terça-feira, 27 de dezembro de 2005

O FRUTO PROIBIDO


Adão e Eva (Ticiano)


"Talvez os vícios, as depravações e os crimes sejam quase sempre, ou mesmo sempre, na sua essência, tentativas para comer a beleza, comer o que é necessário olhar apenas. Eva marcou o começo. Se ela perdeu a humanidade ao comer um fruto, a atitude inversa, olhar um fruto sem o comer, deve ser o que salva."

"Espera de Deus" (Simone Weil)


Esta hipótese vai mais longe do que a de Sócrates quando diz que ninguém é mau voluntariamente.

Na imagem weiliana da fome coloca-se o desejo no centro da alma e o mundo enquanto necessidade e harmonia como seu alimento.

Este desejo, porém, não se confunde com a líbido freudiana e não pode ser satisfeito pela posse da beleza. É o olhar que salva (como a serpente de bronze de Moisés, que Simone cita).

Por isso, o crime é, como em Sócrates, uma violência devida à paixão e à ignorância. Mas a Beleza é menos abstracta do que o Bem, sendo na concepção de Simone Weil um atributo do universo que também somos.

O desejo, pelo que tem de sensível e secreto permite ultrapassar os limites do sujeito da consciência e representa melhor o ser humano na verdade da sua incompletude.

E a injustiça, do mesmo modo, não pode ser completamente solúvel no social.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

DIA DE FESTA

Neste dia, as ruas estão desertas. As portas fechadas, as vizinhas não espreitam por detrás das cortinas.

Dum lugar mais alto, pode ver-se um adulto que brinca um momento com uma criança, para voltarem depois para a mesa que os espera.

Outras pessoas chegam e desaparecem dentro das casas.

O vento é a legenda destas cenas minúsculas, como uma aldeia vista por Bruegel, o velho.

Alguns homens juntam-se no único café aberto e ouve-se apenas um sussurro, como se intimidados pela felicidade geral.

Ao atravessar a cidade vazia o que me era mais sensível era o significado disso: o recolhimento de todos, ao mesmo tempo, como se numa única e grande casa.

domingo, 25 de dezembro de 2005

HALTEROFILISMO






Encontrei-o na Ribeira. Cumprimentámo-nos friamente, sem nos determos. Ele não perde uma ocasião para humilhar o seu semelhante, mas fá-lo, julgo eu, convencido de que está a limpar o mundo dos incapazes e a afirmar uma espécie de aristocracia da inteligência. É um homem sem cultura, no verdadeiro sentido da palavra, embora esteja muito bem informado. Habituou-se a este vácuo criado à sua volta que recebe como uma homenagem. Há pessoas que se vê logo que foram talhadas para o poder, que é militar na sua essência, como alguém disse. Um feitio assim intratável proporciona algumas alegrias de escravo quando se mostra benevolente para nossa surpresa. Nessa incoerência, adivinho que ele não perdeu a esperança de fazer amigos. É preciso gozar de muito boa saúde e ter uns nervos sólidos para aguentar a sua reputação. Vai acontecer-lhe, com a idade, o que acontece com os músculos dos halterofilistas.

sábado, 24 de dezembro de 2005

A NOMEAÇÃO DAS NINFAS



Neste aniversário de "Lolita", de Nabokov, não me é possível ter o texto presente (precisaria de lê-lo outra vez), mas apenas o filme de Kubrick, o que não aconteceria se este não fosse a obra-prima que é.

Se há um escândalo no romance deste europeu de meia-idade que perde a cabeça por uma ninfeta, o pecado parece atenuado pela "perfeição" sexual de Sue Lyon e pelo papel lastimável e patético que cabe a Humbert Humbert (um James Mason não se podia mais pai de família) no enredo de sedução e ludíbrio em que se queimou o que foi buscar lenha.

Assim, a teia maquiavélica urdida por um Peter Sellers genial ao longo das suas metamorfoses funciona como uma máquina penal deliciosamente hipócrita.

AREIA NA AMPULHETA

A areia fina e plana junto ao mar em Leça. Uma piscina abandonada nos rochedos.

Já não tenho as pernas dos dois corredores no seu fato de borracha.

A consolação, que é o prémio da atitude chamada filosófica, não é ainda a verdade.

A juventude não nos pertence enquanto centros do mundo. A eles, porque não podem pensar isso, a mim, porque só sentiria a falta.

Mas quando o centro está em toda a parte, o peso e a asa são um só.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2005

UNA FURTIVA LACRIMA

A última cena de "A woman of Paris" (1923), de Chaplin: a carroça em que essa mulher traviatta e regenerada se cruza no caminho com a limousine do seu antigo "protector", sem se reconhecerem.

Depois do outro tema forte da trágica influência dos pais sobre os amores dos filhos, este, da virtude da pobreza e duma vida dedicada aos outros.

Sem a presença de Charlot, o que é que salva este filme de se tornar um dramalhão?

A inspiração dum primeiro amor.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

BALADA DE NEVE


A: Arcabuz Japonês B: Arcabuz inglês (culatra rabo de peixe)

O BES, nesta quadra, quer presentear-nos com um espectáculo de neve, e há-de consegui-lo, se não for travado pela burocracia.

Já importámos o Halloween e o Santa Claus, com o seu trenó puxado pelas renas. Era uma pena que só por uma má disposição da Natureza, não tivéssemos neve também.

Esta outra evangelização é talvez mais eficaz do que a dos missionários, que tinha sempre por perto o arcabuz.

Tem o pequeno inconveniente de nos deixar sem alma.

MARTÍRIO SEM CAUSA



Enfim, vi duma ponta à outra um lado a lado das presidenciais.

Não para me informar, certamente. Para me decidir por um detalhe, pelo que revela um descontrole? Nesse caso, a surpresa só poderia vir de Cavaco que é o controle em pessoa.

Soares, permanentemente ao ataque (como que a calar os que o acusam de estar gasto) e a criticar a postura e o temperamento do outro, não sentiu a necessidade de se explicar nem de dar a conhecer o que pensa sobre o cargo, a não ser picado pela ironia do adversário.

De facto, ele sabe que não há nada de novo a dizer. Está tudo dito e redito.

Por isso é que o silêncio é temível, porque dá espaço à imaginação.

Compreende-se, assim, que para Soares o esclarecimento necessário não era o das suas ideias, mas o do vazio daquele silêncio.

Apesar de tudo, não conseguiu demonstrar que não há nada por detrás da postura cavaquista (a televisão só permite o banal e as generalidades) e fez do seu opositor um mártir, sem causa para muitos, mas um mártir.

