)


"Mas o todo, dizes, precisa de uma causa. Respondo que a união destas partes num todo, como a união de várias e distintas regiões num reino, ou vários e distintos membros num corpo, é apenas realizada por uma acto arbitrário da mente e não tem influência alguma na natureza das coisas."

"Diálogos sobre a religião natural" (David Hume)


O todo é então uma ideia da razão. Não é o que a palavra relação quer dizer? As coisas só se relacionam entre si dentro de um sistema. E talvez essa seja a primeira necessidade da consciência.

O sujeito é posto pelo mundo que, desde logo, é uma totalidade.

É preciso pensar nas filosofias orientais de imersão do sujeito na natureza divinizada para que o sujeito desapareça com a totalidade.

No entanto, não há nada de mais contra-intuitivo porque "vemos", sem sombra de dúvida, que tudo está ligado. Criacionistas e evolucionistas estão de acordo neste ponto.

Que novo Copérnico tem de aparecer para as desligar umas das outras?

Devemos, talvez, recuar até Leibniz para encontrar um dos desvios do pensamento que não teve descendência. O todo está em cada coisa.

domingo, 21 de dezembro de 2008

A UTILIDADE DO RUÍDO


p style="text-align: justify;">

"De todo o meu trabalho na gestão e na "autonomia da ordem industrial", considero as minhas ideias sobre a comunidade fabril auto-dirigida e sobre o trabalhador responsável como as mais importantes e as mais originais. Mas as administrações tendem a rejeitar essas ideias como uma "usurpação" das suas prerrogativas. E os sindicatos têm-se mostrado francamente hostis, pois estão convencidos de que precisam de um "patrão" visível e identificável que possa ser combatido como "o inimigo".

"Memórias de um economista" (Peter Drucker)


Drucker ficou impressionado com os níveis de produtividade e de qualidade alcançados na General Motors, durante a segunda grande guerra, quando, por falta de engenheiros e de supervisores, foi preciso recorrer a operários sem preparação e se verificou que a equipa chamou a si a responsabilidade da tarefa a cumprir.

Não sabemos é que parte representa o espírito patriótico nesse entusiasmo criador. Em condições normais, a produção depende mais da organização e das obrigações do que do idealismo e da boa vontade.

Nenhuma empresa pode funcionar sem um certo grau de previsibilidade e de certeza, coisas que o entusiasmo, como se sabe, não pode garantir.

Na posição das partes, cada uma a seu modo e com o seu "colorido", reflecte-se, pois, uma realidade da estática social, como diria Comte. O poder patronal resiste naturalmente a ver-se diminuído como quer que seja e os sindicatos, por sua vez, temem a complexidade como os crentes o diabo, visto que para terem alguma força precisam sobretudo de ideias aparentemente concretas, fortes e mobilizadoras.

Se algum dia o sistema económico fosse entendido como tal, com os papéis de cada um determinados estruturalmente, um novo artifício que não o do antagonismo das classes tinha de tornar-se a explicação comum.

Tal como as coisas se encontram, alguma dose de "ruído" é necessária para o contrato social parecer ainda válido.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

AS DUAS FLORES DE CEREJEIRA


Wencesau de Moraes(1854/1929)


"(...) ou comunga na vida japonesa, inicia-se nos seus segredos íntimos, ama-a nas suas modalidades, e assim a existência se lhe gasta, se consome rápida, esgazeada em admirações, doidejando em vertigens; ou se retrai, se isola, odeia a natureza que não compreende, odeia o exílio, vive de saudades da pátria, entre as quatro paredes do seu lar, ou dos clubes cosmopolitas da colónia forasteira. Não é preciso mais para justificar o tique de loucura, facilmente perceptível, da enorme maioria destes expatriados, homens e mulheres, após curta residência no país japonês."

"A Primavera" (Wenceslau de Moraes)


Se é preciso viver fora do país natal, devemos fazer como Moraes: admirando tudo à nossa volta quando se trata da natureza, e se os costumes parecem demasiado afastados dos nossos ou a política incompreensível e deixando a desejar, estudá-los como a outra natureza que tem o poder de nos fazer parecidos com ela.

