quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

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Almada

 

A CRISE DAS CRISES

Hitler com Ernst Hanfstaengl (à direita)

"Na política, é preciso ter o apoio das mulheres; os homens seguem-vos de 'motu proprio'."

(Adolf Hitler)


É preciso aderir a uma espécie de fisiologia social para compreender esta ideia. A política é coisa da palavra e da acção cívica e constitui um mundo separado da natureza ( e da economia, como o acabam, mais uma vez, de demonstrar as eleições italianas ). Essa separação pode chegar a extremos de que o século XX foi fértil.

Como o diria a filosofia antiga, pela sua função maternal (e não há função sem órgão e sem a 'potência' e a 'disposição' para isso ), a mulher está muito mais próxima da terra, e resiste muito melhor do que o homem a confundir a abstracção com o real, cilada em que cai muito frequentemente a política.

Mas no caso da Alemanha nazi, essa 'inteligência' feminina não funcionou. As mulheres foram cativadas, talvez ainda dum modo mais expressivo do que os homens.

Hitler não era, de facto, um político como os outros. Ele levou a violência verbal para o terreno dos instintos mais primitivos. Só foi possível, porém, manipular assim os impulsos sexuais e a agressividade porque o povo alemão, mulheres incluídas, tinha perdido o maior dos bens: a sua cultura, a civilização que fez a glória da Alemanha dos seus antepassados.

Não foi o caudilho nazi que o degradou e ludibriou. Ele já o encontrou por terra e com olhos para ver e ouvidos para ouvir o que queria que vissem e ouvissem.

A espécie de loucura do líder e a sua forma peculiar de destruir a política (desviando a palavra para o gozo ejaculatório) estão bem patentes no testemunho de Ernst Hanfstaengl, chefe do serviço para a imprensa do partido.

"Para ele (Hitler), falar era uma maneira de satisfazer um desejo violento e esgotante. Ao mesmo tempo, o fenómeno da sua eliquência tornou-se-me mais compreensível. Os últimos oito ou dez minutos dum discurso assemelhavam-se a um orgasmo de palavras."

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

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(José Ames)

PSYCHO





Era Karl Popper que dizia que "a maior parte dos problemas, senão todos, são problemas de sobrevivência."


O problema do 'suspense' que preocupava Alfred Hitchcock talvez não fosse um verdadeiro problema, mas estava decerto relacionado com a sobrevivência, ou com o medo, o último 'guardião da vinha'.

Já o poeta gostava de contemplar o mar tempestuoso dum lugar seguro, ou, em terra, o trabalho dum outro: "Suave mari magno turbantibus aequora ventis e terra magnum alterius spectare laborem;" (Lucrécio).

E não é tanto para nos prepararmos para a passagem difícil, como pelo prazer de sobrevivermos ao perigo que realmente não corremos.

"Psycho" foi o filme que estabeleceu Hitch, definitivamente, como o mestre do 'suspense'. O filme de Sacha Gervasi conta a história da sua produção, contra a resistência da indústria de Hollywood, numa primeira fase. Tratava-se dum filme sem precedentes, por abordar, com uma técnica consumada, o continente da loucura. Perkins é o Norman Bates perfeito. Um dos muitos mentalmente 'disfuncionais' que a nossa cultura técnica traz à convivência da dita normalidade.

A reacção do público da época, a julgar pela versão que nos é dada neste filme, faz lembrar a dos primeiros espectadores dos Lumière, ao verem um comboio aproximar-se deles à razão de 20 fotogramas por segundo.

É com "Psycho" que a frase de Freud, quando disse que levava a peste para a América, ganha todo o seu sentido. A psicanálise fez o seu caminho na cultura americana até ser consagrada num filme de Hitchcock do modo mais violento possível (longe do romantismo pacífico da "Casa Encantada").

O gozo do espectador pode medir-se pela dimensão pressentida do grande perigo. Ed Gein, o psicopata que terá inspirado o cineasta, é-lhe por de mais familiar...

