sexta-feira, 30 de junho de 2006

O VÉU DE MAIA


www.deviantart.com/print/113926/


"A plenitude como extremo da felicidade só é possível nos instantes em que tomamos consciência em profundidade da irrealidade da vida e da morte."

E.M. Cioran ("Ébauches de vertige")


O que nos fica se tanto a vida como a morte forem irreais?

Poderemos sequer pensar que a realidade existe como um estado do mundo, independente da irrealidade que trazemos a esse mundo, com os nossos desejos, as nossas ilusões, os nossos sonhos?


Castelo do Queijo (José Ames)

quinta-feira, 29 de junho de 2006

OS AMANHÃS QUE CANTAM


pageperso.aol.fr/.../L0f0z+wKxAFiydz


Pacheco Pereira vem dizer hoje no "Público" que há um sentimento na opinião pública favorável às reformas, mas que Sócrates o aproveita muito timidamente.

O problema seria a sua confissão socialista. Por causa da doutrina, ele não pode ser consequente com o reformismo e com a conclusão de que o Estado-Providência chegou ao fim, devido à globalização e ao envelhecimento demográfico. E defende que apenas uma oposição liberal, sem esses complexos, poderia contribuir para evitar as contemporizações e a hipoteca do futuro.

JPP diz que há uma política alternativa e socialmente mais justa. Supõe-se que o desmantelamento do Estado-Providência, com os seus custos sociais e a sua injustiça, imediatos, se poderia defender em nome da justiça futura e que isso aos seus olhos proféticos seria socialmente mais justo.

Mas por que é que isto me soa tanto a outros "amanhãs que cantam"?


"Break" (José Ames)

OS PAIS


Ulisses e o Ciclope

"Quem és? Onde é a tua cidade? Quem são os teus pais?"

"A Odisseia" (Homero)

Destas perguntas que Os Gregos faziam a um estrangeiro, que o porqueiro de Ítaca dirige a um Ulisses disfarçado, hoje, só provavelmente a segunda teria sentido.

A nacionalidade é o que nos parece mais pertinente. Se não estivermos no serviço de fronteiras, contentar-nos-emos com o nome e o apelido, mas nunca chegaremos a um metafísico quem és?

A essa pergunta, Rodolfo, em "La Bohème", responde a si próprio com o que faz: "sono un poeta".

O que nunca seria relevante era a identidade dos pais.

E aí está uma diferença incomensurável entre as duas culturas.

O culto dos antepassados era a essência da tradição e da autoridade.

Invocar o nome da família era assumir uma herança e a responsabilidade que lhe estava associada.

O indivíduo não tinha ainda descolado para o céu artificial.

quarta-feira, 28 de junho de 2006

UM SÍMBOLO



A propósito da peça que está em cena no teatro do Campo Alegre.

Para fazer justiça a um homem como D. António Ferreira Gomes, poderemos julgá-lo por um ou outro momento de maior repercussão política?

Não, nem a ninguém.

Mas pode-se, como se fez, lidar com um símbolo, para aquecer os corações.

O que está, então, a música a ali a fazer? Não deveriam chegar a oposição a Salazar e as feições maiores do que a vida?

Talvez se tenha querido compensar a aridez das leituras (das homilias e da doutrina), porém, não é bom fazer demasiado caso da preguiça do espectador.


Génova (José Ames)

GERAÇÕES


www.infed.org/biblio/lifecourse_development.htm

"É justamente para preservar o que é novo e revolucionário em cada criança que a educação deve ser conservadora."

Hannah Arendt ("A Crise na Educação")


Arendt diz também que o tempo que destrói o mundo criado pelo homem é o que torna suicidário o conservadorismo em política.

Mas não há contradição.

Os velhos não podem salvar o seu mundo, senão transmitindo-o, tal como o receberam e moldaram (para o que têm também de o proteger dos "bárbaros"), na esperança de que o que começa com os novos, a acção dos recém-chegados possa regenerar, com novas forças e novos pensamentos, esse mundo ameaçado, como tudo o que é temporário.

Portanto, a ideia duma educação revolucionária é ditatorial e perigosa para a espécie. Significa a tentativa de blindar o futuro (como o fazem os estatutos de algumas associações) e de usurpar a missão dos que nasceram depois de nós.