A paixão do povo japonês pela natureza, o seu panteísmo ingénuo, estão expressos, segundo o autor nesta local dum jornal da terra:

"em Himeji já se deu fé este ano de duas flores de cerejeira." E o nosso compatriota comenta: "duas, é sobretudo delicioso!... O homem do Ocidente pensa, o japonês vê; eis a enorme distinção que os separa."

Estará este retrato dessa cultura assim tão longe do "Império dos Signos", tal como no-lo mostrou Roland Barthes há alguns anos?

Signos, como uma paleta, menos para ler do que para compor.


Chester (José Ames)

TAMBÉM ELE FALTAVA ÀS REUNIÕES



Trotsky, na biografia do seu arqui-inimigo, comenta as inexplicáveis ausências de Staline no comité central, tanto mais que ele "não tomava parte no trabalho do soviete e do comité executivo central e não ia às reuniões. Evidentemente, ele próprio não atribuía à sua participação nas sessões do comité central a importância que agora lhes dá. Num certo número de ocasiões, a sua ausência explica-se indubitavelmente por alguma afronta recebida e pela irritação que isso lhe causava: quando não pode impor a sua vontade, ele prefere não se mostrar e sonhar melancolicamente na desforra."

"Staline" (Leão Trotsky)


É muito difícil tratar um inimigo com justiça, porém, estamos inclinados a encontrar neste retrato alguma verosimilhança. Mas baseados em quê senão no percurso do ex-seminarista, da astúcia que revelou "sequestrando" um Lenine diminuído e "com os pés para a cova" e no resto da sua carreira?

Para imaginar o que se seguiu, temos de partir do sentimento que melhor definiu o homem e que está todo no retrato de Trotsky e, sobretudo, nos efeitos devastadores do seu encontro com o poder absoluto.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008


(José Ames)

A JANGADA DO BOM SENSO


Giovanni Lanfranco
(S. Agostino meditate about mystery of Trinity )


"A história eclesiástica confirma suficientemente estas reflexões. Quando se inicia uma controvérsia, algumas pessoas pretendem sempre prognosticar infalivelmente o resultado. Aquela opinião, dizem, que for mais contrária ao bom senso prevalecerá seguramente, mesmo quando o interesse geral do sistema não exige essa decisão."

"História natural da religião" (David Hume)


O bom senso antes de Copérnico era uma coisa, depois outra. Quem pode dizer que a mitologia grega está mais afastada do bom senso do que o mistério da Trindade?

Se o bom senso for uma espécie de instinto que nos preserva da "loucura" da razão (pois hoje temos que admitir que há vários tipos de racionalidade) e da fuga para o abstracto, na sociedade moderna, ele encontra-se cercado pela abstracção e pela lógica dos sistemas. Como numa jangada, não pode pôr o pé fora do relacionamento humano mais básico sem cair ao fundo.

A teoria dos "Mundos Paralelos", por exemplo, que alguns cientistas defendem com a seriedade dos teólogos ilustra a tese de Hume:

"(...) é assim que um sistema se torna mais absurdo no fim simplesmente por ter sido razoável e filosófico no início." (ibidem)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008


Lisboa (José Ames)

COLAPSOS


Adolf Hitler (1889/1945)


"Hitler não é um bárbaro, prouvesse a Deus que fosse! Os bárbaros, na sua devastação, só fizeram males limitados. Como as calamidades naturais, destruindo, eles recordam ao espírito a insegurança das coisas humanas; as suas crueldades, as suas perfídias, à mistura com actos de lealdade e de generosidade, temperados pela inconstância e o capricho, não colocam em perigo nada de vital naqueles que sobrevivem às suas armas. Só um Estado extremamente civilizado, mas baixamente civilizado, se se pode exprimir assim, como foi Roma, pode levar àqueles que ameaça e àqueles que submete a decomposição moral que não somente quebra à partida toda a esperança de resistência efectiva, mas rompe brutal e definitivamente a continuidade na vida espiritual, substituindo-lhe uma má imitação de medíocres vencedores."

"Réflexions sur la barbarie" (Simone Weil)


A citação é longa, mas é do melhor da filosofia weiliana. Esta ideia de criar uma antinomia dentro da própria civilização, nunca foi, realmente, aprofundada, mas ajuda-nos, talvez, a compreender o colapso da Alemanha e o poder do partido nazi.