A questão é que a nossa sociedade mediatizada, na ocorrência, mais do que uma ideia e de um discurso transparente quer ser seduzida por uma imagem.

Está feita a mise en scène da crise. Falta-nos o ícone para resolvê-la numa atmosfera de unção e de sacrifício.

Alguns chamam a isso um clima de confiança.

terça-feira, 20 de dezembro de 2005

JOKANAAN

Se quisermos encontrar na música o exemplo duma obsessão suicida, temos de ouvir a litania de Salomé quando pede a cabeça de Jokanaan, em Richard Strauss.

É também uma fome surda que nenhum alimento aplaca, porque não é física.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

FLOREADOS


Robert Walser (1878/1956)


Canetti conta, em "La Langue sauvée", que foi apanhado pelo seu professor de Latim a ler, na aula, um texto de Walser.

Depois de cheirar o que era, o professor perguntou-lhe que tal o achava:

"Eu sentia que ele estava zangado, mas não queria dar-lhe inteiramente razão porque o livro, apesar de tudo, me atraía enormemente. Adoptei um meio termo: -Tem demasiados floreados, disse eu.

- Demasiados floreados? exclamou.

É um mau livro! Isso não vale nada! Podemos passar bem sem a sua leitura!

Em suma, uma condenação sem apelo. Eu cedi, fechei o livro a contragosto e continuei a lê-lo fora das aulas, com tanto maior curiosidade. A minha paixão por Robert Walser que, ao princípio, estava mais vacilante do que outra coisa talvez tivesse acabado ali sem a intervenção do professor Walder."

Refiro esta história porque só agora comecei a ler o meu primeiro Walser ("A rosa") e, quanto mais não fosse fiquei muito interessado pela sua estranha identificação com o príncipe Míschkin do "Idiota" de Dostoiewski. Ele diz que o conteúdo deste romance o perseguia por todo o lado.

Esta personagem ingénua era duma bondade desconcertante, parecendo dar razão ao aforismo que diz que facilmente se confunde um homem bom com um tolo, e acabou num hospício no fim do livro. Ora Walser, em cujas páginas verifico uma sensibilidade encantadora passou os últimos vinte e sete anos da sua vida num manicómio perto de Hersau.

A FORMATAÇÃO DA POLÍTICA

Os pseudo debates das presidenciais são o fim dum percurso de submissão da política à televisão.

Não que o espectáculo seja de todo destituído de interesse, mas em suma, isto está tão longe da participação democrática e do esclarecimento como um anúncio comercial o está da objectividade.

É mais massagem do que mensagem, como afirmou Mc Luhan.

Podemos medir o caminho percorrido, comparando a mais famosa parada de esgrima, com saída para o jocoso que nos foi dado ver no pequeno ecrã, com o "olhe que não" da última versão paródica.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

A PÚRPURA COMO MEIO



Jean-François Paul de Gondi, cardinal de Retz (1613-1679) .


Uma das coisas que me intriga em Simone Weil é a sua admiração pelo Coadjutor de Paris ( o futuro Cardeal de Retz ).

Ninguém pode deixar de render-se ao estilo do homem, à sua energia, lucidez e coragem, ao seu golpe de asa. Mas, enfim, era um ambicioso para quem a sotaina e o barrete cardinalício foram o que as armas ou a sedução representaram para outros: um meio para atingir a fama e o favor do povo (aquela que, de qualquer modo, só as "Memórias" lhe garantiram em absoluto).

O que há então neste homem tão próximo da irreligião e da mundanidade que justifique a excepção da filósofa, cujo juízo foi noutros casos tão severo e exclusivo?

Retz, decerto, não procurava a grandeza à maneira dos Romanos e foi, talvez, se não é uma contradição nos termos, um poeta da política, apaixonado pela acção pura, numa época em que a política não se tinha tornado ainda numa profissão e quase no estigma que é para nós hoje.

E vejo no amor de Simone pela Pólis grega uma possível explicação para admirar este homem verdadeiramente livre no meio das facções e dos perigos.

terça-feira, 13 de dezembro de 2005

MOTOQUEIROS E GAIVOTAS



Há dias em Vila do Conde, junto ao forte e à capela da Senhora da Guia, em que Régio gostava de casar, o habitual rendez-vous dos blusões de couro, das luvas e dos capacetes, com as suas montadas faiscantes. Conversam com um pé no estribo e outro em terra, ou sentam-se na esplanada com uma bebida.

Mais adiante, sobre um rochedo, um grupo de órfãos do convento lançam ao horizonte os seus gritos de gaivota.

E, como pano de fundo, o mar onde o estrondo das motas e o escape adolescente se acordam no silêncio.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

O MORALMENTE CORRECTO



Passei hoje pela Praça da República e pelo "Rapto de Ganymedes" que se encontra na parte norte do jardim, esquecido no seu verdete.

E perante esta história do pai dos deuses rendido aos encantos daquele que viria a servir o néctar na corte olímpica e, mais uma vez, recorrendo à metamorfose para iludir os ciúmes de Hera, não posso deixar de pensar na polémica dos crucifixos.

Estes, estiveram no Limbo (agora abolido por Bento XVI) desde a ditadura, donde foram arrancados pela deusa Razão que, como se sabe, não suporta contradições lógicas, nem faltas de consequência.

Tremo de pensar que alguns símbolos da Antiguidade Clássica sejam também expulsos do Limbo e possam ser objecto duma reavaliação, moralmente correcta.

domingo, 11 de dezembro de 2005

O MILAGRE DA INFORMAÇÃO


Tales de Mileto

"Então, o encanto pernicioso da Itália actuou nela e, em vez de adquirir informação, começou a ser feliz."

E. M. Forster

A informação tornou-se a ilusão que nos impede de saber.

É a montanha de cuja massa impressionante sai o minúsculo animal desorientado.

Mas sem ela haveria alguma ciência, ou seria possível a grande cidade?

É preciso responder que não. E, no entanto, dizer que de posse de toda a informação ainda não sabemos o que fazer com ela, que estamos como no princípio em que temos de decidir sem provas e escolher um caminho onde não há caminho.

Verificamos que o milagre da informação é que todo o universo conhecido se pode converter em informação, e isso não é muito diferente do idealismo mais extremado.

Mas Tales quando dizia que tudo são deuses era menos supersticioso.

sábado, 10 de dezembro de 2005

CLARUM PER OBSCURIUS


Jules Lagneau (1851/1894)

"Para o meu antigo aluno,
Maurice Toesca.