Como não pretendo fazer uma crítica do filme, deixo a espantosa 'reincarnação' de Anthony Hopkins sem a menção devida.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

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Almada (José Ames)

O ESTADO DO BOSQUE


O actor espera-nos já sentado na penumbra, tendo por detrás um rectângulo iluminado no chão, como uma janela ou uma porta fora do lugar. As palavras começam pelo trilho que pode ter muitos sentidos, a exemplo da escrita. Mais três personagens são ocasião de uma espécie de diálogo que não é mais do que a explicação de se encontrarem ali, junto do guia cego. Cego como Homero. Depois as luzes apagam-se e a viagem começa. Uma viagem que podia ser a da morte, mas que suspeitamos que seja a da 'verdadeira vida', segundo o crente (era Mário de Sacramento que dizia que "diante do bezerro de oiro, somos todos crentes").

A encenação fez o que pôde da incursão teatral do poeta ("um dos três grandes poetas portugueses revelados depois do 25 de Abril", na opinião de Bénard da Costa). O resultado deixa-nos à míngua de poesia ( uma ou outra claridade distante como: "o trilho já te escolheu"), e não é de estranhar.

O público do teatro não é um sujeito, como o leitor silencioso da poesia. No teatro há um jogo de personagens (mesmo os "dois em um" do monólogo de Hamlet) e a palavra é definitiva. É pela palavra que a acção se decide. "Que palavras saltaram a barreira dos teus dentes?", lê-se na "Ilíada". E, dada a sua origem religiosa, no teatro há certamente rito. A convenção de dar a ouvir o pensamento, por exemplo. Pode-se evocar a guerra, no exterior do palco, com o tilintar das espadas, mas o acto deve ser "pré-dito".

"O estado do bosque" certamente que muda durante a peça segundo as palavras ditas. Luís Miguel Cintra não nos podia desiludir no essencial. O desfecho continua "aberto" a múltiplos sentidos. É só a memória da poesia que "estraga a festa". O "estado" do bosque, como o "estado" da nação, além disso, insinua uma avaliação que aqui é interrompida pela viagem nocturna. Depois do "Pater" niilista do centro da peça, essa interrupção só pode ser um sinal de esperança, contra o "estado" do bosque.

 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

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(José Ames)

O INFERNO DO ESQUECIMENTO



                                                    Charles de Sousy Ricketts, Orfeu e Eurídice


No mito de Orfeu, o herói descendo aos Infernos para trazer Eurídice de volta ao mundo dos vivos, perde-a por se ter voltado para trás, cedendo às suas súplicas e protestos de amor. Ela não sabia que o seu regresso nunca visto dependia daquela condição.

Muitas vezes um mal-entendido está na origem da tragédia.

Que é preciso vencer o sentimento, a piedade e o desejo é a interpretação mais superficial.

O admirável neste mito, como em tantos outros que a Antiga Grécia nos legou, é o seu sentido da verdade humana, a ponto de que quando julgamos estar em presença dum milagre (o regresso dos mortos), é a situação mais comum que se nos oferece, mas num plano transcendente (o verdadeiro Inferno é o esquecimento). Porque é uma nova vida que começa, mas como a duma presença invisível, mais próxima do que relação alguma.

O futuro de Eurídice seria assim real, sem ser actual (Deleuze).

domingo, 24 de fevereiro de 2013

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Antas (José Ames)

O "TUDO É ECONÓMICO"





"Se eu considerar a economia, por exemplo, não posso negar a existência de um princípio de realidade económica, de estruturas económicas de permuta. Mas, visto globalmente, o económico não se permuta com coisa alguma, não existe equivalência do económico enquanto tal. Nesse sentido, revela-se pois ininteligível em termos de pensamento radical. Ora o pensamento radical não anula o real (como o poderia fazer?), apenas o põe fora de jogo, fora da equivalência."

Jean Baudrillard ("O paroxista indiferente")


Numa sociedade dominada pelo discurso da Economia, estas palavras seriam um bálsamo, se não viessem dum profeta que nos promete o pior possível.

Baudrillard admite um princípio de realidade económica, mas nega à Economia a capacidade de tornar inteligível o mundo em que vivemos.

Continuam válidas as regras da aritmética e da contabilidade, o balanço do deve e do haver (como não?), mas os economistas saltam destas verdades comezinhas para explicações e vaticínios que pressupõem uma ciência da humanidade global, a qual não existe, nem pode existir.

É inegável que, por vezes, os factos parecem dar-lhes razão, mas, sendo as suas análises parte do problema, isso deve-se levar mais à conta da sugestão do que da consequência.