A comparação com Roma que, para Simone, é o pólo oposto da Grécia Antiga, sugere-nos que o germe da "baixa civilização" poderia estar naquilo que foi a glória do império romano: a organização do Estado, o direito e as comunicações. Um sistema com a sua própria racionalidade que, como se viu no século XX, podia ser "capturado" por uma lógica exterior à da sua reprodução burocrática e passar a ser um instrumento de outra coisa, como a guerra e o anti-semitismo.

A Alemanha da grande música e dos grandes poetas e filósofos não era, certamente, uma "baixa civilização", e nela teve lugar até uma espécie de renascimento da Grécia, mas todo esse génio dependia duma cultura e duma tradição que a crise económica e social dos anos vinte completamente destruiu.

Tal como Napoleão emergiu do caos revolucionário e através da guerra levou o Estado a um novo patamar de centralização e eficácia, o cabo austríaco foi investido do poder absoluto pela primeira grande crise do capitalismo. Parece, assim, que o caos é tão destruidor como a mais baixa das civilizações, porque também ele corta a continuidade com o passado.

Se a proposta de Simone Weil tem sentido, na contingência que é a de qualquer civilização de cair abaixo do concebível, pode-se dizer que a sociedade moderna cairá de menos alto, na medida em que os indivíduos gozarem de menos autonomia e que o passado for cada vez mais informação, um ficheiro, como álibi e meio de poder, em vez de inspiração de vida.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008


(José Ames)

O MORALISTA SUPERIOR


Родион Романович Расколников

"Numa palavra, deduzo que todos os homens, e não só os grandes, que saem um pouco que seja dos limites normais, isto é capazes de dizer algo um pouco mais novo, têm de ser, pela sua natureza, obrigatoriamente criminosos - mais ou menos criminosos, evidentemente. De outro modo, ser-lhes-á difícil sair dos limites, quando não podem aceitar ficar dentro deles, por força também da sua natureza, e, na minha opinião, têm mesmo a obrigação de não aceitar tais limites."

"Crime e Castigo" (Fiodor Dostoiewski, citado por Peter Sloterdijk)


Lenine não tinha teorizado ainda sobre a vanguarda revolucionária, mas esta "desinibição" (como lhe chama Sloterdijk) de Roskolnikov já o torna um percursor. Certamente, ainda nas fraldas do individualismo pequeno-burguês que seria o seu estigma indelével, mas separado já da sua classe pelo ideal do progresso e pela invocação duma moral superior. Não se trata duma personagem amoral como as que Gide descreveu, mas nela os fins justificam os meios, como na política bolchevique.

O assassínio da velha usurária era um acto de afirmação duma vontade heróica, acima da moral comum. O que Raskolnikov não previu foi a força dessa moral, a força da religião dentro de si mesmo. Os limites que pretendeu ultrapassar não levavam a lado nenhum e não havia nada neste mundo que fizesse deles a ombreira duma coisa nova e com um sentido ideal.

Foi isso que o partido trouxe à sua descendência intelectual, uma moral superior que se revia no zelo da pertença.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008


(José Ames)

BASTARDIAS


Luís XIV


"Convenhamos de boa fé que a este respeito a Espanha se ressente ainda de ter estado durante vários séculos sob o domínio dos Mouros, e do comércio de miscigenação que ela manteve depois com eles quase até ao reino dos Reis Católicos; porque é verdade que não sente o bastante a diferença entre um nascimento legítimo e um natural proveniente de duas pessoas livres (celibatárias)."

"Mémoires" (Duc de Saint-Simon)


Disserta o nosso duque sobre as "vantagens e as diferenças" dos bastardos em Espanha. Como todos os títulos se depreciam pela sua generalização, é natural que alguém cioso da sua linhagem e vivendo numa corte onde existia em mais que qualquer outra a paranóia da etiqueta, e apesar do Rei Sol ser contribuinte líquido da bastardia, sentisse, ao atravessar os Pirinéus que deixava para trás a civilização.

