quarta-feira, 30 de novembro de 2005

A MATANÇA DOS PINHEIROS NOVOS

Ao longo da Circunvalação, sob os plátanos outonais, ao lado das carrinhas ou às costas de algum vendedor furtivo, o habitual cortejo dos pinheiros sacrificados ao deus do Christmas.

Depois dos hectares que arderam na televisão, estes outros vão arder junto de lareiras nostálgicas, carregados de electricidade e de brinquedos.

Em minha casa, há muitos anos que a minha mãe utilizava o mesmo pinheiro bonzai artificial que de cada vez tirava do armário só para, de longe, honrar a tradição.

Pôr na moda um pinheiro sem resina nem verdadeiras pinhas só depende, afinal, dum comércio "amigo do ambiente".

UM HOSPITAL

Hospital de S. João


O hospital, fora dos grandes desastres, deve ser o lugar onde se concentra maior sofrimento, dor, abandono e a pressão do humano sob a sua forma mais intolerável. E, sem dúvida, o lugar onde a dedicação e o heroísmo melhor se podem revelar.

Para muitos doentes é o fim da linha e para muitos dos que exercem ali a profissão é o fim de algumas ilusões e da graça de viver longe das situações-limite.

Suponho que existam nichos mais protegidos num mundo terrível como esse. Funções laterais ou que mergulhem numa certa esquizofrenia do meio.

Na inundação trágica das urgências surge de tudo: os que esbracejam para não se afogarem, os ansiosos, por si ou pelos próximos e sempre, do outro lado, do segurança ao médico, o movimento de defesa, nas atitudes e nas palavras.

Chegamos a admirar-nos que alguma coisa funcione e que a certos guichets mais sossegados nos acolham com simpatia.
E já não nos causa estranheza que um doente que volta ao hospital seja um perfeito estranho para os médicos, como se a informática só servisse para um controle electrónico das visitas ( que, no S. João, pode demorar quase tanto como a própria visita).

domingo, 27 de novembro de 2005

QUASE UMA PALINÓDIA

Cheguei a uma parte muito interessante em "Extinção" de Thomas Bernhardt, para que fui algo injusto no último post sobre o romance: o funeral dos pais.

A família que escondera durante anos alguns nacional-socialistas fugidos à justiça, na "casa das crianças", vai a enterrar, sem sentimentalismos, nem perdão.

A maldição de Wolfsegg estende-se a todo o país. É preciso que vítimas e algozes desapareçam para se começar algo de novo.

Noutro estilo, é acreditar na redenção pelo futuro, como o Ulrich de Musil.

IMITAÇÃO DA VIDA


Imitação da Vida (1959)


A paixão pela vida do teatro, pelos sucessos duma carreira, frente ao que não seria imitação, mas a própria vida: o amor de uma ou duas pessoas.

Pelo meio, um drama de cor de pele não assumida que faz chorar o betão armado.

A vida não é um melodrama, nem o amor é tudo na vida. Que importa?

É "Imitation of life" de Douglas Sirk.

Nesta marginal de Vila do Conde, tantas vezes percorrida por Antero, num tempo feliz entre depressões, espera-me hoje uma epifania de luz que a floresta das nuvens torna ainda mais espectacular. Não falta uma escada de trapezista deixada por um jacto.

Em baixo, a árvore da espuma é sugada, num ápice. E, logo a seguir, uma língua de mercúrio galga a boca da areia e faz-me recuar para não molhar as botas.

sábado, 26 de novembro de 2005

O SILÊNCIO NEM SEMPRE É DE OIRO


Demócrito (460/360 a.C.)

Um artigo de José António Saraiva no "Expresso" desta semana sobre o cansaço dos portugueses em relação à política e aos partidos.

Para justificar que o silêncio e o "low profile", nesta altura, compensam. Pelo contrário, os que insistem na oratória (mesmo que tenham os dotes) não levarão a carta a Garcia.

Não me parece que a política saia muito dignificada desta análise. É preciso, em primeiro lugar, saber se o alegado cansaço do povo português não é antes uma demissão de cidadania, estando ele farto de que lhe falem nos problemas do país e não ignorando que esse discurso, sobretudo se for realista, vai ter para si, mais cedo ou mais tarde, consequências desagradáveis.