Em determinadas conjunturas, a Economia é a ideologia determinante e socialmente a mais eficaz, pois é verdade que a penúria simplifica drasticamente o problema humano e impõe a pertinência material do cálculo.

Sendo a economia uma variável entre outras e o seu fundo científico uma conjectura, resta-lhe ser uma opinião verosímil de que os governos deitarão mão, à falta de melhor.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

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(José Ames)

PÉGASO




"Diómedes devorado pelos seus cavalos" (Moreau)


Num jardim para os lados da Foz, dois centauros fora do cavalo. São guardas-republicanos e seguram a montada pela arreata como num landscape inglês.

A presença deste animal maravilhoso revela de súbito o artifício em que mergulhou a cidade.

A beleza da espécie, a sua forma mitológica interpelam a natureza sepultada sob o betão e Diómedes, domador de cavalos.

A sua aparição é um relâmpago que abole a velocidade e queima as nossas asas mecânicas.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

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Salgueiros (José Ames)

A TRAIÇÃO DE NINOTCHKA






Lubitsch, na primeira parte, antes de se apaixonar, dá-nos de Garbo o retrato duma idealista cega e cortante como uma guilhotina (dado o tom de comédia, melhor seria dizer, talvez, cortante como uma navalha castradora).

A transformação da personagem pelo amor, ou por um Cupido capitalista, nunca a leva a abjurar esse idealismo, apenas a deixar cair os seus antolhos.

Mesmo no final, em que se rende aos argumentos do seu apolítico amante e deserta com os três renascidos boémios que abriram um restaurante em Istambul, mantém uma réstia de fidelidade, protestando ser ainda "a good russian".

Não é só a coerência psicológica que leva o realizador a tomar este partido. Garbo, simplesmente, não pode "perder a alma", numa cambalhota ideológica levada pelo charme parisiense. O mistério da diva suporta a contradição, mas não o simplismo.

Ninotchka não trai. É reeducada pelo amor.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

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(José Ames)

A MONTANHA



"As primeiras almas, exactamente como os primeiros aviões, tinham de partir de uma montanha, não de uma época baixa."

"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)


As nossas metáforas não são inocentes. Nestas palavras de Hans, o namorado ariano de Gerda, há todo um programa de dominação para uma dada conjuntura histórica. O super-homem nietzscheano inspirou a ideia da montanha.

Mas, embora tenha surgido do mundo mecânico (das máquinas que voam), a comparação não se esgota no seu emprego arianizante. Faz sentido que precisemos de tomar altura quando não temos impulso para o salto, o que no campo da ética, por exemplo, quer dizer que não podemos passar sem os exemplos 'heróicos', como os entendia a Antiguidade. Sabe-se como as "Vidas de Plutarco", entre tantas outras obras, representaram uma tal ideia.

Os nossos heróis são à nossa imagem e semelhança, e a altura que ambicionamos é em grande parte mediática. Em vez de inspiração para a política, para as artes ou a vida moral, recebemo-la de ídolos que alcançaram a glória e o dinheiro no entretenimento dos outros, no espectáculo desportivo ou da televisão e do cinema.

A própria política, como se sabe, fez do espectáculo o seu modo de obter os consensos e precisa, sobretudo, de actores.

A metáfora de Hans é hoje manifestamente exagerada.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

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Antas (José Ames)

A POESIA EM XEQUE

Il Paradiso


Dante "evitara o xeque da poesia fazendo precisamente poesia do xeque, que não é poesia que quer dizer o indizível, mas poesia da impossibilidade de dizê-lo."
(Umberto Eco)

E Eco dá o exemplo do último canto do "Paraíso", em que o poeta, "no momento em que pôde fixar o olhar na divindade", "não consegue dizer-nos outra coisa senão que não o consegue dizer"

Para aplicar um termo da economia, que 'produtividade' é esta da poesia que não sofre com a incapacidade de dizer? Como se o que tivesse diante dos olhos fosse sempre o pretexto da sua 'fábrica'.