Este livro, dizia-lhe eu, tem esta facilidade que consiste em ser difícil, e esta clareza que vem duma extrema obscuridade. O meu mestre deu-me a conhecer a sua divisa, Clarum per obscurius que é um grande segredo. Leia pois estas etapas do homem (como eu gosto de dizer) e pense em mim até me impedir de morrer.

De resto, não se morre!

Coragem, pois, meu querido amigo."

(Dedicatória de Alain num exemplar de "Les Dieux")


Em Esmoriz, o céu. O azul esconde o firmamento, como um olhar que não nos revela a alma.

Não há astros, nem lua, a luz apenas e a cor.

Pelo esclarecimento, a treva cada vez maior. O contrário da divisa de Lagneau, "clarum per obscurius".

Assim na linguagem de todos os dias a evidência esconde as espirais do passado.

Por isso a "tabula rasa" é uma utopia de geómetra.

A abolição dos exames a português parece um ovni vindo dessa terra que não existe em lado nenhum.

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

PENÉLOPE



Por cinco minutos, entre duas paragens, aquela mulher achou que valia a pena.

Tirou do saco de plástico a seus pés a renda e as agulhas e deu ao dedo, como um tear a que voltou a luz. Tem a vista cansada, pela inclinação da cabeça.

De vez em quando, olha para a rua, como se fosse um novelo que ameaça rolar pelo chão.

Parece-se comigo aquela mulher.

Também gosto de tirar o livro do bolso e ler cinco minutos coisas que esqueço logo.

Linha a linha, a leitura me acrescenta, bordado que a memória desfaz, sábia Penélope.

Porque também eu espero.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

A ALIENIZAÇÃO DOS MEDIA


"Alien 3" de David Fincher (1992)

O editorial de Jean Daniel no "Nouvel Observateur" vem ao encontro do que aqui já expus sobre os "banlieu 2005".

Apesar de serem reais os problemas de integração, de racismo étnico e cultural, a que os Franceses facilmente dão o flanco, não haveria acontecimento sem a televisão, o telemóvel e a internet.

A criação dos factos e a sua sucessão em cadeia foi, talvez, espoletada por uma única imagem, energética, potencialmente explosiva no contexto nacional e internacional, mas ainda sem legenda.

A emulação e os comentários deram-lhe o nome e a palavra.

Os media, como um "alien" que inseminasse a vida mostraram, uma vez mais, o seu terrível poder.

sábado, 3 de dezembro de 2005

A MAGIA DO NATAL




Gosto muito de cinema e mesmo do cinema na televisão, embora aí perca toda uma dimensão que faz, talvez, o seu encanto na minha memória.

Mas esse sentimento e essa tolerância não se estendem à televisão enquanto tal.

E penso que é a sua função psicótica (contra a ideia dum desafecto do espectador, na linha dum Mc Luhan) que me repele.

A ideia de que é possível transformar a vida em entertainment (quaisquer que sejam, evidentemente, os conteúdos), com um serviço canalizado a ocupar-nos todos os instantes e horas, a tomar conta dos nossos medos e dos nossos desejos como se a sociedade fosse um lar da terceira idade, é isso que a diferencia tão radicalmente do cinema.

Eu sei que ninguém passa a vida diante da televisão (a não ser alguns tele-dependentes), mas não é preciso tanto para já vivermos no entertainment.

A coisa mais lúgubre que se pode imaginar é, por exemplo, a expressão magia do Natal, na fala da publicidade e da televisão.

Magia é mesmo o que eles matam em primeiro lugar.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2005

O BOOMERANG

O lixo por recolher parece o boomerang do consumismo sobre as nossas cabeças.

Uma greve que vem pôr-nos diante dos olhos a urgência das funções mais humildes.

E ao contrário da greve dos juízes, esta não se limita a entupir mais um pouco uma burocracia já entupida. Para além de ser justa.

quarta-feira, 30 de novembro de 2005

A MATANÇA DOS PINHEIROS NOVOS

Ao longo da Circunvalação, sob os plátanos outonais, ao lado das carrinhas ou às costas de algum vendedor furtivo, o habitual cortejo dos pinheiros sacrificados ao deus do Christmas.

Depois dos hectares que arderam na televisão, estes outros vão arder junto de lareiras nostálgicas, carregados de electricidade e de brinquedos.

Em minha casa, há muitos anos que a minha mãe utilizava o mesmo pinheiro bonzai artificial que de cada vez tirava do armário só para, de longe, honrar a tradição.

Pôr na moda um pinheiro sem resina nem verdadeiras pinhas só depende, afinal, dum comércio "amigo do ambiente".

UM HOSPITAL

Hospital de S. João


O hospital, fora dos grandes desastres, deve ser o lugar onde se concentra maior sofrimento, dor, abandono e a pressão do humano sob a sua forma mais intolerável. E, sem dúvida, o lugar onde a dedicação e o heroísmo melhor se podem revelar.

Para muitos doentes é o fim da linha e para muitos dos que exercem ali a profissão é o fim de algumas ilusões e da graça de viver longe das situações-limite.

Suponho que existam nichos mais protegidos num mundo terrível como esse. Funções laterais ou que mergulhem numa certa esquizofrenia do meio.

Na inundação trágica das urgências surge de tudo: os que esbracejam para não se afogarem, os ansiosos, por si ou pelos próximos e sempre, do outro lado, do segurança ao médico, o movimento de defesa, nas atitudes e nas palavras.

Chegamos a admirar-nos que alguma coisa funcione e que a certos guichets mais sossegados nos acolham com simpatia.
E já não nos causa estranheza que um doente que volta ao hospital seja um perfeito estranho para os médicos, como se a informática só servisse para um controle electrónico das visitas ( que, no S. João, pode demorar quase tanto como a própria visita).

domingo, 27 de novembro de 2005

QUASE UMA PALINÓDIA

Cheguei a uma parte muito interessante em "Extinção" de Thomas Bernhardt, para que fui algo injusto no último post sobre o romance: o funeral dos pais.

A família que escondera durante anos alguns nacional-socialistas fugidos à justiça, na "casa das crianças", vai a enterrar, sem sentimentalismos, nem perdão.

A maldição de Wolfsegg estende-se a todo o país. É preciso que vítimas e algozes desapareçam para se começar algo de novo.

Noutro estilo, é acreditar na redenção pelo futuro, como o Ulrich de Musil.

