segunda-feira, 31 de março de 2014

Sem título

Matosinhos

 

VOLTAGEM

 

"Desrealidade. Sentimento de ausência, diminuição de realidade experimentada pelo sujeito amoroso frente ao mundo.
(...) Estou sozinho num café. É domingo à hora do pequeno-almoço. Do outro lado do espelho, num cartaz mural, Coluche gesticula e faz de idiota. Tenho frio."
Roland Barthes ("Fragmentos dum discurso amoroso")

Para os 'desafectos', a política desliza sem sobressaltos. Tudo é conforme o esperado. A menos que comecem todos a gritar. De espaço da palavra, a política tornar-se-ia gutural.

Mas o 'sujeito amoroso' (uma espécie de Frankenstein do estruturalismo), segundo Barthes, tem todas as energias mobilizadas pelo objecto do seu amor. A triste figura dum candidato à presidência (não resultou a sua tentativa de 'desmascarar' a política-espectáculo; 'the show must go on.') não pode ser encaixada no seu mundo transtornado. Afinal a 'indiferença' consome alguma energia, e ele tem tudo investido na outra 'realidade'. Coluche faz-lhe frio.

Há uma expressão que traduz essa incapacidade para lidar com um simples acréscimo de realidade, um pouco mais de complexidade. É o "não tenho paciência."

Não é a obsessão pelo 'objecto amoroso' que desvia o caudal da energia. É o mundo que não se submete ao 'domínio privado' do bom-senso e da razão. Para nos mantermos activos e interessados precisamos de cada vez mais voltagem.

 

domingo, 30 de março de 2014

Sem título

(José Ames)

 

INFAUSTO BUONARROTI

"O escravo moribundo"

 

"Mal tenho tempo de comer...não tenho tempo para comer...Há mais de doze anos que arruino o meu corpo com as fadigas, falta-me o necessário...não tenho um cêntimo, estou nu, sofro mil penas...Vivo na miséria e nas penas...luto com a miséria..."

(Carta de Miguel Ângelo Buonarroti)

"Esta miséria era imaginária. Miguel Ângelo era rico; ele fez-se rico, muito rico. Mas de que é que lhe servia isso? Vivia como um pobre, agarrado à sua tarefa, como um cavalo à sua mó. Ninguém podia compreender que se torturasse assim."
(Romain Rolland)

Segundo Rolland, este herói que se inflige a própria tortura é tipicamente cristão. O seu sofrimento não tem expiação possível. E um dia, "aqueles que virão hão-de debruçar-se sobre o abismo desta raça desaparecida, como Dante na margem do lago de Malebolge, num misto de admiração, de horror e de piedade."

Somos nós já essa geração que se debruça sobre o Malebolge? Porque não reconhecemos à nossa volta estes seres torturados. O que vemos de mais aproximado são aqueles a quem atribuímos um epíteto sexual: os masoquistas. E num ápice, desfez-se em matéria analítica o mistério destas almas inquietas. Os contemporâneos do grande Buonarroti não compreendiam a sua total incapacidade de gozar a riqueza que tinha (depois da sua morte, foram encontrados na sua casa de Roma 7 a 8000 ducados de oiro; Vasari diz que, além disso, tinha seis casas e terras em Florença, Settignano, Rovezzano, Stradello, San Stefano de Pozzolatico, etc.).

O nosso século progressivo põe hoje ao alcance da nossa compreensão o fenómeno da auto-punição e do sofrimento voluntário: Trata-se, no fundo, de prazer, um prazer paradoxal, sem dúvida, mas sempre motivado pelo horizonte individual de que nos orgulhamos.

Talvez seja por isso que nunca mais surgiu na nossa civilização um artista como Miguel Ângelo.