Podendo "fixar o olhar na divindade' segundo as palavras de Eco, quer dizer não cegando por esse facto, nem sentindo o teatral pavor do camponês diante do Rei Sol, fica é sem palavras para dizer o quer que seja (pois é o Ser que contempla, antes de qualquer 'determinação') e vira-se então para dentro, para si próprio e descreve o que sente, a impossibilidade do mundo fundar a linguagem.

É uma boa descrição da natureza da poesia.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

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(José Ames)

CORRECÇÃO




"Por onde um Wittgenstein passou, a erva da tolice e da vaidade verbosa não se devia permitir que crescesse."

(George Steiner, prefácio a 'Korrektur' de Thomas Bernhard)


Esta crónica dum tempo depois da morte de Roithamer (personagem inspirada no filósofo) pelo seu testamentário é, talvez, a obra-prima de Bernhard (Steiner dixit).

A prosa do escritor, como sempre, é feita de "um movimento de maré, endoidecedor, de recursividade rangente, com os seus eufemismos sarcásticos, a sua economia reduzida ao branco do osso, utilizado para mais fundo propósito." (Ibidem)

Este texto representa o equilíbrio, referido pelo comentador, de tendências que noutras obras chegam a ser exasperantes, em que o ódio à pátria e à cultura dominante são igualmente obsessivos, mas quase nada deixam para além dele ( o 'furor Bernhardiensis' referido pela edição de 2003 da Vintage)

A paixão de Roithamer radica na separação da família e do país. É contra eles que a pureza do seu mundo se constrói, a lembrar o "abandona pai e mãe, e segue-me" do evangelho.

A função obsessiva da repetição na novela é a de uma 'correcção' maníaca, porque infinita. Corrige-se o já corrigido, até ficar o branco do papel. Que sorte para nós que Da Vinci que sempre levou consigo o seu mais famoso quadro, por nunca o ter considerado acabado (perfeito), tivesse conseguido dominar essa tendência!

A casa que Wittengenstein quis construir em Viena para a irmã (o tema do incesto irmão-irmã é ubíquo no escritor, segundo Steiner), "uma casa duma austeridade e claridade de linhas sem compromissos" (GS) é na ficção de Bernhard representada por um Cone, no meio da floresta de Kobernauss, na Caríntia. Um cone 'revolucionário' que, de facto se tornou no túmulo da sua destinatária.

Roithamer suicida-se pouco depois na mesma floresta. Quanto a Wittengenstein, embora dois dos seus irmãos se tenham suicidado e ele próprio se tenha sentido algumas vezes disposto a pôr fim à vida, morreu de cancro, em 1951, em Cambridge, sem se 'corrigir' como Kafka, outro obsessivo da pureza.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

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Porto

A DÚVIDA QUE SALVA

André Maurois


"Quem é capaz de duvidar e crer, duvidar e agir, duvidar e querer, está salvo."

(André Maurois)

É a lição do mestre, Alain.

Porque a dúvida não dá sossego, não há 'descansar à sombra dos louros' e o crer não tem o amparo da boa consciência.

A dúvida na acção é uma contradição nos termos. Rouba sempre alguma força, tanto mais que nunca poderemos provar que a acção é justa. Por isso o soldado exemplar abdica na hierarquia. Se duvidas no momento de saltar, falhas o salto, como dizia o mesmo Chartier. É por isso que a acção depende de uma jura a si mesmo. Como quando Ulisses mandou os seus homens prendê-lo ao mastro. Os melhores pensamentos no momento do perigo são sereias.

E o que é a vontade se nunca chega o momento de decidir? Isto é, de cortar com a dúvida? Há que entender esta conjunção. Duvidar e querer são dois momentos necessários, mas nunca simultâneos. Porque não se pode querer e não querer ao mesmo tempo.

Tolentino chamava a atenção, no Expresso desta semana, para a conotação teológica do converter, do salvar e da justificação, usados em qualquer computador. Salva-se documento de quê? Do fluxo sem nome da informação digital, em última análise, do 'dust bin', do lixo.

O que Maurois diz com o seu salvar não anda longe disso. Só há homem se nos 'salvarmos'. Quando a dúvida deixa de nos estremecer, somos, mais ou menos, uma coisa entre coisas.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

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(José Ames)

 

LA LOCANDIERA





"A estalajadeira" (Carlo Goldoni, 1752) no teatro de S. João, com uma plateia surpreendentemente jovem (mas a noite do Porto não é para velhos, e aquela praça vela o cadáver do cinema Batalha, escondido pela silva dos graffiti).