Por mais proféticos que sejam alguns velhos não podem imaginar sequer o mundo que há-de vir.

terça-feira, 27 de junho de 2006

O PISCAR DE OLHO DE CLEOPATRA


Elisabeth Taylor

Um dos fiascos comerciais mais retumbantes do cinema foi "Cleópatra", de Joseph L. Mankievicz.

O genial cineasta de "All about Eve" perdeu de algum modo o pé nesta reconstituição histórica à Cecil B. de Mille.

O tempo dramático afunda-se na voragem dum Egipto cenográfico em que os números (em todos os sentidos) para arrebatar o espectador são a norma.

O momento mais kitsch é talvez o piscar de olho de Elisabeth Taylor a Rex Harrison, que me faz lembrar uma crítica (injusta) que li aquando da estreia: só faltava ao actor levantar o sapato para riscar um fósforo, como no faroeste.

Mas um autor destes deixa sempre a sua marca. As cenas do assassinato no Senado e do discurso fúnebre de António passam como uma visão, numa mímica acelerada, que remete o conhecedor para o filme de 1953, "Júlio César", inspirado na peça shakespeareana.

Com o paradoxal efeito do momento mais histórico do filme perder toda a realidade face à trama do amor fatal.


"Boss" (José Ames)

DIAS AZIAGOS



"'O meu trabalho', disse Memlik com um brilho mau no olhar, 'é feito só às terças. O resto da semana é para o prazer com os meus amigos.'

Nessim não era surdo à ameaça contida nessas palavras. A terça-feira para o Muçulmano é o menos favorável dos dias para qualquer empreendimento humano, porque ele acredita que na terça-feira Deus criou todas as coisas desagradáveis. É o dia escolhido para a execução de criminosos; ninguém se atreve a casar numa terça porque o provérbio diz: 'casado na terça, enforcado na terça.' Nas palavras do Profeta: na terça-feira, Deus criou a escuridão absoluta."

"O Quarteto de Alexandria" (Lawrence Durrell)


Nós temos a sexta-feira, dia 13, mas não um dia aziago todas as semanas.

Essa crença significa uma importância muito maior da obediência religiosa. Obvia-se à distracção e ao esquecimento pela maior frequência dos sinais "lunares".

A tentação de ver nesta regra uma precaução do deserto é grande.

E, em última análise, talvez provenha desse despojamento da paisagem a imunidade islâmica ao materialismo e à idolatria.

segunda-feira, 26 de junho de 2006

INDÍCIOS DE AREIA


Nada melhor do que "sobrevoar" uma praia, em época balnear, para perceber o nosso tempo.

Não é apenas o corpo que se mostra ( e se esconde, na Higiene, na Moda, etc). Como no Carnaval há um jogo de esconjuro, em que suspendemos os interditos, o código de boas maneiras, a reserva sensual.

A entrega do corpo ao sol não tem sombra de culpa. Não é o indivíduo e o seu catálogo de pecados (H.Arendt) que se estende na areia, sob o olhar perscrutador de Deus (embora alguns cultores da forma física se possam sentir vigiados).

É a duna.

Para onde é que nos ausentamos?


Areinho (José Ames)

O EDUQUÊS SEM MÁCULA


Hannah Arendt (1906/1975)

"No que diz respeito à política, há aqui, obviamente, uma grave incompreensão: em vez de um indivíduo se juntar aos seus semelhantes assumindo o esforço de os persuadir e correndo o risco de falhar, opta por uma intervenção ditatorial, baseada na superioridade do adulto, procurando produzir o novo como um fait accompli, quer dizer, como se o novo já existisse. É por esta razão que, na Europa, a crença de que é necessário começar pelas crianças se se pretendem produzir novas condições, tem sido monopólio principalmente dos movimentos revolucionários com tendências tirânicas, movimentos esses que, quando chegam ao poder, retiram os filhos aos pais e, muito simplesmente, tratam de os doutrinar. Ora, a educação não pode desempenhar nenhum papel na política porque na política se lida sempre com pessoas já educadas."

"A Crise na Educação" (Hannah Arendt)


Esta teoria não se refere, evidentemente, ao papel da transmissão do saber na educação. Aí não se trata de doutrinar os novos, mas de lhes passar uma herança, o que não é, de qualquer modo, matéria de persuasão.