 

sábado, 29 de março de 2014

Cork

A LEITURA

Adriano


A leitura de Yourcenar envolve-me como um palácio de arquitectura inteligível. Identifico-me ao seu Adriano, e enquanto habito as suas memórias, a vida tem outro sentido. É isso que procuramos nas obras do espírito, não é verdade? Nelas achamos a harmonia da abóbada celeste, e as nossas paixões reduzem-se a um vago rumor, logo compreendido na grande sinfonia.


Mas – reparo agora que, pela primeira vez no texto, com esta conjunção me ponho a subir a encosta da positividade – deve haver algo que substitua na consciência feliz da maioria essa qualidade da leitura. A razão não pode só por si aspirar a esse papel: o passado não se deixa iluminar como uma avenida. Quase todos os homens vivem nesse estado de graça que os leva a nunca sentirem a necessidade de interrogar o sentido das suas vidas. E nenhum racionalismo pode competir com esse dom. Primeiro a força, depois o sentido e a forma. O corpo recusa-se e o espírito não é, sem remédio. O que dá todo o valor à religião incarnada. Ao culto do inferior, como um deus menor e incompreensível à mente geométrica.

O sujeito que encontra a questão do sentido é uma cabeça que ressoa. Segundo grau da consciência da fala que problematiza ao nível metafísico toda a interrupção de energia. Um texto literário é uma pilha eléctrica capaz de galvanizar um “cadáver”. Donde é que lhe vem esse poder senão da sua articulação e complexidade? Da sua capacidade de simular a vida do espírito?

Talvez a inspiração seja uma espécie de lamiré. Uma mudança de tecla que faz passar a ordem da realidade à ordem do signo. Quem leio escreve comigo. E a percepção de agir por um momento é suficiente para abolir a tristeza e mudar a posição do corpo.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Sem título

(José Ames)

 

O ARREPENDIMENTO DA PEDRA

 

"Sempre que a obra é de artesão, o modelo da obra está fora da obra; mas tanto quanto é obra de artista, é a obra mesma que é o modelo."

(Alain)

 

O que é dizer que o formalismo não é verdadeiro. A forma pode ser completamente exterior, como no caso do artesão (embora neste, possa ser um modelo consagrado).

É preciso que a estátua nasça do bloco de mármore e de cada golpe do cinzel. Mas não sem a ideia que já explorou o material.

Romain Rolland na sua "Vie de Michel-Ange" diz:

"Está, no Museu Nacional de Florença, uma estátua de mármore, que Miguel Ângelo chamava 'O Vencedor'. É um jovem nu, de belo corpo, os cabelos encaracolados sobre a fronte baixa. De pé e direito, impõe o seu joelho no dorso de um prisioneiro barbudo, que se dobra e estica a cabeça para a frente, como um boi. Mas o vencedor não olha para ele. No momento de assestar o golpe, detém-se, desvia a sua boca triste e os seus olhos indecisos. O seu braço recolhe apoiando-se no ombro; recua; já não quer a vitória, ela repugna-lhe. Ele venceu. Ele foi vencido."

Imaginamos facilmente como o movimento do braço ditou o arrependimento e como ambos foram 'ditados' pelo próprio mármore.

 

quinta-feira, 27 de março de 2014

Sem título

 

O Kremlin

 

O ESTADO TOTAL

António de Oliveira Salazar

 

"é preciso afastar de nós o impulso tendente à formação do que poderia chamar-se o Estado totalitário", um "Estado essencialmente pagão", e portanto "incompatível por natureza com o génio da nossa civilização cristã."

(Salazar no I Congresso da União Nacional, 26 de Maio de 1934, in "História de Portugal" coordenada por Rui Ramos)


Carl Schmitt, um jurista alemão, havia cunhado o termo 'totalstaat' em 1920, advogando um tipo de estado que assumisse todas as funções da sociedade (conheci e conheço pessoas que acreditam que a politicização total do pensamento é o futuro da humanidade).