Mirandolina (Catarina Wallenstein) tem vários pretendentes, socialmente 'transversais', e de todos a sua virtude triunfa. Com o cavaleiro que odiava as mulheres alcança a sua coroa de glória. Mas como é uma mulher ajuizada e do seu tempo, casa com o seu criado Fabrizio.

A mulher 'emancipada' (mas, evidentemente, no sentido do 'Ancien Régime', uma espécie de Pompadour plebeia que sabe levar pela trela o 'rei da espécie', nada mais) rende-se ao socialmente correcto, entronizando Fabrizio como o novo patrão da estalagem e introduzindo-o na contabilidade.

Esse final conformista, depois da exaltaçäo do 'segundo sexo' (sempre longe, todavia, da problemática da igualdade; a mulher domina pelos seus encantos e pela sua astúcia), deu lugar a um comentário entre duas jovens, na fila de trás: "O final é chocho, mas é preciso pôr a coisa no seu contexto..."

A peça está cheia de ritmo, os actores são muito bons. A convenção teatral não choca o leigo, habituado a outras 'cadências' e a outra linguagem. Mas, de vez em quando, um pequeno atrito fere, como um movimento da Wallenstein demasiado rápido que tem de estacar por falta de espaço, ou a ideia de fingir as espadas. Se é admissível, em certas encenações, suprimir as duas comediantes, por que não levar o partido da 'semi-actualização' até ao fim, adaptando a cena?

De tarde, mais uma manifestação contra a política do governo. À saída, perto da meia noite, a sopa dos pobres. Uma fila de cerca de trinta pessoas que passam pela mala dum carro aberta para receber a sua porção.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

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Porto (José Ames)

 

AS RAÍZES NO LABORATÓRIO






"É verdade que a América se dá ao luxo de ser uma espécie de sociedade primitiva, de usufruir de uma inocência e de uma potência imoral. E nós podemos dar-nos ao luxo de usufruir da América do mesmo modo, de esquecer a relação de forças e de viver a riqueza como uma situação irreal."
Jean Baudrillard ("O paroxista indiferente")



Deveremos considerar a América uma sociedade primitiva?

Pela pujança dos seus deuses que nenhuma má-consciência perturba, pela exuberância gargantuesca da sua economia, por um imperialismo feliz e iluminado, na forma como se estende pelo planeta, através das armas, mas principalmente sem elas, cavalgando as ondas hertzianas e o espaço virtual das imagens e da Internet, como um Átila do soft?

Baudrillard compara essa cultura desenraizada, que já vive no hiper-real (para além do moderno), com uma Europa que com uma mão se agarra às suas raízes e aos seus pergaminhos e com a outra se prende ao vácuo (ou ao cabo transatlântico).

Tenho para mim que a ruptura com o passado só pode levar-nos ao irremediavelmente caduco. Mas o laboratório do outro lado pode explodir-nos na cara.

Estas considerações podem parecer ultrapassadas pelo chamado declínio americano e pela crise económica global que teve origem nos EUA. Mas devemos ter em atenção a dimensão artificial desta crise. Só a força se pode permitir perder tantas energias como as consumidas pela classe política americana.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

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(José Ames)

 

A TEOLOGIA DO INTERESSE

Claudete-Adrien Helvétius (1715/1771)



"Se o universo físico está submetido às leis do movimento, o universo moral não o está menos às do interesse."
(Helvetius)

Este lugar-comum, anterior ao marxismo e à economia política por este influenciada, explica por que é tão natural que a doutrina da economia como "última instância" seja tão popular e por que os economistas sejam os sacerdotes desta nova teologia.

Diz Alain, na esteira de Comte, que o inferior suporta o superior, o que não é bem a mesma coisa. Em relação a este 'inferior', com mais propriedade, se podia dizer que o o átomo (não aprofundemos mais) é a 'última instância', mas isso parece-nos incrível porque essa 'ínfima porção' não pode ser a Causa que tanto tem preocupado os filósofos desde a alvorada ática.