IMITAÇÃO DA VIDA


Imitação da Vida (1959)


A paixão pela vida do teatro, pelos sucessos duma carreira, frente ao que não seria imitação, mas a própria vida: o amor de uma ou duas pessoas.

Pelo meio, um drama de cor de pele não assumida que faz chorar o betão armado.

A vida não é um melodrama, nem o amor é tudo na vida. Que importa?

É "Imitation of life" de Douglas Sirk.

Nesta marginal de Vila do Conde, tantas vezes percorrida por Antero, num tempo feliz entre depressões, espera-me hoje uma epifania de luz que a floresta das nuvens torna ainda mais espectacular. Não falta uma escada de trapezista deixada por um jacto.

Em baixo, a árvore da espuma é sugada, num ápice. E, logo a seguir, uma língua de mercúrio galga a boca da areia e faz-me recuar para não molhar as botas.

sábado, 26 de novembro de 2005

O SILÊNCIO NEM SEMPRE É DE OIRO


Demócrito (460/360 a.C.)

Um artigo de José António Saraiva no "Expresso" desta semana sobre o cansaço dos portugueses em relação à política e aos partidos.

Para justificar que o silêncio e o "low profile", nesta altura, compensam. Pelo contrário, os que insistem na oratória (mesmo que tenham os dotes) não levarão a carta a Garcia.

Não me parece que a política saia muito dignificada desta análise. É preciso, em primeiro lugar, saber se o alegado cansaço do povo português não é antes uma demissão de cidadania, estando ele farto de que lhe falem nos problemas do país e não ignorando que esse discurso, sobretudo se for realista, vai ter para si, mais cedo ou mais tarde, consequências desagradáveis.

E, se fosse assim, não era a política que estava errada, mas tinha aplicação o dito de Demócrito de que aos tolos não é a palavra que instrui mas a desgraça.

Por lamentável que seja o autismo partidário, a solução nunca há-de ser menos política e menos palavra, mas melhor política e mais verdade. Por isso, abrindo um grande crédito à sabedoria do povo, quero crer que aquilo de que precisamos é de que mude a forma de fazer política.

NOVA ZONA ECONÓMICA



O cartaz convida os jovens umbigos a mostrarem-se "até no Inverno".

Não fixei sequer o que está à venda. Donde, como publicidade, pelo menos em mim, a mensagem directa não passou.

Em vez disso, a ideia dum teste permanente (Baudrillard), em que a resposta antecipa a questão.

O umbigo está na moda. Não olhar para o nosso, o que é sinal de abulia e ensimesmamento, mas para o design no umbigo do outro.

E a publicidade, numa colagem alucinada a esse social sob a influência da moda, consagra-o como uma nova zona económica.

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

6 graus de temperatura, esta manhã, no Porto!

Nevoeiro e chuviscos. Apetece correr, para os pés não formarem um bloco hostil com o solo.

"(...)E as bruscas palavras que a meus lábios vêm,
Soam-me a um outro e anómalo sentido."

Fernando Pessoa


Que magnífico exemplo, não da língua que falamos, mas da língua que nos fala, como se nós é que fôssemos o órgão!

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

No Senhor do Padrão, em Matosinhos, as figuras não são mais do que pedra insinuante.

O sal e o tempo corromperam as imagens. O mar é iconoclasta.

Mas já, adiante, cinco mulheres de bronze com gestos dramáticos seguem os caprichos dos deuses.

Stendhal, em "Memórias de um turista", diz que um seu compatriota de Nantes, que não foi capaz de dar uma réplica a um seu remoque, o iria, como bom Francês, odiar toda a vida.

Creio-o bem, se a vaidade do espírito for o péché mignon desta nação.

ARTES DO DIABO


Thomas Bernhard (1931/1989)


"Efectivamente a fotografia é a arte diabólica do nosso tempo, disse eu para comigo, ela faz-nos ver anos inteiros e dezenas de anos e toda a vida rostos trocistas, quando houve apenas uma única vez esses rostos trocistas, apenas durante um único momento numa fotografia, que fizemos de forma absolutamente irreflectida, cedendo a uma ideia súbita."

"Extinção" de Thomas Bernhard


Devo confessar-me desapontado com o único romance de Thomas Bernhard que li até agora: "Extinção".

As primeiras cem páginas são uma série de flash-backs a propósito de algumas fotografias, arte que o narrador abomina por ser uma espécie de assassínio da realidade, apesar de precisar tanto dela para o comentário infinito.

Não é só a monotonia dos agravos familiares e da obsessão de Wolfsegg, o palácio dinástico, na Áustria mal-amada.

Como é que se pode escrever quinhentas páginas de "déjà vu"?

(Depois de acabar de ler, o "déjà vu" parece-me uma muita longa preparação das páginas relativas ao funeral dos pais, que são originalíssimas; TB, que se considera um artista do exagero, não chega a compensar o ódio do narrador de "Extinção" à sua mãe pelo louvor de Spadolini, o arcebispo amante, deixando-nos assim a sugestão de que mais do que uma pessoa o objecto desse ódio é um país e até certo ponto uma língua.)

domingo, 20 de novembro de 2005

O DUQUE E MRS. SIMPSON

Vi ontem na "Prime" um excelente documentário sobre a paixão do príncipe herdeiro (o futuro Edward VIII) por uma americana, que abalou o trono duma forma que não se teria visto desde 1688.

Pela morte do pai, o príncipe sucedeu-lhe, mas para abdicar em 1936, a favor do irmão mais novo, George VI, pai da actual rainha, que foi um rei relutante, sofrido, com uma insegurança patológica, em parte devida a uma gaguez ridícula e paralisante.

É preciso ter visto o jovem rosto de Isabel, na cerimónia da coroação, para perceber que o poder, mesmo simbólico, é uma maldição.

sábado, 19 de novembro de 2005

FORA DE ÓRBITA



Numa conversa com um adolescente, dado a fortes afectos e desafectos, uma ideia com 2500 anos surge, intemporal, na boca indiferente que a proclama.

Platão queria banir o modo lídio da cidade. Era uma música demasiado mórbida e lasciva para a virilidade ideal.

Agora, este jovem, a propósito do incêndio dos subúrbios, em França, acusa o "hip-hop" de ter uma origem problemática e de estimular a violência...

Por falar nisso, estou quase de acordo com os que vêem uma lógica anti-integracionista no cerne dessas culturas colocadas fora de órbita pela velocidade da comunicação.

No chão da praça, as folhas da tília e do plátano: o coração e a estrela, sístole e diástole, um ritmo.