O que está em causa no ensaio de Arendt é a educação como acção política e a perversão que significa querer que aquilo que agora começamos possa constituir o único passado para as gerações futuras.

Podemos perguntar-nos se o que se tem visto nas últimas décadas, no nosso país, não é a tentativa de fazer prevalecer uma doutrina (a dos anos setenta), cujo único título (e essencial fraqueza) é, precisamente, ter cortado com o passado.

domingo, 25 de junho de 2006


(José Ames)

A CURA DE PURSEWARDEN



"(...) Os seus abraços eram como a árida união de peças de cera, de figuras em gesso para qualquer túmulo clássico. As mãos dela moviam-se sem encanto sobre arcadas das suas costelas, o seu flanco, a sua garganta, a sua face; os seus dedos pressionavam aqui e ali no escuro, como o dedo dum cego à procura do painel secreto na parede, dum interruptor, esperando que se ligasse, iluminando um outro mundo, fora do tempo."

"Mountolive" (Lawrence Durrell)

No terceiro livro de "O Quarteto de Alexandria", depois de seguirmos fascinados o tropismo desta flora nocturna, cercada pelo deserto, de sentirmos as exalações do "Oriente fanático" inebriando estes europeus perdidos para qualquer regresso à sua cultura, surge esta cena de amor terminal, como nunca vi outra igual.

Pursewarden e Melissa, desencontrando-se, por falta de acesso à memória do corpo, falhando os filtros e os gestos, ele fechado para sempre no seu segredo, ela resistindo à pressão da sua luxúria.

Até que a morte (ela lê-lhe o futuro nas linhas da mão) abre o caminho à palavra.

Estamos longe de qualquer banalidade psicanalítica, mas é o reconhecimento do impasse, o abandono das defesas "constitucionais" da sua personalidade que libertam a corrente e a desafiam a "perder-se".

Segue-se, naturalmente o suicídio do diplomata escritor.

sábado, 24 de junho de 2006


Génova (José Ames)

O ESPÍRITO OPERÁRIO



Em Alain encontra-se uma incomparável descrição do espírito operário. E ele resume-se a uma concepção do mundo instrumentalista. O operário não é um crente do invisível. Só aquilo que produz imediatamente a prova é para ele verdadeiro. É assim que a máquina lhe obedece, e a matéria responde logo.

Para impressionar o “rude companheiro” não bastaria pois o ideal da justiça e da fraternidade.

Em vez disso, se o socialismo existisse num grande país, todas as contradições se resumiriam à luta de classes no plano internacional.

Nessa situação, se o PC prescindisse da demonstração, seria um partido igual aos outros. Valendo-se dela, teria encontrado uma tábua matemática.

Há quanto tempo é que isto se passou?

sexta-feira, 23 de junho de 2006

A CÂMARA VAZIA


O muezzin


"Ora, mesmo no túmulo de Mohammed", disse Leila, "sempre houve uma câmara vazia à espera do corpo de Jesus. De acordo com a profecia, ele deve ser enterrado em Medina, a fonte do Islão, lembra-se? E aqui no Egipto nenhum muçulmano sente senão respeito e amor pelo Deus cristão. Mesmo hoje. Pergunte a qualquer pessoa, pergunte a qualquer
muezzin (isto é o mesmo que dizer 'pergunte a quem quer que fale a verdade' - porque nenhum homem poluto, bêbedo, louco ou mulher é considerado elegível para pronunciar o Chamamento muçulmano à oração."

"Mountolive" (Lawrence Durrell)

Abundam, ao longo da história, os exemplos desta convivência, apesar das cruzadas.

A explicação do actual impasse no Médio-Oriente não podemos obtê-la de nenhuma última instância, de nenhuma estrutura que a religião escondesse.

Qualquer coisa de parecido, em negativo, com o que Hannah Arendt chama de Fundação (o princípio da autoridade no estado Romano), um acto irremissível, um "buraco negro" capturando todas as energias e todos os sentidos do futuro, mudou o mundo sem sabermos como.