E, se fosse assim, não era a política que estava errada, mas tinha aplicação o dito de Demócrito de que aos tolos não é a palavra que instrui mas a desgraça.

Por lamentável que seja o autismo partidário, a solução nunca há-de ser menos política e menos palavra, mas melhor política e mais verdade. Por isso, abrindo um grande crédito à sabedoria do povo, quero crer que aquilo de que precisamos é de que mude a forma de fazer política.

NOVA ZONA ECONÓMICA



O cartaz convida os jovens umbigos a mostrarem-se "até no Inverno".

Não fixei sequer o que está à venda. Donde, como publicidade, pelo menos em mim, a mensagem directa não passou.

Em vez disso, a ideia dum teste permanente (Baudrillard), em que a resposta antecipa a questão.

O umbigo está na moda. Não olhar para o nosso, o que é sinal de abulia e ensimesmamento, mas para o design no umbigo do outro.

E a publicidade, numa colagem alucinada a esse social sob a influência da moda, consagra-o como uma nova zona económica.

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

6 graus de temperatura, esta manhã, no Porto!

Nevoeiro e chuviscos. Apetece correr, para os pés não formarem um bloco hostil com o solo.

"(...)E as bruscas palavras que a meus lábios vêm,
Soam-me a um outro e anómalo sentido."

Fernando Pessoa


Que magnífico exemplo, não da língua que falamos, mas da língua que nos fala, como se nós é que fôssemos o órgão!

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

No Senhor do Padrão, em Matosinhos, as figuras não são mais do que pedra insinuante.

O sal e o tempo corromperam as imagens. O mar é iconoclasta.

Mas já, adiante, cinco mulheres de bronze com gestos dramáticos seguem os caprichos dos deuses.

Stendhal, em "Memórias de um turista", diz que um seu compatriota de Nantes, que não foi capaz de dar uma réplica a um seu remoque, o iria, como bom Francês, odiar toda a vida.

Creio-o bem, se a vaidade do espírito for o péché mignon desta nação.

ARTES DO DIABO


Thomas Bernhard (1931/1989)


"Efectivamente a fotografia é a arte diabólica do nosso tempo, disse eu para comigo, ela faz-nos ver anos inteiros e dezenas de anos e toda a vida rostos trocistas, quando houve apenas uma única vez esses rostos trocistas, apenas durante um único momento numa fotografia, que fizemos de forma absolutamente irreflectida, cedendo a uma ideia súbita."

"Extinção" de Thomas Bernhard


Devo confessar-me desapontado com o único romance de Thomas Bernhard que li até agora: "Extinção".

As primeiras cem páginas são uma série de flash-backs a propósito de algumas fotografias, arte que o narrador abomina por ser uma espécie de assassínio da realidade, apesar de precisar tanto dela para o comentário infinito.

Não é só a monotonia dos agravos familiares e da obsessão de Wolfsegg, o palácio dinástico, na Áustria mal-amada.

Como é que se pode escrever quinhentas páginas de "déjà vu"?

(Depois de acabar de ler, o "déjà vu" parece-me uma muita longa preparação das páginas relativas ao funeral dos pais, que são originalíssimas; TB, que se considera um artista do exagero, não chega a compensar o ódio do narrador de "Extinção" à sua mãe pelo louvor de Spadolini, o arcebispo amante, deixando-nos assim a sugestão de que mais do que uma pessoa o objecto desse ódio é um país e até certo ponto uma língua.)

domingo, 20 de novembro de 2005

O DUQUE E MRS. SIMPSON

Vi ontem na "Prime" um excelente documentário sobre a paixão do príncipe herdeiro (o futuro Edward VIII) por uma americana, que abalou o trono duma forma que não se teria visto desde 1688.

Pela morte do pai, o príncipe sucedeu-lhe, mas para abdicar em 1936, a favor do irmão mais novo, George VI, pai da actual rainha, que foi um rei relutante, sofrido, com uma insegurança patológica, em parte devida a uma gaguez ridícula e paralisante.