As árvores fazem-nos sinal, ainda depois de se terem despido.

Neste dia de chuva, os sentidos brilham.

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

A RUÍNA E O IMPLODIDO

O colégio luso-internacional, no Castelo do Queijo, é uma ruína na areia, quase ao lado desse outro edifício que já nasceu ruína, embora nem tenha sido estreado.

É instrutivo ver como uma construção cai, as inesperadas linhas de fractura, a desigual fragilidade do conjunto. O que cai e como cai não se pode prever, exactamente, está para além da nossa ciência.

E nem aquele palácio de vidro do parque da cidade se sabia, à partida, que era um erro e que o tempo da sua ruína seria tão acelerado e quase igual em todas as suas partes. Como se já o tivéssemos implodido.

terça-feira, 15 de novembro de 2005

Ao largo, uma lancha no azul, debaixo do céu.

Também Humphrey Bogart gostava de se sentir assim, longe dos holofotes e do olho das câmaras.

O duro, o sedutor da gabardina, que no final de "The maltese falcon" condena Mary Astor a pagar o assassínio de Miles, o seu sócio.

Boggy, o desse píncaro do cinema que é "The big sleep", em que contracena com o indolente contralto de Bacall, a última companheira.

Ali, no convés do "Santana", despe todas as máscaras e lava-se do cinema na espuma e no vento.

segunda-feira, 14 de novembro de 2005

No pedestal do monumento à Guerra Peninsular, na Boavista, a habitual orgia dos graffiti.

Só me reconcilio com a paisagem imaginando que aquela mancha branca é o dejecto dum pombo gigantesco ou do mítico pássaro de Sindbad, o Marinheiro.

domingo, 13 de novembro de 2005

Quem admira a obra de Calatrava na Gare do Oriente tem de se dividir se alguma vez tiver que arrostar com o vento gelado naquela plataforma.

Durante a sua construção todos se devem ter apercebido do problema, mas ninguém achou que era motivo para modificar o plano. Tal é o prestígio duma assinatura.

Temos, assim, neste tempo em que a arquitectura e os arquitectos gozam duma merecida atenção, uma séria de obras que negam a sua vocação (de serem habitadas e vividas).

Era como se a "Mona Lisa" só pudesse ser vista com o sacrifício dos olhos.

sábado, 12 de novembro de 2005

IMAGENS DE COMBOIO



Sabe-se como num raccord audacioso, Hitchcock, em "North by Northwest", salta do braço de Cary Grant salvando Eve Mary Saint do abismo, em Rushmore, para aquele puxão que a estende ao seu lado no beliche, e como no final mais elíptico do cinema o comboio entrando no túnel sugere outra penetração.

E não posso deixar de pensar que a celeridade do desfecho, depois das peripécias todas do filme, foi influenciada pela velocidade do comboio.

Aqui no pendular, a paisagem que desfila diante dos meus olhos não me sugere pensamentos peripatéticos.

sexta-feira, 11 de novembro de 2005

O ETERNO COMEÇO


Hannah Arendt (1928)

"Os homens não nascem para morrer, mas para começar."

Hannah Arendt

Não se pode falar da Natureza como uma pessoa e, no entanto, é o que toda a gente faz, quando diz que ela fez bem as coisas, ou que alguma razão deve ter tido para fazer tal coisa em vez de outra.

E isto é uma maneira de dizer que tudo é racional (ou racionalizável) e o que não é ou não se torna tal não pode ser pensado e é como se não existisse.

Este é o caminho da técnica, para a qual tudo na Natureza é meio (até o ambiente). Nesta concepção, a vida é poder.

Na Antiguidade, os estóicos, pelo contrário, consideravam que a vida devia ser uma preparação para a morte, o que era, de certo modo, acusar a Natureza de não ser racional, colocando o homem numa situação sem sentido e da qual devia livrar-se o melhor possível.

O que diz Hannah Arendt é que não é a morte que dá sentido às nossas vidas, mas a acção pela qual o homem é sempre um homem novo. Começar significa que o passado não nos limita e que a espécie está para além do tempo e da morte.

Se endossássemos esta ideia à Natureza, acharíamos que ela se esconde e induz os homens em erro (sem deixar de ser racional).

E é por isso que o homem nunca é igual a si mesmo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

A FEALDADE CONTRA O AMBIENTE

No CD do "Expresso", anuncia-se um jogo de computador dedicado à exaltação do graffiter (Getting up).

O herói sente-se incompreendido pelo sistema (incluindo a opinião pública) que o trata como uma ratazana social, sujando as paredes com uma baba revoltante, quando o que ele faz é talvez a arte do futuro, o grito libertário da sua personalidade oprimida.

Quem produz o jogo gostará de acreditar que o que está em causa é uma opção estética e social, porque é esta ideia que vende, atingindo um público-alvo já formatado.

Mas não. Temos de dizer que aqui só há para compreender que as regras de convivência e de respeito pelos outros não contam nada para quem desfeia os monumentos e a cidade tornando o ambiente mais porco, feio e mau.

DE OLHOS NOS FOLHOS

O cartaz de Louça foi evidentemente pensado para aquela expressão. É, pelo menos o que se vê: a consciência de ser olhado não in totum, como se olha uma fotografia, mas nos olhos, como para ver se é verdade que não mentem.

Ora, o que se sente é que Louçã está a ser olhado por Deus (o que até nem seria mau num republicano, traduzindo-se a divindade pelo Povo).

Porém, tendo em conta que, em abstracto, não há verdade nenhuma para sondar, olhamos não para o fundo dos olhos, mas para os folhos duma interioridade que se resguarda por não ter nada para mostrar.

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

FULL METAL JACKET


Stanley Kubrick


Quando vi o filme pela primeira vez pareceu-me um bom libelo contra a violência e pouco mais.

Mas o efeito de se revisitarem as coisas e os lugares é, normalmente, de se fazer um pouco mais de justiça. E, desde que se vença o preconceito, é como uma nova experiência.

O Vietname já está longe (mas ainda não o Iraque), porém, a lição a tirar é que o homem pode ser usado para um fim, como qualquer material, sem contemplação pelo que excede esse uso.

No treino dos marines vemos como a própria psicologia é uma técnica para dobrar o pensamento e obter uma coesão mortífera. Tudo se aproveita neste sacrifício do corpo e da alma. As palavras para serem torcidas e desfeitas, a religião para se tornar numa pornografia cruel. A providencial fraqueza do soldado Pyle oferece ao grupo um alvo de carne e osso para o acumulador de ódio.