Salazar, que na altura deste discurso enfrentava a vaga do 'nacional-sindicalismo' de Rolão Preto, êmulo do fascismo italiano e germânico e que contestava a política do Estado Novo (seria detido dois meses depois do discurso do ditador), demarca-se do que ele chama Estado totalitário por causa do seu carácter 'essencialmente pagão'.

Segundo Ramos, o salazarismo não era o monólito que aparentava. Era o resultado de um 'equilibrismo' político entre as grandes tendências do antigo republicanismo, em que Salazar foi exímio. Tinha tudo menos de 'revolucionário' (ao contrário do fascismo ideológico europeu). A obsessão do ditador era o regresso aos bons e velhos hábitos que nunca existiram por muito tempo no Portugal contemporâneo.

De qualquer modo, o termo pagão aplicado ao nazismo ou ao regime de Mussolini não tem, evidentemente, a conotação do paganismo clássico, mas a da militância católica (nisso, Rolão Preto era mais um concorrente do que um adepto do 'paganismo').

O 'parti-pris' impede de ver em Salazar qualquer evolução, e o regime a que deu o nome (mas que não foi criado por ele) será invariavelmente um fascismo puro e duro. Para quem assim vê a história, quanto menos se revelar do homem e até da sua psicologia dita ruralista e clerical, melhor será.

Mas é precisamente essa atitude que nos está a impedir de fechar mais um capítulo da nossa história, e de fazer o necessário julgamento do passado.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Sem título

(José Ames)

 

AQUELA QUE OCULTA

"Odysseus und Kalypso" (Böcklin)


O nome da ninfa que seduziu e reteve Ulisses na sua ilha de Ogígia durante sete anos (Homero), Calipso, quer dizer, segundo a etimologia, 'que oculta o conhecimento', "o que justifica o "carácter hermético" da ninfa e da sua ilha. (Wikipedia)

Não sabemos se Ogígia e Calipso fazem parte do 'mundo real por dentro', como diria o poeta da 'Tabacaria'. O certo é que os poderes de sedução de Calipso não bastaram para fazer esquecer as saudades de Penélope, e Ulisses partiu ao fim dos sete mágicos anos.

O mundo dos deuses é o nosso mundo. E não posso deixar de pensar naquilo em que se tornou a mesma civilização que 'acreditou' (Paul Veyne põe a questão de se os Gregos acreditaram ou não nos seus mitos) em deuses e deusas, e em ninfas e sátiros. Foi uma 'evolução', foram idades do Homem, ou uma violenta adaptação a realidades completamente diferentes?

Imagina-se os assuntos públicos de hoje realmente debatidos num fórum, tem ainda sentido a palavra democracia, tal como a entendiam os Atenienses?

E como mudou tudo desde que não podemos designar uma ninfa como 'aquela que esconde o pensamento', que não é nada o mesmo que dizer de alguém que é dissimulado.

 

terça-feira, 25 de março de 2014

Sem título

Almada

 

O REI VAI NU

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"A vestimenta faz o homem. As pessoas nuas têm pouca ou nenhuma influência na sociedade."


Mark Twain


O chiste está na categoria inventada pelo autor: a das pessoas nuas. Não existe tal categoria no mundo civilizado. E podíamos dizer que mesmo o homem mais selvagem se 'veste' com tatuagens ou outros sinais distintivos.

Andamos nus de cara e de mãos, e os 'primitivos', assumem o corpo nu como nós assumimos aquelas partes que, normalmente, não cobrimos. Segundo a anedota conhecida, neles, o corpo "é todo cara".

Mas díriamos que o 'influente' no estado de banhista perde a sua 'influência na sociedade'? É talvez um risco. Não é por acaso que os grandes de Roma, caídos em desgraça, escolhiam morrer na banheira.

A praia, assim, seria de molde a 'desfazer' o homem sem vestimenta e a estabelecer um regime igualitário. Mas, é interessante verificar que já não o poderíamos apelidar de democrático. São 'iguais', mas sem as diferenças que tornam possível a política.