Nas questões de precedência e de guardar ou não o chapéu na cabeça, mesmo quando as mulheres não as atiçavam, o duque sabia o suficiente das regras e das marcações que faziam funcionar o carrossel de Versalhes para ser severo perante os rangidos da vaidade ou da anarquia.

domingo, 14 de dezembro de 2008


(José Ames)

A RESPOSTA FUNESTA


Benito Mussolini (1883/1945)


"Mesmo nos países em que os mecanismos (da democracia) datam duma tradição secular, chegam horas solenes em que já não se pede nada ao povo porque se sabe que a resposta seria funesta. Tira-se-lhe a coroa de papelão de soberano boa para os tempos normais, e pura e simplesmente se lhe ordena para aceitar uma revolução, ou uma paz, ou marchar para o desconhecido duma guerra."

"Benito Mussolini, no prefácio ao "Príncipe" de Maquiavel, citado por Simone Weil)


Sem hipocrisia, está aqui a verdadeira face do poder, mostrada por um homem que percorreu o espectro político dum extremo ao outro.

E "mesmo os governos ultrademocráticos", diz mais adiante, se coíbem de confiar ao povo a decisão sobre os interesses supremos da nação.

Infelizmente, os exemplos abundam, mesmo nas democracias de hoje, de que a coroa do povo é mesmo de papelão fora dos actos eleitorais, como diriam os profetas da Revolução.

O problema é que não se vê como o "povo" pode ser soberano, em tempos normais ou extraordinários, se a sociedade não é uma máquina de que conheçamos as engrenagens, com lugar para um trono ou para o maquinista.

A única maneira de lidar com a realidade social é "impondo-lhe", através das leis e da organização, uma versão simplificada que nos permita fazer algumas previsões, previsões que qualquer incidente, como a morte de um jovem ateniense de 15 anos, pode pôr em causa.

sábado, 13 de dezembro de 2008


Tormes(José Ames)

PERDIÇÃO


http://flickr.com/photos/78211058@N00/2664797110

"Então, convalescente esfaimado que se sacia de todas as iguarias que lhe recusavam ainda, interrogava-me se casar-me com Albertine não iria estragar a minha vida, tanto fazendo-me assumir a tarefa demasiado pesada para mim de me consagrar a um outro ser, quanto forçando-me a viver ausente de mim mesmo por causa da sua presença contínua e privando-me para sempre das alegrias da solidão."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


Marcel goza um momento de paz, julgando saber que a sua amiga se encontra em companhia segura, longe da tentação gomorreana.

Como o amor não explica a "prisão" de Albertine, o controle que pretende exercer sobre ela e que é aceite, menos por amor do que pela perspectiva de um bom casamento, assemelha-se ao zelo religioso para salvar alguém da perdição.

Mas há que ler esta e outras passagens tendo em mente a técnica da conversão sexual de que o escritor falou a Gide.

Em Sodoma só se salva aquele que defendeu o estrangeiro da "naturalização" que a cidade lhe quer impor.

Como outro Lot, Marcel quer salvar o anjo que sabe já estar perdido.

(Se alguma coisa há que denuncie a passagem dos séculos é a ideia que Marcel se faz da "presença contínua".)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008


(José Ames)

O FUTURO PELAS NORMAS


http://ccc.byu.edu/prelaw/law.jpg


"O sistema legal cria um mundo de expectativas no qual a conduta continuará a ser vista como legal ou ilegal e os tribunais continuarão a poder distinguir entre a legalidade e a ilegalidade. As limitações da lei residem, primeiro, na sua inabilitação para ver o que não pode ver, quer dizer, para tomar em conta nas suas decisões factores desconhecidos que podem afectar o resultado."

"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law" (Michael King and Chris Thornhill)


Os que supõem deslindar a complexidade social mediante o recurso a mais informação, vêem-se na "necessidade de mais informação ainda", sem poderem alcançar a transparência e a certeza que almejariam.

Independentemente deste defeito substancial, o sistema legal, segundo Luhmann, permite que se criem expectativas normativas, muitas vezes "contrafactuais", em vez das fundadas na experiência.

Não podendo prever o futuro, e incluir no projecto todos os factores relevantes ainda desconhecidos, pode-se, através das normas, balizar os comportamentos, como se os factos fossem realmente conhecidos. É nesta acepção que o sociólogo se refere a uma "redução da complexidade". A lei elimina a imprevisibilidade nos nossos projectos de vida, obrigando-nos a cumprir determinadas normas, em função da coerência interna do sistema legal.