O desfecho desta guerra sugere-nos que a vontade de matar não basta, como não bastam as armas. Coisas a que o doutrinamento correspondeu com visível superioridade.

Mas, apesar das aparências, a funda de David não era doutrinária.

ETIQUETAS

Já ouvi chamar de manifestantes ou de jovens revoltados aos que incendiaram os carros em França e na Bélgica. E, no "Público" de hoje, já se define este surto de violência como um Maio 68 pós-moderno.

Tudo leva a crer que os autores destes actos não tiveram, na origem, qualquer ideia de protagonizarem um movimento ou sequer um protesto.

Uma imagem apareceu no espaço mediático e logo foi formatada e reproduzida, como em copy & paste.

É da sociedade dos media e das reacções sociais que os incendiários esperam o significado dos seus actos.

Ao menos que se encontre um futuro.

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

O SPLEEN DE TRIESTE


Trieste

Podem ver-se em Trieste as placas dum itinerário Joyce. Depois de espreitar no lapidário o monumento a Winckelmann, assassinado nesta cidade, chego à catedral de S. Giusto, que se encontra no alto duma colina, rodeada de ruínas e de corvos.

Chuviscava, e descer as escadas lá do alto com o casario diante do nosso olhar, sem nos cruzarmos com viv'alma é uma sensação que sem dúvida agradava a um escritor exilado congeminando as aventuras da alma no mediterrâneo interior.

A cidade tem belos e austeros edifícios (Joyce teve aqui várias moradas, vivendo sempre atenazado por dificuldades financeiras) e há um ar de "spleen" nas suas praças e margens.

Junto à Bolsa, num café arte-nova, os raros clientes têm o ar de quem espera Godot.

domingo, 6 de novembro de 2005

LA ROSA BIANCA


"La Rosa Bianca" (2005-Marc Rothemund)

Fui ao cinema em Trieste ver "La Rosa Bianca", um filme de Marc Rothemund sobre um caso de revolta estudantil contra Hitler.

Boas intenções não fazem grandes filmes. O tom não é o justo e existe um excesso de demonstração.

Apesar da excelente intérprete de Sophie Scholl (Julia Jentsch), não é o prolixo interrogatório nem os estados de alma do polícia, com alguma cenas de histerismo que, dobradas em italiano, são ainda menos convincentes, que podem salvar o filme.

As fotografias do genérico são uma emoção mais genuína no seu silêncio e pobreza de retórica.

Afinal de contas, uma câmara que tivesse registado aquele julgamento-farsa, tal como se passou na realidade (na medida em que um documentário pode ser um retrato dela) não faria uma história nem personagens dramáticas.

sábado, 5 de novembro de 2005


Basílica de Aquileia

É preciso ir a esta basílica perdida no meio dos campos (perto de Grado, onde o céu e o mar comunicam no silêncio mais completo) e ver os mosaicos, quase tão perfeitos como os de Piazza Armerina (na Sicília).

sexta-feira, 4 de novembro de 2005

A ILUSÃO ALCANDORADA


O castelo de Duíno (Trieste)

Prevenido por João Barrento, não ia à espera de encontrar senão uma desilusão alcandorada. Por isso a entrada nesses terraços sobre um Adriático feito sonho interior, que ladeiam estátuas encadeadas pelo olhar, onde as Elegias foram concebidas, percorrer os salões em que os Thurn e Taxis acumularam riqueza e gosto, foi como se, esperando ver a miragem atrás das grades, me dessem um livre acesso miraculoso para me deixar prender à atmosfera e aos objectos que o poeta tocou.

Segui "il sentiero Rilke" até à falésia e tirei aquela fotografia com o palácio encostado ao castelo.

quinta-feira, 3 de novembro de 2005

O SACO DO DINHEIRO


A Accademia (Veneza)

Depois de rever S. Marcos (os venezianos já se preparam para as inundações, com uns passadiços amontoados à beira dos palácios), S. Moisè e S. Maria del Giglio, atravessei a ponte Dell 'Accademia e entrei na mais famosa galeria veneziana.

Isto é a felicidade da figura humana, com um desenho que seguia ainda a natureza e uma exuberância de cores que a transfigurava. O azul de Bellini responde ao amarelo de Tiepolo como uma poética a outra.

Um quadro de Tintoretto (a Madona, S. Marcos, S. Teodoro e S. Sebastião, com três camerlengos e três secretários) prende-me a atenção pelos problemas de espaço que coloca: um terço é ocupado pelos ícones religiosos e os dois restantes pelos doadores, tesoureiros da república, com os secretários atrás, carregando um deles o saco do dinheiro.

Os santos não parecem ter qualquer relação com a cena. Estão paralisados no seu simbolismo e só a virgem simula mostrar o menino. S. Sebastião contorce-se com as suas setas, num delírio masoquista, alheio a qualquer homenagem. Estão amontoados como numa água-furtada e servem apenas de cobertura à vaidade oficial.

O "vil metal" dobra o joelho e aparece a um canto, mas é ele o homenageado.

O saco dos "trinta dinheiros", na mão de Judas, costuma aparecer em cima da mesa. Aqui cresceu de tamanho e mudou de lugar, mas não de vocação.

segunda-feira, 31 de outubro de 2005

IMAGENS E TEMPERAMENTOS



Cavaco não se sente bem na sua pele, contorce-se, fica inteiriçado diante das câmaras. Responde com esforço e um sorriso postiço aos jornalistas. Refugia-se num discurso estudado e em algumas frases batidas. Mas geriu com inteligência a apresentação da sua candidatura, tentando relançar uma imagem sem os defeitos que os peritos lhe apontaram e que lhe terão custado já uma derrota eleitoral. É assim que parece ter-se convencido da utilidade da comunicação social (com um típico exagero, aliás) e da inconveniência de mostrar um excesso de confiança que poderia passar por arrogância. Cometeu um erro ao pretender cavalgar a onda de descrença nos partidos.

Soares é a sua antítese. Animal político (no bom sentido), sem problemas com o seu corpo, dado ao improviso e aos ímpetos do coração, apresentou-se no seu estilo de sempre, transformando os erros da sua candidatura em desafios à fidelidade dos seus apoiantes e em crises de esclarecimento.

Não são as ideias que separam os candidatos, nem a forma como vêem o cargo presidencial.

Os eleitores votarão numa família política e numa história dividida.