"Bird" (José Ames)

A SOMBRA DA GLÓRIA


The Master of the Johnson Collection Assumption of the Magdalene
The Adventures of Ulysses: The Contest with the Laestrygonians


Diz Hannah Arendt que a história terá começado quando Ulisses, hóspede dos Feaces, ouviu ao aedo dessa corte narrar as suas próprias façanhas, na longínqua Tróia.

Singularmente, o efeito dessa narração foi que o herói se sentiu perturbado, ao ponto das lágrimas. Conta Homero que ele cobriu a bela cabeça com a sua capa de púrpura e chorou.

Não creio que a recordação dos perigos e do esforço denodado expliquem a comoção de Ulisses.

Foi antes, talvez, o ver a sua vida alienada de si próprio, como se ele, precisamente, tivesse já passado à história.

E nenhuma glória, dos heróis ou dos semi-deuses, para os Gregos, valia a doçura de viver.

quinta-feira, 22 de junho de 2006

EVA E A LUTA DE CLASSES



"Mademoiselle Julie - Alguma estiveste apaixonado?

Jean - Não é uma palavra que utilizemos, embora muitas raparigas me tenham agradado, e uma vez tenha até ficado doente por não conseguir o que queria. Doente, compreende, como aqueles príncipes nas "Mil e uma Noites", que não podiam comer nem beber, por amor."


"Mademoiselle Julie", a celebrada peça de August Strindberg deixou, é claro, de ser actual.

Ninguém se revê nesta sociedade de classes moribunda, em que, pelo sortilégio duma noite de verão, a menina nobre, depois de ter seduzido um criado cínico, só se consegue salvar pelo suicídio.

Strindberg descobre infalivelmente por detrás do anjo feminino, a ménade com víboras por cabelos.

Com isso talvez queira dar continuidade ao desastre do Paraíso. O pecado de Eva não seria apenas original, mas de todos os tempos.

Continuamos fora da actualidade.

ERVAS FLUTUANTES


Yasujiro Ozu


Acabo de rever um maravilhoso Ozu: "Ervas Flutuantes" (1959).

Um velho actor de teatro kabuki, que já não acredita no público, enterra a sua "companhia" numa pequena aldeia, para passar algum tempo com o filho, que abandonou e de quem tem que esconder a identidade.

Tudo se complica por causa dos ciúmes de Sumiko, a primeira dama.

Assistimos ao desenrolar do melodrama, com a piedade de Ozu perante estes debates da borboleta na garrafa, em que cada um se perde voluntariamente.

E que palavras haverá para descrever a última cena em que o velho pai rejeitado, a companhia desfeita, se deixa apaparicar pela fúria que desencadeou o drama?


Sé de Viseu (José Ames)

ATRAVÉS DOS RELÂMPAGOS



Um filme como o "Espelho"(1974), de Andrei Tarkowski, é um objecto polimorfo que não nos permite compará-lo com nada, a não ser com outra "colagem".

Não podemos dizer que ideia existe por detrás do filme, para lá das metáforas autobiográficas e da sua não-narratividade. A mãe pode ter duas idades e ser mais do que uma personagem. O documentário da guerra irrompe fora duma economia visível.

Mas está lá a natureza poética, em que o vento e o espaço jogam um papel tão sugestivo. O mistério.

Aderi, por isso, como através dos relâmpagos.

Sei que Tarkowski andou muito tempo às voltas com este "puzzle", até o atingir um sentido.

Por aí, talvez o "Espelho" seja o mais secreto e intransmissível dos seus filmes.

quarta-feira, 21 de junho de 2006

PERSPECTIVA


www.uwm.edu/~kahl/Images/i2.html


"As naturezas capazes de objectividade em toda a ocorrência dão a impressão de terem saído do normal. Que se partiu ou perverteu nelas? Impossível de sabê-lo, mas adivinha-se algum problema sério, alguma anomalia.

A imparcialidade é incompatível com a vontade de se afirmar ou, muito simplesmente, de existir.

Reconhecer os méritos de outrem é um sintoma alarmante, um acto contra-natura."

E. M. Cioran ("Ébauches de vertige")


Quase subscreveria esta "boutade" de Cioran, se lhe retirasse o último parágrafo.

De facto, só podemos aspirar à imparcialidade, fazer um esforço de contenção dos nossos instintos básicos.