Claro que talvez seja mais razoável partir da sociedade, como a 'origem' do homem. Será então esse o clarificador da 'última instância'? Será a economia mais 'básica' para a sociedade do que, por exemplo, a língua? Será que as nossas ideias sobre a economia são de somenos na prática da economia? Haverá uma economia, por assim dizer, natural? Qualquer coisa que pudesse ser estudada como estudamos a física? Por absurdo que pareça, a escola económica dominante funciona como a física teórica, dispensando bem as provas da realidade.

O século XX foi, nesse sentido, o mais anti-económico possível. Os totalitarismos fizeram completa abstracção do interesse económico e mesmo de qualquer interesse vital.

Enfim, o lugar-comum sobre a economia vale aquele outro sobre as leis do movimento.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

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Salgueiros (José Ames)

 

CALCÁRIO

Fiama Hasse Pais Brandão



"Só o chá me traz a minha tarde,/ com a chávena e a minha mão que são/ o mesmo pedaço de calcário."

(Fiama Hasse Pais Brandão, "Canto da chávena de chá")


O despojamento precisa de ser salvo do naufrágio, quando nenhum objecto é terra firme.

Há uns anos, Alçada Baptista contou uma história sobre Gandhi. Tinha-se partido o espelho com que fazia a barba. Logo ali, o Mahatma viu uma oportunidade para pôr em prática a sua doutrina, e decidiu que, a partir daquele dia, seria livre de mais uma coisa. Faria a barba sem espelho.

Mas as pessoas comuns precisam do 'calcário' para lhes 'trazer a tarde'. O nosso mundo é feito de pessoas e objectos que nos prendem ao passado e que nos ensinam uma espécie de coerência. Os torcionários bem sabem o poder destrutivo duma cela vazia.

No outro extremo, deixamo-nos 'mobilar' por eles, os objectos. Fazemos parte do seu 'design'. É conhecido como o poder difuso das ideias nos governa através do 'sistema dos objectos' (Baudrillard).

Mas deve ser possível, mesmo à má consciência consumistíca moderna, fazer a paz com o 'calcário', irmão dos nossos ossos.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

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(José Ames)

ECONOMIA PARA AS CRIANCINHAS



A fada azul segreda a Pinóquio (Paula Rego)


A opinião (a doxa) tem a certeza de que há coisas que são verdadeiras e incontestáveis, práticas, do senso comum, como, por exemplo, de que com um pão não se conseguem alimentar multidões (apesar da parábola evangélica).

O problema é que o elementar e o simples de entender, como uma soma ou uma subtracção, estão a uma grande distância, através de incontáveis mediações, das operações matemáticas (para só falar nesta disciplina) que estão na origem das invenções, sem as quais não seria possível a vida de milhões, no espaço em que vivem, e da forma como vivem.

Assim, não há limite para a necessidade da teoria e o mais abstracto tem tanta ou mais importância do que o mais concreto.

É por isso que a Economia explicada às criancinhas desencadeia as paixões que conhecemos.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

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Parque de S. Roque

 

A ENTREGA DAS CHAVES

No último filme de Nanni Moretti ("Habemus Papam"), vemos um papa, que acaba de ser eleito num muito agitado conclave, presa das dúvidas de um contemporâneo, a ponto de encerrar os cardeais com um psicanalista, e a quem a fé não chega para a imolação que lhe é exigida, nem para se sentir à altura das gigantescas responsabilidades que terá de assumir.

A surpresa desta resignação de Bento XVI, a primeira desde o século XV, não pode deixar de chocar a comunidade dos fiéis, como o caso do capitão que abandona o seu navio no perigo, ou o soldado, o seu posto na 'trincheira'.

O lugar exige, talvez, mais do que é humanamente possível, mas a sucessão de pontífices ao longo dos séculos parece provar o contrário. A menos que todos eles mais ou menos se tenham conformado com as suas limitações crescentes (com o peso da idade) e tenham confiado a direcção da Igreja à Providência. Ora, porventura estará aí a diferença entre um intelectual reconhecido e assumido como Bento XVI e todos os seus antecessores. Este papa não tem o 'carisma' de João Paulo II, mas tem uma ideia (mais actualizada?) sobre o papel dum sumo-sacerdote e o papel da Igreja.