O facto de existir uma tão grande diferença de estilos e de temperamentos vai ajudar à decisão, embora não queira dizer nada e os temperamentos soaristas e cavaquistas abundem à direita e à esquerda.

Para além disso, se os portugueses acreditarem na situação de crise (e os media, para o bem e para o mal, criaram uma imagem de crise), a figura do "pai severo" fará provavelmente pender a balança para o seu lado, em desfavor da figura do mestre na arte de viver.

A perda de influência do pensamento corrobora a ideia de que política se transferiu para a virtualidade das imagens.

domingo, 30 de outubro de 2005



A Póvoa, com as suas esplanadas desertas neste dia de chuva, as mesas e as madeiras a brilhar contra a linha das gaivotas que poisam na cabeceira dum divã de areia, mais as lojas chinesas da marginal e os prédios, cada um com o seu estilo e o seu formato, numa demonstração de que também no urbanismo existe uma "mão invisível" para tornar o conjunto sofrível e o pormenor insuportável.

sábado, 29 de outubro de 2005

Na circunvalação, o vento sacode os plátanos e as folhas andam pelo ar. No chão, por entre as árvores, nos sítios onde a fila automóvel congestiona, vêem-se os habituais vestígios da impaciência e da falta de civismo (pontas de cigarros e papéis). Só depois da rotunda dos "Produtos Estrela" o relvado se mostra em todo o seu viço, como num jardim inglês.

Rodo sobre o langor do "Liebstod" wagneriano. Vem-me à ideia a polémica platónica contra o "modo lídio" na música. Esta atmosfera entorpecedora pelo menos devia ser prescrita com peso, conta e medida. Mas há alguma música cujo excesso não incapacite para a acção? Era a prevenção de Lenine contra a música, que o podia levar às lágrimas.

Mas logo a seguir, contra o horizonte marinho a anémona de rede ondula como se mergulhasse nas nuvens.

quinta-feira, 27 de outubro de 2005

Já viram como certas palavras se tornaram esconderijos (que deixam o rabo de fora ao gato), que outras querem dizer o contrário do que dizem que, enfim, estamos em plena "selva escura"?

Por exemplo, dignidade, na voz de certos grupos quer dizer, infalivelmente, dinheiro.

E já se viu tanto a palavra democracia na boca dos tubarões?

quarta-feira, 26 de outubro de 2005

" O coração ficou escondido no escuro e duro como a pedra filosofal."

Paul Celan ("Contraluz")


Os que voltaram do Inferno e que viram o seu ser destruído, numa língua que não morreu disso, estranham.

A poesia não seria possível depois de Auschwitz (Adorno).

Mas Celan diz que essa língua atravessou os acontecimentos sem gastar uma palavra.
Não devemos esquecer e, contudo, a língua já nos leva por novos e velhos caminhos, como a fénix.
"Ich bin der Welt abhanden gekommen." (vénia a "dias felizes")

terça-feira, 25 de outubro de 2005

DIREITOS POR LINHAS TORTAS

O 52 ed Lirba




« Contrariamente ao que se diz no « Sermão da Montanha”, se tens sede de justiça, terás sempre sede.”
Jules Renard (1864/1910)





Teremos então de admitir que há profissões com menos direitos do que outras e que, pela função, pelos meios de que dispõem contraem certas obrigações que importam alguma restrição àqueles direitos? Mas de que direitos estamos a falar? 

A teoria dos direitos em abstracto filia-se numa certa tradição revolucionária e significa uma espécie de reparação catártica feita aos injustiçados da História, que em princípio seriam os trabalhadores. 

Mas há trabalhadores e trabalhadores e há as profissões que são como um manto de misericórdia que não distingue o explorado do explorador. Salgado de Matos dizia há dias, com justeza, que ser banqueiro também é uma profissão (como juiz e militar).

E não podemos ficar por aí, porque na classe dos trabalhadores encontramos um mundo de diferenças, de estatuto, de segurança do emprego e de poder sobre outros trabalhadores.

De facto, não podemos desligar a questão dos direitos da posição face aos poderes (incluamos aqui os privilégios, mesmo relativos, e o poder estratégico ligado à função). É assim que a ideia de justiça pode servir aos fins de alguns grupos que apenas visam usufruir dum estatuto que em tudo os separa dos “injustiçados”. O lugar preferido do diabo é detrás da cruz. 

Por outro lado, quando se comparam os meios de luta dos trabalhadores em geral e os desses grupos que ocupam posições estratégicas, verificamos que a eficácia destes é desproporcionada ao seu número, o que nos leva a pensar que alguma espécie de equilíbrio deveria ter lugar para se restabelecer a justiça e a democracia. Se não for obtido pela auto-contenção e o sentido de obrigações particulares, deverá sê-lo através das leis. 

Porque, invocando-se a justiça, o que está aqui em causa é o exercício dum poder, e é bom de ver que a democracia não é compatível com o livre oportunismo dos grupos de força (sejam eles corporativos, empresariais ou políticos). 

Por exemplo, o diferencial de poder dos maquinistas da CP em relação aos outros trabalhadores nunca os impediu de usá-lo, sempre com sucesso garantido. No caso das forças armadas, por que não se utilizariam os tanques para um sequestro do governo? 

Entre este putsch surrealista e um putsch a sério, a diferença é que naquele se jogaria, talvez, com a almofada europeia, conjurando-se o perigo insurreccional. Em qualquer caso seria um descalabro moral e o fim de qualquer governo.

VERDE-CESÁRIO


Com o céu e o mar dum cinzento carregado, toda a luz se concentra na espuma que se abre. E aos indícios de azul em cima responde a cor de jade das ondas.

Quem só sabe apreciar o verão e a primavera não sente como um ocidental.

Aqui há “tal soturnidade, tal melancolia”...

sexta-feira, 21 de outubro de 2005

WE ARE THE PEOPLE


"As vinhas da ira" (1940-John Ford)

We are the people. A depressão não trouxe à tona apenas fezes. Na adversidade acabrunhante, uma família do Dust Bowl revela que o verdadeiro heroísmo é o dos simples mortais e que a coragem é feita de tripas como as de toda a gente.

Uma ideia social como a verdade a descobrir é atribuída ao personagem de Tom Joad que se comporta no fim como um convertido à religião da humanidade. A mensagem ingénua não tem menos força depois das amargas verdades do socialismo e do itinerário ideológico do cineasta e do romancista.