Um conselho aos tímidos, que li há muitos anos, sugeria que para não sermos intimidados por um interlocutor 'influente' bastaria imaginá-lo nu...

E é o que diz o conto do 'Rei vai nu'. O manto não é só de protocolo. A coroa leve tem menos autoridade. Em contraste, veja-se a cerimónia da sagração no "Ivan, o Terrível".

 

segunda-feira, 24 de março de 2014



(José Ames)

FÉ DEMOCRÁTICA

Whaling Off the Coast of California. c. 1858. Coleman.


"Essa imaculada hombridade que sentimos dentro de nós - tão fundo dentro de nós, que permanece intacta mesmo se todo o carácter exterior se pareça ter perdido - sangra na mais viva angústia perante o espectáculo nu e cru da ruína dos valores num homem."

"Moby Dick" (Herman Melville)

Melville chama de democrática a essa "abundante dignidade" que sem fim irradia do próprio Deus. "O centro e a substância da democracia! A Sua omnipresença, a nossa divina igualdade!" (ibidem)

Esta fé na igualdade entre os homens e na nobreza interior de cada um parece ingénua, quando vemos, hoje, a pátria de Melville tão afastada desse ideal.

Mas não há ideia que não morra por ter alcançado o sucesso. A democracia não está feita, nem pode estar feita. O que temos é a carcaça.

domingo, 23 de março de 2014

Almada (José Ames)

A REVOLTA DO CAPITÃO AHAB



Jonas devolvido pela baleia

"And God had prepared a great fish to swallow up Jonah."

"Moby Dick" (Herman Melville)

O tema do sermão do padre Mapple, incarnado por um tonitruante Orson Welles, no filme de John Huston, é a história de Jonas e da baleia.

Jonas é um foragido à justiça divina, mas não havendo abrigo possível para quem tudo vê, até no navio em que embarcou é perseguido. E tantos foram os sinais de que esse clandestino era a causa da fúria dos céus que os marinheiros o atiraram pela borda fora. Para o mar onde o esperavam as goelas da baleia.

Foi no retiro forçado do grande ventre que ele se arrependeu. A isso se seguiu um grande jacto que o devolveu à terra, enfim, perdoado.

A parábola, colocada no início do romance que conta o ódio dum homem a uma baleia branca, faz de Ahab um Jonas que não pôde entrar todo no ventre da baleia (só uma perna entrou), a quem Deus, portanto, recusou o tempo e o lugar do arrependimento.

Daí que "Moby Dick" nos fale da vontade de sacrilégio e de perdição que se pode esconder na ânsia de justiça.

sábado, 22 de março de 2014


(José Ames)

ENGRENAGEM


"Para um homem piedoso, especialmente para um Quaker, ele tinha, na verdade, um coração duro, para dizer o menos. Nunca praguejava, no dizer dos seus homens; mas duma maneira ou doutra conseguia obter deles uma extraordinária quantidade de trabalho duro e sem descanso."

"Moby Dick" (Herman Melville)

O carácter dum homem como o capitão Bildad faz dele o perfeito relé para fazer do semelhante um instrumento.

A boa-consciência religiosa permite-lhe, sem ter coração, sentir-se o paradigma da generosidade.

sexta-feira, 21 de março de 2014



Porto (José Ames)

METAFÍSICA DO UMBIGO

O Omphalos(Umbigo do Mundo), em Delfos


"Toda a questão que pomos ao corpo, torna-se uma brecha... um começo de inquietação, de obsessão."
"Voyage au bout de la nuit" (Louis-Ferdinand Céline)

É isso. Não paramos de assediar o corpo com perguntas, para saber o nosso futuro. Mas não há nenhum conhecimento que não altere os dados.

O corpo tornou-se demasiado precioso para ficar entregue a si próprio e aos seus instintos de auto-preservação.