Mas, no limite, a situação pode tornar-se "esquizofrénica", quando face à massa contraditória dos factos, o sistema se fecha sobre si mesmo, produzindo para o exterior a linguagem do sintoma.

Se não fosse o ambiente internacional, o regime da ex-URSS, por exemplo, talvez funcionasse indefinidamente, o que vem dar razão a algumas teses recentes que acusam esse ambiente e não a "doença" de produzir os sintomas.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008


(José Ames)

QUATRO NOITES COM ANNA


"Quatro noites com Anna" (2008, Jerzy Skolimowski)


A história do homem do crematório, Okrasa, que concebe uma paixão platónica por Anna, uma enfermeira que dorme em frente do seu barraco, interessa-me desde logo por esse paradoxo do ideal num pobre de espírito. Mas, sobretudo, o que obriga Anna àquela entrevista final com o prisioneiro.

As quatro noites durante as quais Okrasa se introduz furtivamente no quarto de Anna, sedada graças a uma artimanha, sem sombra de voyeurismo ou de concupiscência, mas como uma espécie de anjo da guarda que lhe pregava os botões da bata ou lhe lavava a loiça, "visitas" que lhe permitiam dizer diante do túmulo da avó que "andava a ver uma mulher", como ela sempre tinha insistido, e a confissão, no tribunal, de que era movido apenas por amor, por esse amor aleijado e sem esperança, criam em Anna algo de parecido com uma responsabilidade. É isso que a faz ir à prisão para lhe devolver o anel que ele deixara na sua cama e lhe dizer que nunca mais voltava.

De facto, até esse farol que era a sua janela se transformou num muro cego. Para Okrasa, a loucura banal pode começar.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008


Évora (José Ames)

O OUTRO MUNDO EM ALTURA



"A força social não existe sem mentira. Por isso, tudo o que há de mais alto na vida humana, todo o esforço de pensamento, todo o esforço de amor é corrosivo para a ordem. O pensamento pode ser igualmente, com a mesma propriedade, acusado de revolucionário de um lado, como contra-revolucionário do outro. Na medida em que constrói sem cessar uma escala de valores "que não é deste mundo", ele é inimigo das forças que dominam a sociedade."

"Méditation sur l'obéissance et la liberté" (Simone Weil)


Entendamo-nos, a citação do Evangelho não nos compele a abandonar o estritamente mundano.

O "que não é deste mundo" tanto pode ser compreendido como a transcendência, a influência do religioso sobre o político, como o ponto de vista do observador exterior ao sistema político. O sistema não pode criar valores, mas normas que o façam funcionar e o justifiquem, incluindo as normas que eventualmente se apresentem como valores.

A metáfora da altura não está aqui por acaso, mas é-nos permitido iludir a abordagem metafísica, o que não quer dizer que se esteja, por isso, ao alcance da positivismo científico. Sem sairmos duma teoria da comunicação, o observador que observa o observador de dentro do sistema e criação deste está "acima" dele e realmente fora do seu mundo.

A figura de Deus pode ser uma extrapolação de todos os observadores possíveis, é o vértice absoluto da observação.

Mas só podemos ter pretensões de altura nos juízos que fazemos sobre os valores, pretensos ou não. Não estamos, por definição, no domínio dos factos nem no da falsicabilidade.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008


(José Ames)

FALANSTÉRIOS VIRTUAIS



"A natureza, como ela faz com certos animais, com certas flores, em que os órgãos do amor estão tão mal colocados que quase nunca obtêm prazer, não os "estragou" no que respeita ao amor. Sem dúvida o amor não é para nenhum ser uma coisa absolutamente fácil, exigindo o encontro de seres que muitas vezes tomam caminhos diferentes. Mas para este ser para quem a natureza foi tão madrasta, a dificuldade é centuplicada."

"La Race des Tantes" (esboço de Marcel Proust)


Na versão definitiva este encontro quase milagroso, de Charlus e Jupien, é simbolizado pelas núpcias do insecto improvável e da orquídea exótica do pátio dos Guermantes.