Se, como diz hoje o 'Público', há um enigma nesta renúncia que o tempo há-de esclarecer, e que o Papa se sentiria impotente para varrer os 'vendilhões do templo' da própria Cúria romana, este gesto contra a tradição é uma 'pedrada no charco', pois poderá criar as condições para as reformas que ele, Bento XVI, julga inadiáveis.

Não obstante a decepção que inevitavelmente causará entre os fiéis, pois muitos terão sempre a sensação de que é por fraqueza que renuncia, como a do velho actor no filme de Oliveira "Vou para casa" (2001), a verdade é que, no caso de um sentimento de impotência associado ao rigor e à lucidez (pelo que teremos de esperar por um melhor esclarecimento da situação), é sobretudo de coragem que temos de falar. Este papa não confia muito na Providência para resolver os problemas da Igreja de hoje.

Neste caso, não assistiremos à morte de mais um papa, nem à martiriologia de um João Paulo II, que, no seu anacronismo, talvez não tenha servido a Igreja, tanto como se pensa.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

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(José Ames)

 

A COR DO GATO



"(...) talvez se tenha de estar preparado para admitir que hoje é um sinal de progresso, e mesmo uma libertação, se as condições básicas da nossa vida já não são decididas pelo voto popular..."

(Robert Menasse, citado por Hans Enzensberger in "Brussels the gentle monster")


Depois de observar de perto a organização e o modo de funcionamento das instituições da União Europeia, o autor conclui que o chamado 'défice democrático' da UE, mais do que um defeito constitucional é algo que está inscrito nos genes da União o que, compreensivelmente, facilitou, desde o princípio, os avanços da organização. Como homem pragmático que era, o próprio Jean Monnet nunca fez disso uma questão.

Continua Menasse: foi então que "me ocorreu o pensamento, de que a democracia clássica, um modelo desenvolvido no século dezanove para a organização racional dos estados-nação, não pode simplesmente ser aplicado numa união supra-nacional e, na verdade, talvez a impeça."

Em termos de democracia política, a tríade constituída pelo Parlamento, o Conselho e a Comissão, como diz o autor, produz um 'buraco negro'. A questão que se põe é se isso é um 'sinal de progresso' paradoxal e 'indigerível' pela cultura democrática.

Eu estou pronto a admitir que não é nada certo que a democracia, tal como a conhecemos, fosse melhor solução, no caso chinês, do que a actual política do PC. A democracia que vier, que for conquistada, será muito mais autêntica, porém, do que um decreto libertador.

A 'cor do gato', nesse país, continua a importar pouco. Um dia mudará a cor, por senso comum e conformismo, e o gato continuará a caçar ratos.

Mas na paleta disponível, a cor do gato europeu é também um problema.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

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Paço de Arcos

 

O MENTOR




Se "O Mentor", o filme de Paul Thomas Anderson, é um exemplo de como nascem algumas seitas nos EUA, aspirando, em volta dum líder nem muito dotado, os destroços da sociedade, como Freddy Quell, a personagem interpretada por um Joaquin Phoenix surpreendentemente 'físico', temos a medida tanto do vazio dessas vidas como do que o preenche.

Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman) é o autor dum livro de sucesso sobre as nossas sucessivas reencarnações e 'viagens no tempo'. Quell, um ex-'marine' neurótico e temperamental encontra-o quando o 'guru' se defronta com a impossibilidade de dar continuidade ao primeiro volume e à representação do seu papel de inspirador do grupo. Os dois homens são, no fundo, complementares. Quell não precisa de acreditar na 'banha da cobra' do seu mentor para se comportar como um fiel indefectível e guardião da 'ortodoxia', sovando toda a espécie de críticos. Dodd retribui com uma amizade especial e a cumplicidade do álcool, defendendo-o da equipa dos 'gestores', encabeçada pela sua mulher.

Mas chega a hora da separação depois de tantos desmandos do ex-'marine'. A administração da seita toma o controlo do negócio, 'domesticando' o próprio chefe que, na entrevista final com o 'alter-ego', lhe diz que temos todos de obedecer, de uma maneira ou de outra, e ele, Quell, precisa de escolher.

Quell prefere sonhar ao lado da sua mulher de areia.

Castrado o líder, a seita pode, enfim, prosperar na sua sucursal inglesa, desenvolvendo, com a seriedade necessária, as técnicas aproximativas do mentor.