Todos os progressos da ciência vão no sentido de obter respostas, cada vez mais cedo, a fim de nos acautelarmos das surpresas e a retirar o novelo das mãos da Parca.

É a metafísica do umbigo.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Sem título

(José Ames)

 

ESTRATÉGIAS DO CAOS

 

"Graças ao incomparável poder de persuasão que possui a força, milhões de homens fizeram aparecer, e em primeiro lugar aos seus próprios olhos, que tinham parte nos direitos sagrados da humanidade, coisa de que mesmo inteligências penetrantes não puderam aperceber-se ao tempo em que eles eram fracos."

Simone Weil

Durante o Governo da Frente Popular em 1936, viu-se o que já não se via em França desde a Comuna. Um movimento grevista que ultrapassava as próprias organizações e a experiência de que alguma coisa mudara para sempre nas consciências.

O movimento espontâneo das massas, como diz SW, não põe, nem resolve problemas. Mas é preciso acrescentar que muitos dos problemas vêm do abatimento geral e da descrença profunda, e é isso que muda quando acontece uma catarse colectiva, como a de Maio-Junho de 1936, em Paris.

A renovada coragem e as novas crenças permitiram o estabelecimento de novas relações laborais, com a negociação de contratos de trabalho e o direito a férias. Nada disso mudou o sistema de produção, em última análise, a verdadeira causa da opressão social (SW). O capitalismo adaptou-se aos novos hábitos e à nova mentalidade. É verdade que o sistema depende desse tipo de desafios para atingir o seu máximo desenvolvimento.

As causas da opressão social estarão, talvez, a migrar do ambiente da produção (em que o clássico 'explorado' tem cada vez menos lugar) para o poder parasita, sobretudo financeiro, que açambarca a maior parte dos benefícios do progresso tecnológico e é o principal responsável pelas crises do sistema. Simone compara o papel destes parasitas e o caos provocado pelas suas 'estratégias' destinadas à conservação e ampliação do poder da oligarquia burocrático-financeira, ao caos desencadeado por outra burocracia - a do Estado Soviético - com os seus planos quinquenais.


 

quarta-feira, 19 de março de 2014

Sem título

 

Bath, England

 

O VIÚVO DA REVOLUÇÃO

 

"Foste muito festejado no teu regresso. Não nos encontrámos então; provavelmente estavas muito ocupado...não o interpretei mal, a propósito. No final de contas, não se podia esperar que visitasses todos os teus velhos amigos. Mas vi-te duas vezes em comícios, em cima da plataforma. Estavas ainda de muletas e com um ar muito cansado. O que seria lógico era que tivesses ido para um sanatório por alguns meses, e depois aceitasses algum lugar no Governo - depois de teres estado quatro anos fora, em missão no estrangeiro. Mas depois de duas semanas, já te estavas a candidatar para outra missão no estrangeiro..." Inclinou-se subitamente sobre Rubashov:"- Porquê?" interrogou, e pela primeira vez a sua voz era cortante."

"Darkness at Noon" (Arthur Koestler)

O "socialismo num só país" tinha um preço. O de considerar o resto do mundo como inimigo, interessado na destruição do regime. Uma suspeita estranha quando seria de esperar que o bom exemplo frutificasse.

Simone Weil diz a propósito:"Para um tal regime, o dilema "propagar-se ou morrer" não somente já não é válido, como já não faz qualquer sentido; o regime stalinista, enquanto sistema de opressão, é tão pouco contagioso quanto o poderia ser o Império para os países vizinhos da França."

Chegou-se ao ponto de acusar de traição os melhores e os mais devotados da primeira geração de revolucionários. E, como mostra o livro de Koestler, conseguindo a voluntária 'confissão' deles, em nome do Partido e da sua missão histórica.

A realidade pode corromper-se, mas o espírito é incorruptível. Saint-Just, o Viúvo da Grande Revolução, abençoou os que assim se condenaram a si próprios.