É preciso ter visto o jovem rosto de Isabel, na cerimónia da coroação, para perceber que o poder, mesmo simbólico, é uma maldição.

sábado, 19 de novembro de 2005

FORA DE ÓRBITA



Numa conversa com um adolescente, dado a fortes afectos e desafectos, uma ideia com 2500 anos surge, intemporal, na boca indiferente que a proclama.

Platão queria banir o modo lídio da cidade. Era uma música demasiado mórbida e lasciva para a virilidade ideal.

Agora, este jovem, a propósito do incêndio dos subúrbios, em França, acusa o "hip-hop" de ter uma origem problemática e de estimular a violência...

Por falar nisso, estou quase de acordo com os que vêem uma lógica anti-integracionista no cerne dessas culturas colocadas fora de órbita pela velocidade da comunicação.

No chão da praça, as folhas da tília e do plátano: o coração e a estrela, sístole e diástole, um ritmo.

As árvores fazem-nos sinal, ainda depois de se terem despido.

Neste dia de chuva, os sentidos brilham.

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

A RUÍNA E O IMPLODIDO

O colégio luso-internacional, no Castelo do Queijo, é uma ruína na areia, quase ao lado desse outro edifício que já nasceu ruína, embora nem tenha sido estreado.

É instrutivo ver como uma construção cai, as inesperadas linhas de fractura, a desigual fragilidade do conjunto. O que cai e como cai não se pode prever, exactamente, está para além da nossa ciência.

E nem aquele palácio de vidro do parque da cidade se sabia, à partida, que era um erro e que o tempo da sua ruína seria tão acelerado e quase igual em todas as suas partes. Como se já o tivéssemos implodido.

terça-feira, 15 de novembro de 2005

Ao largo, uma lancha no azul, debaixo do céu.

Também Humphrey Bogart gostava de se sentir assim, longe dos holofotes e do olho das câmaras.

O duro, o sedutor da gabardina, que no final de "The maltese falcon" condena Mary Astor a pagar o assassínio de Miles, o seu sócio.

Boggy, o desse píncaro do cinema que é "The big sleep", em que contracena com o indolente contralto de Bacall, a última companheira.

Ali, no convés do "Santana", despe todas as máscaras e lava-se do cinema na espuma e no vento.

segunda-feira, 14 de novembro de 2005

No pedestal do monumento à Guerra Peninsular, na Boavista, a habitual orgia dos graffiti.

Só me reconcilio com a paisagem imaginando que aquela mancha branca é o dejecto dum pombo gigantesco ou do mítico pássaro de Sindbad, o Marinheiro.

domingo, 13 de novembro de 2005

Quem admira a obra de Calatrava na Gare do Oriente tem de se dividir se alguma vez tiver que arrostar com o vento gelado naquela plataforma.

Durante a sua construção todos se devem ter apercebido do problema, mas ninguém achou que era motivo para modificar o plano. Tal é o prestígio duma assinatura.

Temos, assim, neste tempo em que a arquitectura e os arquitectos gozam duma merecida atenção, uma séria de obras que negam a sua vocação (de serem habitadas e vividas).

Era como se a "Mona Lisa" só pudesse ser vista com o sacrifício dos olhos.

sábado, 12 de novembro de 2005

IMAGENS DE COMBOIO



Sabe-se como num raccord audacioso, Hitchcock, em "North by Northwest", salta do braço de Cary Grant salvando Eve Mary Saint do abismo, em Rushmore, para aquele puxão que a estende ao seu lado no beliche, e como no final mais elíptico do cinema o comboio entrando no túnel sugere outra penetração.

E não posso deixar de pensar que a celeridade do desfecho, depois das peripécias todas do filme, foi influenciada pela velocidade do comboio.

Aqui no pendular, a paisagem que desfila diante dos meus olhos não me sugere pensamentos peripatéticos.

sexta-feira, 11 de novembro de 2005

O ETERNO COMEÇO


Hannah Arendt (1928)

"Os homens não nascem para morrer, mas para começar."

Hannah Arendt

Não se pode falar da Natureza como uma pessoa e, no entanto, é o que toda a gente faz, quando diz que ela fez bem as coisas, ou que alguma razão deve ter tido para fazer tal coisa em vez de outra.

E isto é uma maneira de dizer que tudo é racional (ou racionalizável) e o que não é ou não se torna tal não pode ser pensado e é como se não existisse.