Na sabedoria popular isso exprime-se pelo ditado de que há sempre um testo para cada panela. Pode ser verdade, por muito longe que estejam um do outro. Nos falanstérios de Fourier também se previam as combinações mais raras para corresponder à variedade infinita das preferências sexuais.

A era da informação torna possível que todos esses mundos separados entrem em contacto, com o resultado, provável, do amor perder os seus deuses e encontrar a perfeição da arte combinatória.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O MAIOR DESASTRE


Esboço para os "Desastres de la Guerra" de Goya


"Para que serviu aliás a Robespierre e aos seus amigos o poder que exerceram antes do 9 Thermidor? O fim da sua existência não era apropriarem-se do poder, mas estabelecerem uma democracia efectiva, ao mesmo tempo democrática e social; foi por uma sangrenta ironia da história que a guerra os constrangeu a deixar no papel a constituição de 1793, a forjar um aparelho centralizado, a exercer um terror sangrento que nem sequer puderam virar contra os ricos, a aniquilar toda a liberdade e a tornarem-se enfim os furriéis do despotismo militar burocrático e burguês de Napoleão."

"Réflexions sur la guerre" (Simone Weil)


Todos os argumentos de Simone contra a guerra, contra qualquer guerra, se baseavam numa leitura do passado que mostrava como todos perdiam com ela e que a pior exploração social nada era comparada com o poder de vida e de morte outorgado à hierarquia militar ou, no caso da guerra civil, a qualquer energúmeno com uma arma. Na esteira do seu mestre, Chartier, a desordem era o pior dos males, e até a injustiça de classe é resgatável face aos males duma guerra.

A invasão da Checoslováquia pela tropas de Hitler leva Simone Weil a fazer uma viragem de 180 graus. Mas tiranos como Hitler abundaram no passado e a escravatura é tudo menos uma novidade debaixo do sol. Por que se arrependeu então do seu pacifismo intransigente?

Só a compreensão da natureza do Estado moderno, no caso da Alemanha nazi, inteiramente direccionado para o mal, pode explicar, a meu ver, a reviravolta. Essa máquina, mais eficaz no controle das vidas humanas do que qualquer outra até então, não deixava espaço nenhum fora da sua influência. Nem as águas-furtadas do filósofo para ganhar a vida polindo lentes. A própria memória do passado arderia nas fogueiras desse sistema bárbaro.

Na verdade, não havia guerra nenhuma que fosse pior do que essa organização da paz.

domingo, 7 de dezembro de 2008


Espinho (José Ames)

DE SE LHE TIRAR O CHAPÉU


Carlos V (1500/1558)

"Os ricos-hombres que seguiram Carlos V pretenderam cobrir-se aquando do coroamento imperial; os principais príncipes da Alemanha levantaram dificuldades, e Carlos V, já nessa altura hábil, soube aproveitar contra pessoas afastadas da sua pátria, e que, por este cúmulo de grandeza de toda a sucessão de Maximiliano I representada no seu jovem monarca, não se creram em estado de lhe resistir."

"Mémoirs" (Duc de Saint-Simon)


O privilégio de não se descobrirem quando falavam ao rei era um sinal de orgulho e poderio da nobreza espanhola, mas começou a ser minado pelos próprios nobres quando, para agradar a Filipe o Belo, não quiseram usar todo o rigor desse direito. Este rei, segundo Saint-Simon, aproveitou para diminuí-lo e o seu sucessor apagou-o da memória, passando ele, Carlos V, a outorgar os novos títulos de grandeza.

O mais interessante é que ninguém parece ter-se revoltado. O primeiro passo, motivado pela lisonja, foi fatal. A ingenuidade dos ricos-hombres deu lugar a um novo contrato, tendo o rei reduzido o número de beneficiários, mas valorizando os títulos concedidos a muito poucos.

A mecânica do poder impôs-se e o poder menor submeteu-se, mas sem perder a face.

Devia ser assim que, a haver mudanças sociais que implicam a degradação duma parte, as coisas se deveriam sempre passar.

sábado, 6 de dezembro de 2008

A FORÇA DA PRÓTESE


Alfred P. Sloan"Mas a apresentação de Garrett estava tão bem preparada que toda a gente a apoiou e desconfiava-se que Sloan era de alma e coração a favor dela. Porém, quando todos pensavam que a proposta estava aprovada, o velho desligou o aparelho auditivo e inquiriu:

-Deduzo, meus senhores, que todos apoiam a proposta?