Mas deixar que nos cegue a nossa perspectiva é pior do que esta visão desiludida.


"Assis na Sofia" (José Ames)

NOVOS TRANQUILIZANTES


St. Inácio de Loyola (1491/1556)

"(De resto, a autêntica religião, em geral, e a fé cristã em particular - com a sua inexorável insistência no indivíduo e o papel que este tem na sua própria salvação, o que levou à elaboração de um catálogo de pecados mais longo do que o de qualquer outra religião - nunca poderão ser usadas como tranquilizantes. As ideologias modernas, quer sejam políticas, sociais ou psicológicas, estão melhor preparadas para imunizar a alma do homem contra o choque com a realidade do que qualquer outra religião que conheçamos. Comparada às diversas superstições do século XX, a piedosa resignação perante a vontade de Deus equivale ao despique entre um canivete e uma bomba atómica.)"

"Entre o Passado e o Futuro" (Hannah Arendt)


Claro que, realmente, só serão consideradas superstições na hora do crepúsculo hegeliano. Porque, actualmente, é a vontade de Deus que nos parece medieval, não reflectindo o progresso da Ciência, a libertação da Natureza, nem a realidade do Indivíduo.

Tudo ideias que poderiam ser viradas do avesso, desde que deitássemos algumas ilusões pela borda fora.

E é absolutamente certo que os exercícios espirituais dos jesuítas não podem competir com a sociedade de bem-estar, química e mediologicamente assistida.

terça-feira, 20 de junho de 2006

FAZENDO O TÚNEL


Barbara Haddrill - burrowing anemones Cerianthus lloydii


'Deveria trabalhar de novo as minhas experiências, de maneira a alcançar o coração da verdade? "A verdade não tem coração" escreve Pursewarden. "A verdade é uma mulher. É por isso que é enigmática. Das mulheres, o mais que podemos dizer, não sendo Franceses, é que elas são animais de lura."'

"The Alexandria Quartet" (Lawrence Durrell)


Isto não é necessariamente misógino. Não ter coração aqui significa que não existe um centro que detenha o seu segredo, ou que todo o corpo é coração.

Por outro lado, se o homem é um animal de campo aberto, com tácticas mais lógicas do que intuitivas, parece boa a imagem do outro animal que escavando o seu túnel, longe do olhar, surge da terra desarmando as defesas, demasiado previsíveis, do outro sexo.


Alcáçovas (José Ames)

CHORAR NERO


Nero (37/68 AC)

"Nunca perder de vista que a plebe teve saudades de Nero. É do que se deveria lembrar todas as vezes que se é tentado por alguma quimera."

E.M. Cioran ("Ébauches de vertige")


Com a massificação, haverá outra coisa que não seja a plebe?

O desprezo aristocrático pelos que não nasceram com um grande e antigo nome (como diz Arendt, para os Romanos era no passado que estava a fonte da autoridade e da legitimidade) não é hoje distintivo de nenhuma classe.

O alto e o baixo fundam-se cada vez mais na informação, que é dinheiro e poder.

E se é certo que um tirano pode ser amado, pelo panem et circenses, só nos salvaremos da misantropia acreditando num homem universal, num verdadeiro cidadão do mundo.

sexta-feira, 16 de junho de 2006


(José Ames)

ANTES DA REVOLUÇÃO



"Prima della Rivoluzione" (1962-Bernardo Bertolucci)


A certeza de poder julgar a teoria e a prática do partido é atacada na sala escura. O debate interior deste herói burguês mexe na cinza e desperta uma pequena labareda.

Bertolucci diz que tudo é ambíguo no seu filme, mas o espectáculo da ópera – o MacBeth é o drama duma traição -, com a estrutura hierarquizada do teatro e o jogo convergente dos olhares, infalivelmente nos dá a ideia da culpa de Fabrízio. Este não é como o seu homónimo da Cartuxa de Parma um soldado perdido na batalha que não compreende. O marxismo que o desmamou da Igreja designa-lhe o gesto da traição. Dá o sentido negativo às suas relações amorosas. Era preciso desafiar a ordem familiar burguesa, mas Fabrízio serve-se dum pretexto para sacrificar o amor da tia e fazer um casamento de conveniência.