Este é o caminho da técnica, para a qual tudo na Natureza é meio (até o ambiente). Nesta concepção, a vida é poder.

Na Antiguidade, os estóicos, pelo contrário, consideravam que a vida devia ser uma preparação para a morte, o que era, de certo modo, acusar a Natureza de não ser racional, colocando o homem numa situação sem sentido e da qual devia livrar-se o melhor possível.

O que diz Hannah Arendt é que não é a morte que dá sentido às nossas vidas, mas a acção pela qual o homem é sempre um homem novo. Começar significa que o passado não nos limita e que a espécie está para além do tempo e da morte.

Se endossássemos esta ideia à Natureza, acharíamos que ela se esconde e induz os homens em erro (sem deixar de ser racional).

E é por isso que o homem nunca é igual a si mesmo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

A FEALDADE CONTRA O AMBIENTE

No CD do "Expresso", anuncia-se um jogo de computador dedicado à exaltação do graffiter (Getting up).

O herói sente-se incompreendido pelo sistema (incluindo a opinião pública) que o trata como uma ratazana social, sujando as paredes com uma baba revoltante, quando o que ele faz é talvez a arte do futuro, o grito libertário da sua personalidade oprimida.

Quem produz o jogo gostará de acreditar que o que está em causa é uma opção estética e social, porque é esta ideia que vende, atingindo um público-alvo já formatado.

Mas não. Temos de dizer que aqui só há para compreender que as regras de convivência e de respeito pelos outros não contam nada para quem desfeia os monumentos e a cidade tornando o ambiente mais porco, feio e mau.

DE OLHOS NOS FOLHOS

O cartaz de Louça foi evidentemente pensado para aquela expressão. É, pelo menos o que se vê: a consciência de ser olhado não in totum, como se olha uma fotografia, mas nos olhos, como para ver se é verdade que não mentem.

Ora, o que se sente é que Louçã está a ser olhado por Deus (o que até nem seria mau num republicano, traduzindo-se a divindade pelo Povo).

Porém, tendo em conta que, em abstracto, não há verdade nenhuma para sondar, olhamos não para o fundo dos olhos, mas para os folhos duma interioridade que se resguarda por não ter nada para mostrar.

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

FULL METAL JACKET


Stanley Kubrick


Quando vi o filme pela primeira vez pareceu-me um bom libelo contra a violência e pouco mais.

Mas o efeito de se revisitarem as coisas e os lugares é, normalmente, de se fazer um pouco mais de justiça. E, desde que se vença o preconceito, é como uma nova experiência.

O Vietname já está longe (mas ainda não o Iraque), porém, a lição a tirar é que o homem pode ser usado para um fim, como qualquer material, sem contemplação pelo que excede esse uso.

No treino dos marines vemos como a própria psicologia é uma técnica para dobrar o pensamento e obter uma coesão mortífera. Tudo se aproveita neste sacrifício do corpo e da alma. As palavras para serem torcidas e desfeitas, a religião para se tornar numa pornografia cruel. A providencial fraqueza do soldado Pyle oferece ao grupo um alvo de carne e osso para o acumulador de ódio.

O desfecho desta guerra sugere-nos que a vontade de matar não basta, como não bastam as armas. Coisas a que o doutrinamento correspondeu com visível superioridade.

Mas, apesar das aparências, a funda de David não era doutrinária.

ETIQUETAS

Já ouvi chamar de manifestantes ou de jovens revoltados aos que incendiaram os carros em França e na Bélgica. E, no "Público" de hoje, já se define este surto de violência como um Maio 68 pós-moderno.

Tudo leva a crer que os autores destes actos não tiveram, na origem, qualquer ideia de protagonizarem um movimento ou sequer um protesto.

Uma imagem apareceu no espaço mediático e logo foi formatada e reproduzida, como em copy & paste.

É da sociedade dos media e das reacções sociais que os incendiários esperam o significado dos seus actos.

Ao menos que se encontre um futuro.

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

O SPLEEN DE TRIESTE


Trieste

Podem ver-se em Trieste as placas dum itinerário Joyce. Depois de espreitar no lapidário o monumento a Winckelmann, assassinado nesta cidade, chego à catedral de S. Giusto, que se encontra no alto duma colina, rodeada de ruínas e de corvos.