O papel da mãe é tudo menos realista, mas também é a coisa mais pura do filme. Quando surge a oportunidade de vinte dias de trabalho, o que resta da família abala para começar tudo de novo, guiados por esse pensamento sublime que é “we are the people”.

quarta-feira, 19 de outubro de 2005

Andar pela areia ainda não pisada e só penteada pelo vento é quase como caminhar sobre as águas. A sombra desliza como uma cobra de duna em duna.

Esta manhã, havia uma luz espectral sobre o Porto.

O granito do corpo tinha absorvido o sol e era agora uma gambiarra desfalecente voltada para os farrapos de céu.

segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Da mesa em que me encontro vejo no plano inclinado da vidraça uma escriturária.

A geometria variável da Casa da Música pode ler-se como um comentário moderno ao monumento da guerra peninsular.

O jardim está salpicado de folhas envolvendo a coluna com o leão poderoso sobre a águia, da qual uma asa parece ainda esvoaçar. É a energia alada vencida pela massa.

No edifício de Koolhaas, parece-me ver também o mármore cego pesar sobre a camada de ar roubada ao cubo.

sábado, 15 de outubro de 2005

Miramar é o nome duma praia de Gaia, perto de Francelos. Um passadiço feito de velhas traves da linha férrea ondula junto ao mar e os rochedos, ao lado dos arames do campo de golfe, com a capela do Senhor da Pedra a atrair todos os raios.

Aquele piso imediatamente transforma a paisagem num espectáculo. Falta-nos a massagem da areia nos pés.

A mesma sensação que uma mudança de velocidade. Um automóvel abole o espaço em mais de um sentido.

sexta-feira, 14 de outubro de 2005

À hora do almoço, numa pequena cidade limítrofe, que tem um jardim novo, sobre o triângulo da relva, não maior do que 15 m2, assanham-se dois homens e duas máquinas, pisando a verdura em todos os sentidos para aspirar algumas folhas murchas dos plátanos e endoidecendo com o ruído os incautos que, como eu, vieram procurar um minuto de sossego na esplanada.

Que belo exemplo da pressão do emprego sobre a teta camarária!

E tanto gasóleo e tanta poluição para nos tirar da vista a melancolia do Outono! Suponho que trocar o tractor pelo ancinho seria passar de cavalo para burro...

Mas quem disse que é a eficiência que se procura?

quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Há canais menores, por detrás dos palácios, onde o passado não é mais do que uma ruína sombria e por onde não se aventuram as gôndolas.

A Sereníssima aqui não esconde a sua idade, nem aquilo em que se tornou o esplendor de outrora.

Quem sobe do rio, no Porto, encontra uma rua que desperta igual melancolia. Poucos são os edifícios habitados ou que a lepra do abandono não comeu.

É a de Mouzinho da Silveira.

Passo no 500 (era o 1) e pasmo. Até quando, no coração da cidade, esta necrose que nos oprime e desalenta?

No autocarro, ao longo do rio, o som da língua alemã. Já um destes dias a voz de Ângela Merkel me tinha feito pensar em como seria fácil render-me aos encantos deste áspero gorjeio, se não fosse o século XX.

Esqueço o tempo em que a bruteza dos germanos os designava de antemão para a guarda pretoriana do imperador. Ah! Mas quando eles eram românticos sonhadores, apaixonados pelo helenismo, como Winckelmann ou Goethe!

Será possível que as ressonâncias daquela língua alguma vez se libertem das inflexões paranóicas de que toda uma geração de mortos foi possuída? E, talvez tão difícil, do cinema da guerra?

terça-feira, 11 de outubro de 2005

A NOSSA PARTE MALDITA



“O declínio do paganismo acarretou o dos jogos e dos cultos cujos custos os romanos ricos deviam obrigatoriamente cobrir; é por isso que se pôde dizer que o cristianismo tinha individualizado a propriedade, dando ao seu detentor uma disposição inteira dos seus produtos e abolindo a sua função social.”

“A noção de despesa” (Georges Bataille)

Como o autor diz a seguir, essa despesa tornou-se livre, através da esmola e das doações às igrejas e aos mosteiros ( e, hoje, às fundações ).

É assim que um grande industrial, envolvido num célebre processo judicial e acusado por uns de rapacidade na condução dos seus negócios e por outros admirado como um moderno “tycoon”, com o toque de Midas, talvez para surpresa de todos, legou ao mesmo povo de que parecia tão distante e cujas escolhas políticas desprezava os vultosos milhões duma fundação benemérita.

Não será uma boa ilustração da tese de Bataille de que existe sempre no “conjunto da matéria viva” um excesso de energia que deve ser delapidado em pura perda.

O desperdício que constantemente se assaca à nossa administração pública talvez seja um melhor exemplo.

Queimamos a nossa gordura numa suave ineficiência, em vez de erguermos novas pirâmides ou de desencadearmos tempestades no deserto.

Esta cauda da tempestade parece nem perturbar o sono paradoxal da natureza. Respira-se o vento do largo, que já só nos convida às viagens interiores.

Na areia lavada, transparece aqui e ali uma venosidade de alcatrão. O céu é cor de chumbo, abençoadamente e os aguaceiros vêm sarar as feridas do verão.

Aposto que, na estação que se aproxima, haverá menos depressões e úlceras gástricas. Só por não se amaldiçoar o tempo...

segunda-feira, 10 de outubro de 2005

À hora do almoço, num restaurante da Baixa, alguns ecrãs chatos diante do balcão. Passa sem som um programa que é suposto ter alegria. Estranho! Os actores (não são todos?) parecem ilusionistas de quem se expusessem os truques.

domingo, 9 de outubro de 2005

UM PRECURSOR TEM SEMPRE RAZÃO


O Moisés de Miguel Ângelo

“Não posso crer, a respeito do teu fidelíssimo servo Moisés, que lhe tenha sido dado por ti um dom menor do que eu gostaria e desejaria para mim próprio, se tivesse nascido no tempo em que ele nasceu e me tivesses colocado no mesmo lugar, a fim de que, mediante o ministério do meu coração e da minha língua, fossem dadas a conhecer aquelas páginas (...)”

Santo Agostinho (“Confissões”)

É lógico o raciocínio do santo. Se acreditamos na figura do precursor, cremos também na sua inspiração.

Se Moisés gaguejava, tal como Homero era cego, isso era uma marca de “servidão” para com o seu Deus, o que o ajudou, talvez, a transmitir-nos o ditado do “Génesis”.

Mas o mediador permite-nos medir com ele a existência.

Nesse sentido, não há nenhum homem que, depois de morto, não possa transformar-se em oráculo e em servidor de enigmas.