Ele começa por não saber explicar a morte do seu amigo Agostino. E aí o método científico não lhe é de nenhum socorro. Depois, revela-se-lhe no quase incesto uma dimensão moral inclassificável. Fabrízio precisa de coragem, mas só entende os valores políticos. O proletariado tem ideias próprias, como diz Cesare? Isso não é certo. A verdade, como princípio de salvação, acaba por ficar nas mãos de intérpretes falíveis, trânsfugas como este burguês de Parma, parciais pela má consciência.

Fabrízio pede evidências porque tem muito a perder. Enquanto o partido espera dele a fé e a renúncia. Para homens como o seu mestre Cesare, é tudo mais fácil. Esses já deram tudo, em melhores tempos. A ideia do partido está neles incarnada. Quando o compromisso político se torna razão de vida, a verdade é que é já abstracta. A Resistência forjou um tipo de militante insensível a tudo que pusesse em causa esse passado que é introjecção pessoal do colectivo. Cesare, como intelectual, é um Ahab perseguindo a baleia branca até ao inferno. A sua real incapacidade crítica – que está longe de ser um óbice intelectual – é à medida dos seus gastos militantes, isto é, sem conta.

Como na história contada pela mulher – como filosofia da vida – é Cesare que acabará por ter razão. Fabrízio casou-se quando ia buscar um copo de água. Ele que não “perdeu” nada na sua vida tinha que ser atraído pela doçura de antes da Revolução. Também para ele, no fundo, a verdade é indiferente.

O professor lê a Moby Dick às crianças, que têm a perder a infância. É a aposta da história. E o jovem amante da Cartuxa agoniza com a sua classe. Bertolucci desfez-se duma obsessão e pôde fazer depois “O último tango em Paris”. Mas esta traição é outra coisa que o Verdi?

quinta-feira, 15 de junho de 2006

PANDORA


O Homem de Dmanisi

"Hesíodo: 'os deuses esconderam aos homens as fontes da vida.' - Fizeram bem ou mal? O que é certo é que os mortais não teriam tido coragem para continuar depois duma tal revelação."

"Ébauches de vertiges" (E. M. Cioran)


Se isso é verdade, o nosso incansável esforço é para a abrir "a caixa de Pandora", venha o que vier a seguir.

Mas, realmente, essa fontes só parecem estar ao nosso alcance, embora num indefinido futuro, devido à feliz ilusão que nos permite precisamente continuar.

E isto porque, como no meu último "post" sobre H. Arendt, quanto mais revelações obtemos da Natureza, menos elas parecem ter a ver connosco.

Inventaremos novos nomes depois do Homo Sapiens e do Sapiens Sapiens, mas a origem é o que por definição não podemos conhecer.


"Aveiro" (José Ames)

VERSALHES PARA TODOS



Nada mais ilustrativo do carácter da democracia do que ver os príncipes das Astúrias responder aos jornalistas, sobre o Mundial de Futebol.

Os príncipes mostraram-se sorridentes, o mais simpáticos possível e minimamente ao corrente , como lhes competia.

Com efeito, não passa pela cabeça de ninguém que desconhecessem tudo sobre os treinos da selecção espanhola e não tivessem uma opinião sobre o assunto, como qualquer aficionado do chamado "desporto-rei".

Apesar do sangue real e da monarquia ser, formalmente, o regime em vigor, é o espírito democrático que prevalece. O facto dos reis serem considerados como qualquer um de nós e de se lhes exigir que partilhem dos nossos gostos é porque a fonte da sua legitimidade está no Povo, e não já em Deus, como no passado.

É evidente que o poder do Povo é sobretudo de ordem negativa. A democracia não é, nem poder ser, nas condições modernas, o governo pelo Povo. Mas basta-lhe que possa afastar os maus governantes, sem derramamento de sangue, como diz Karl Popper, para já ser considerado o menos mau dos regimes.

No entanto, essa limitação da democracia é agravada pela necessidade da adulação permanente do falso soberano.

E é por isso que a demagogia é incontornável, como agora se diz.

quarta-feira, 14 de junho de 2006

BRUSCAMENTE, A REALIDADE



A técnica que nos deu o Nobel da Medicina (a lobotomia) está no centro do filme de Manckiewicz "Bruscamente, no verão passado" (1960).