 

 

 

 


 

terça-feira, 18 de março de 2014

Sem título

(José Ames)

 

TROTSKY EM CASA DOS WEIL

Leon Trotsky

 

Em 31 de Dezembro de 1933, o exilado Trotsky pernoita em casa dos pais de Simone Weil, em Paris. A jovem aproveita essa passagem para interrogar Lev Davidovich sobre a situação na União Soviética. A conversa não é nada amigável, a ponto de ter levado Trotsky a perguntar: - Se pensa assim, por que me recebe em sua casa? Pertence por acaso ao Exército de Salvação?

Este diálogo e o apontamento que se segue são tirados das notas rascunhadas por Simone.

"Este Estado (o Estado soviético), a acreditar em Trotsky, define-se como "uma degenerescência burocrática da ditadura", como "uma ditadura pessoal apoiando-se num aparelho impessoal, que agarra a classe dominante do país pela garganta."

Nesse tempo, ainda havia, pelo que se vê, ditaduras boas e ditaduras más. Trotsky culpava o seu arqui-inimigo Staline de ter usurpado a ditadura da 'classe dominante', mas contradizendo-se imediatamente ao dizer que nada tinha a censurar a Staline "salvo as faltas no quadro da sua própria política".

Simone é mimoseada nesse encontro com o epípeto de idealista (que era, no espírito marxista tão influente na altura, uma espécie de insulto. A resposta não se faz esperar: "- É você que é idealista, você que chama classe dominante a uma classe subjugada!"

O incipiente operariado russo (Trotsy admite que a Revolução de Outubro é "análoga" à Revolução burguesa que não chegou a acontecer no país) só alcançou o estatuto de classe dominante na cabeça de alguns líderes, entre os quais se inclui o criador do Exército Vermelho. Como isso nunca aconteceu, como poderia ser sua a ditadura?

Staline meteu-se nas botas do czar por que era esse o seu temperamento e porque não havia outra coisa a fazer.

 


 

segunda-feira, 17 de março de 2014

Sem título

Vila do Conde

 

OSAGE COUNTY

A paisagem é a da planície em que habitualmente se desenrola o drama faulkneriano, onde se mistura a poeira e o calor que tudo confundem e as histórias de incesto caladas até à morte, mas consabidas.

"August: Osage County" (John Wells) nasce desta conjuntura. Podia ser uma peça de teatro num espaço confinado em que a família dispersa se reúne por altura em que o patriarca (Sam Sheppard), depois de contratar uma 'americana nativa' para cuidar da mulher, Violet (uma superlativa Meryl Streep) que tem um cancro, se despede da vida e do remorso impenitente, deixando-se afogar (são tantos os suicídios e os crimes de lago que parecem todos ter lugar nas mesmas águas, as de "Aurora" de Murnau.)

Todas as filhas de Violet sofrem da maldição das planícies desoladas. Não são apenas falhanços, como o dos outros compatriotas vivendo em cidades trepidantes e em lugares bafejados pela sorte. Ivy (Lilianne Nicholson) que ficou com a mãe, ama o primo Little Charles (Benedict Cumberbatch num papel de criança grande, nos antípodas do brilhante Sherlock Holmes da BBC) que Violet e a mãe dele sabem ser de facto irmão. Na hora do abandono geral, e em face da revelação, Ivy gritará um desesperado:"-it makes no difference!" (que é o contraponto, no registo dramático, do final de "Quanto mais quente, melhor": "-Nobody is perfect", em que Jack Lemon grita para o seu apaixonado milionário que é um homem).

Violet fica sozinha com o seu cancro na boca que parece o 'castigo divino' de uma verve cínica imparável. E dir-se-ia uma solução justa porque ela acaba de confessar que é de todas a mais resiliente. Ainda assim, quando se dá conta da sua solidão, que todas as aves visitadoras voaram para longe da terra pestiferada, refugia-se nos braços da sua índia Cherokee.