Chuviscava, e descer as escadas lá do alto com o casario diante do nosso olhar, sem nos cruzarmos com viv'alma é uma sensação que sem dúvida agradava a um escritor exilado congeminando as aventuras da alma no mediterrâneo interior.

A cidade tem belos e austeros edifícios (Joyce teve aqui várias moradas, vivendo sempre atenazado por dificuldades financeiras) e há um ar de "spleen" nas suas praças e margens.

Junto à Bolsa, num café arte-nova, os raros clientes têm o ar de quem espera Godot.

domingo, 6 de novembro de 2005

LA ROSA BIANCA


"La Rosa Bianca" (2005-Marc Rothemund)

Fui ao cinema em Trieste ver "La Rosa Bianca", um filme de Marc Rothemund sobre um caso de revolta estudantil contra Hitler.

Boas intenções não fazem grandes filmes. O tom não é o justo e existe um excesso de demonstração.

Apesar da excelente intérprete de Sophie Scholl (Julia Jentsch), não é o prolixo interrogatório nem os estados de alma do polícia, com alguma cenas de histerismo que, dobradas em italiano, são ainda menos convincentes, que podem salvar o filme.

As fotografias do genérico são uma emoção mais genuína no seu silêncio e pobreza de retórica.

Afinal de contas, uma câmara que tivesse registado aquele julgamento-farsa, tal como se passou na realidade (na medida em que um documentário pode ser um retrato dela) não faria uma história nem personagens dramáticas.

sábado, 5 de novembro de 2005


Basílica de Aquileia

É preciso ir a esta basílica perdida no meio dos campos (perto de Grado, onde o céu e o mar comunicam no silêncio mais completo) e ver os mosaicos, quase tão perfeitos como os de Piazza Armerina (na Sicília).

sexta-feira, 4 de novembro de 2005

A ILUSÃO ALCANDORADA


O castelo de Duíno (Trieste)

Prevenido por João Barrento, não ia à espera de encontrar senão uma desilusão alcandorada. Por isso a entrada nesses terraços sobre um Adriático feito sonho interior, que ladeiam estátuas encadeadas pelo olhar, onde as Elegias foram concebidas, percorrer os salões em que os Thurn e Taxis acumularam riqueza e gosto, foi como se, esperando ver a miragem atrás das grades, me dessem um livre acesso miraculoso para me deixar prender à atmosfera e aos objectos que o poeta tocou.

Segui "il sentiero Rilke" até à falésia e tirei aquela fotografia com o palácio encostado ao castelo.

quinta-feira, 3 de novembro de 2005

O SACO DO DINHEIRO


A Accademia (Veneza)

Depois de rever S. Marcos (os venezianos já se preparam para as inundações, com uns passadiços amontoados à beira dos palácios), S. Moisè e S. Maria del Giglio, atravessei a ponte Dell 'Accademia e entrei na mais famosa galeria veneziana.

Isto é a felicidade da figura humana, com um desenho que seguia ainda a natureza e uma exuberância de cores que a transfigurava. O azul de Bellini responde ao amarelo de Tiepolo como uma poética a outra.

Um quadro de Tintoretto (a Madona, S. Marcos, S. Teodoro e S. Sebastião, com três camerlengos e três secretários) prende-me a atenção pelos problemas de espaço que coloca: um terço é ocupado pelos ícones religiosos e os dois restantes pelos doadores, tesoureiros da república, com os secretários atrás, carregando um deles o saco do dinheiro.

Os santos não parecem ter qualquer relação com a cena. Estão paralisados no seu simbolismo e só a virgem simula mostrar o menino. S. Sebastião contorce-se com as suas setas, num delírio masoquista, alheio a qualquer homenagem. Estão amontoados como numa água-furtada e servem apenas de cobertura à vaidade oficial.

O "vil metal" dobra o joelho e aparece a um canto, mas é ele o homenageado.

O saco dos "trinta dinheiros", na mão de Judas, costuma aparecer em cima da mesa. Aqui cresceu de tamanho e mudou de lugar, mas não de vocação.