A mesma fragilidade, a mesma incompetência do próprio para sustentar a sua razão que se vê no teatro de Strindberg está patente neste filme extraído duma peça de Tennessee Williams.

Quando o interesse, a vaidade e a boa-consciência se unem para justificar uma violência como a lobotomia (hoje completamente desacreditada), a insanidade mental é o mais fácil de provar.

Os médicos querem o dinheiro da velha para ampliar a clínica, e ela precisa de se defender daquele pedacinho de cérebro, tão insuportável e obstinado quanto a realidade.

ARTIFÍCIO


Hannah Arendt (1906/1975)

O problema está em "verificarmos que a natureza se comporta duma maneira tão diferente do que observamos nos corpos visíveis e palpáveis que nos rodeiam, que nenhum modelo formado a partir das nossas experiências em grande escala pode alguma vez ser verdadeiro".

"Entre o Passado e o Futuro" (Hannah Arendt)


Quer dizer, nós já estamos a afeiçoar o mundo como se não fôssemos nós a ter que viver nele.


"África" (José Ames)

A AMANTE DO DEGOLADO


"La Reine Margot" (1994-Patrice Chéreau)

A esplendorosa reconstituição histórica, no que é mais visível (ao nível dos cenários e do guarda-roupa), em "La Reine Margot", de Patrice Chéreau, segundo Alexandre Dumas.

A história duma mulher que chega ao idealismo do amor (O culto do degolado La Môle) pela via do vício, proeza que hoje, nesta época de "liberdade sexual" nos parece quase lendária.

Adjani, perfeita, nesta Margarida de Navarra, incestuosa e libertina que descobre o amor nos gestos da prostituição.

E rendamo-nos à arte de Virna Lisi (Catarina de Médicis). A outrora belíssima intérprete de "Eva" de Joseph Losey empunha duma forma magistral a máscara do poder e da morte.

Até o sotaque contribui para destilar o autêntico veneno florentino.

A GUERRA DOS SEXOS


Augusto Strindberg (1849/1912)

Em Strindberg, a misoginia é auto-biográfica.

Na peça "O Pai", por exemplo, as réplicas de Laura facilmente resvalam para uma irracionalidade táctica, com o fim de destroçar o "adversário". E é ela que lança a suspeita da falsa paternidade.

O dramaturgo cita até Homero para aureolar o seu masoquismo com uma incerteza inerente à condição masculina:

Telémaco dirige-se a Atena. "A minha mãe diz que eu sou seguramente seu - de Ulisses, quero dizer - "Mas eu não sei. Ninguém sabe de facto quem é o seu pai."

Nessa dúvida, gerada por uma datada guerra dos sexos, assoma, todavia, a realidade da fé no mais forte dos laços sociais.

terça-feira, 13 de junho de 2006

HALUCINADOS


"Torero Alucinógeno" (Salvador Dali)


"Imaginar não é necessariamente inventar" diz ele noutro lado, "nem alguém se atreve a reclamar-se de omnisciência ao interpretar as acções das pessoas. Presume-se que elas cresceram dos seus sentimentos tal como as folhas o fazem a partir dum ramo."

"The Alexandria Quartet" (Lawrence Durrell)


Só agimos, de facto, naturalmente, com a forma que é a nossa, o nosso mundo mental (mesmo se é um manicómio), e um corpo que herdámos e modificamos (mesmo se cheio de nós que não conseguimos ou não queremos desatar).

E o que as pessoas fazem sob o efeito do alucinogénio colectivo, por exemplo, não é uma acção, porque não é livre, nem parte delas.

Gosto desta ideia de que crescemos com (e para fora d)os sentimentos.

O TORII E O LATIFÚNDIO


Arronches (José Ames)

Como o Torii, o pórtico japonês, em forma de letra pi, à entrada dos templos shintoístas, assim é a abertura para algumas herdades do Alentejo.

A certa altura, na paisagem da charneca e dos olivais, dois pilares caiados, com uma faixa amarela ou azul, parecem fechar o espaço e criar um vácuo onde se desenrola o caminho para a casa no monte.

A história do latifúndio, das lutas sociais, deixou de se ouvir, perdida no aluvião do silêncio que uma brisa, como um jovem potro à solta, ou a ladainha das cigarras não perturbam.