- Sim, senhor Sloan - respondeu o coro.

-Então penso que devemos adiar esta campanha durante um mês para termos tempo de pensar nela.

Um mês depois, a proposta era abandonada ou drasticamente revista."


"Memórias de um economista" (Peter Drucker)


Drucker dizia que a prótese auditiva de Alfred Sloan, o presidente da General Motors, era o instrumento perfeito de gestão. Tinha de ser desligada para o utilizador poder ouvir-se a si próprio enquanto falava. Mas quando a desligava, "produzia um estrondo bem audível e toda a gente se calava."

Este murro de autoridade involuntária que era o estampido da prótese somava-se, como se vê, a uma grande inteligência da psicologia das decisões.

Era tão consciente da volubilidade humana e da ilimitada possibilidade de errar que não prescindia da contradição e só usava a sua arte de domínio das reuniões "depois de todos terem tido a oportunidade de falar."

A unanimidade ou a falsa divergência pertencem ao plano da cerimónia comunitária. Servem para estreitar os laços do grupo e criar nele o sentimento da própria força que pode levá-lo para longe da realidade.

Na economia, numa empresa, esses desvios são fatais. Fora dela, podem pôr em causa o funcionamento do sistema político, pois pertencem, com mais rigor, a outro sistema: o religioso (onde se enquadram também os fenómenos de apoteose mediática).

São perigosos na medida em que os grupos dispõem de poder que tornam cego em relação ao ambiente em que se movem.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

A CONFUSÃO DE MURASAKI




"O Genji martelou estes e outros argumentos tanto quanto pôde, argumentos que não enunciarei, pois o facto de já ter mencionado alguns enche-me de confusão."

"O Romance do Genji" (Murasaki Shikibu)


A narradora refere-se à tentativa do Genji de apaziguar as preocupações do jovem imperador que sabe existir no reino um segredo perturbador da ordem do mundo (um monge disse-lhe, ainda na véspera, que ele era filho do Genji e não do falecido imperador). O Genji, não sabendo que ele sabe, explica que a desordem, na história, se deve muitas vezes à acção de "gentes perversas".

E é esta abordagem sumária que culpabiliza Murasaki. É que, segundo a ética do tempo, "os assuntos relativos à História e à governação não devem ser discutidos por uma mulher." (nota da tradução)

Podemos deduzir que ela não acredita nisso do facto de usar a paralipse, fazendo ao longo de todo o romance aquilo que lhe diz causar confusão.


(José Ames)

AS PARTES AFECTADAS

http://www.localgovt.sa.gov.au/


"Nesta análise, ele identifica dois importantes factores que se combinam em produzir enormes dificuldades para o sistema político. Destas, a primeira é o modo pelo qual a sociedade reproduz os problemas enquanto distinções entre "os que tomam as decisões" (decision makers) e "as partes afectadas" (affected parties), e é então capaz de oferecer apenas soluções políticas para os conflitos resultantes (...)"

"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law"


(A segunda dificuldade será objecto de outro post.)

Aqui, o que está patente é uma experiência de todos os dias, embora, por estarmos mergulhados no discurso com que o sistema político se justifica a si mesmo, não nos pareça assim.

O problema de que fala Luhmann é o que, em vernáculo, para os que se encontram afastados da política, se pode exprimir assim: as consequências sobre a vida de todos (o povo, os contribuintes) daquilo que decidem "aqueles gajos" (o governo , os partidos, etc.)

Ora, o sistema político, diz Luhmann, só pode oferecer soluções políticas. Quando se exige demasiado dele, verifica-se sempre uma falsa conversão dos problemas de índole não política nas formas próprias ao sistema político: arranjos partidários, mudanças no (ou de) governo, eleições, etc.

Por exemplo, no caso da presente crise da educação, parece óbvio que ela não é uma questão do sistema político e que uma mudança no (ou de) governo não contribuirá para uma solução real se ela não for encontrada, em primeiro lugar, no sistema de ensino.