Depois das estradas desertas, dos campos a perder de vista, sem vivalma, o pórtico já não separa o dentro e o fora. Tudo é espelho, e o Torii não é mais do que moldura.

segunda-feira, 12 de junho de 2006

REBELIÃO ABORTADA


Nietzsche e a mãe


Hannah Arendt ("Entre o passado e o futuro") diz que Nietzsche procurou a transmutação dos valores e a inversão do platonismo, mas não conseguiu sair do quadro de categorias deste.

Com isso, tirou todo o significado à vida dos sentidos, porque é o mundo das ideias que nos dá a possibilidade de existência dum mundo sensível e que permite que preterir um em relação ao outro seja uma escolha moral.

"A própria afirmação dum dos opostos - fides contra intellectus; prática contra teoria; vida sensível, perecível, contra verdade permanente, imutável, supra-sensível - traz necessariamente à luz o oposto repudiado e mostra como ambos são providos de sentido apenas no âmbito dessa oposição."


"Atascado" (José Ames)

A RAZÃO DO PRECONCEITO


Émil Cioran (1911/1995)


Cioran cita o caso dum antropólogo que, pelos seus contactos com uma tribo de pigmeus, foi desprezado pelas tribos vizinhas.

E acrescenta que não foram os primitivos que inventaram a tolerância, mas os "civilizados". "Por que é que eles a inventaram? Porque estavam em vias de perecer... Não foi a tolerância que os enfraqueceu, foi a sua fraqueza, a sua desfalecente vitalidade que os tornou tolerantes."

Se eu disser que este discurso é, hoje, politicamente incorrecto, estou a conferir-lhe a qualidade moral da coragem e do desassombro, por se reconhecer que desafia um preconceito.

Mas é só devido à superstição de que podemos pensar sem preconceitos que o relativismo tem o domínio que tem na nossa cultura.

Portanto, e sobre o exemplo dessas tribos que se consideravam superiores aos pigmeus, devemos apenas dizer que a tolerância é um melhor preconceito, embora muito menos enérgico do que o seu contrário.

Mas já todos sabemos onde nos pode levar o culto da vida e a vontade do poder.

domingo, 11 de junho de 2006

COMPULSIVO FUTURO


Espiral equiangular


"A mania de perpetuar, de gravar, de fotografar tudo! Suponho que isto derive do sentimento de não se gozar nada completamente, na verdade, é a flor que se arranca a tudo, conforme respiramos."

"Balthazar" (Lawrence Durrell)


Essa mania, tenho-a eu, e penso que isso se deve a uma invaginação do futuro no instante.

Espero sempre voltar ao lugar do prazer, para me certificar da sua realidade.

Claro que é um outro que volta, na espiral do tempo, e a outro lugar.


Génova (José Ames)

A DANÇA DE SHIVA


Shiva

"Segundo uma lenda hindu, Shiva, a um certo momento, pôs-se a dançar, primeiro lentamente, depois cada vez mais depressa, e não parará sem ter imposto ao mundo uma cadência desenfreada, em tudo o oposto da Criação.

Esta lenda não comporta nenhum comentário, já que a história se encarregou de ilustrar quanto é bem fundada."

"Ébauches de vertige" (E.M. Cioran)


Ao contrário daquelas civilizações que acabaram por esgotamento e perda de vitalidade, quando já os deuses estrangeiros há muito ocupavam os altares, como sucedeu com Roma, chegar à destruição pelo excesso de energia, pela desmesura.

O capitalismo terá, certamente, um fim assim.

sábado, 10 de junho de 2006

A ALEGRE FIGURA


W.H. Crane como Sir John Falstaff

Falstaff, o monte de banha,
caiu três vezes na ratoeira,

mordendo sem prudência o isco das comadres.

Foi barrela despejada no Tamisa,
travesti esmurrado duma bruxa.
Fauno, enfim, mísero e desmascarado.

Não por lascívia. Não por desejo de mulher.
Mas por amor de si, por vaidade ingénua.

O velho incontornável acredita em tudo.
Até em que não é o bobo do príncipe.
Sir John escarrado não é ninguém.

As paixões limitam-se umas às outras.
E é por isso que a astúcia feminina
não conduz o mundo.