quarta-feira, 30 de setembro de 2009


(José Ames)

A LEVEZA


http://marcsimonetti.deviantart.com/art/Les-ailes-de-la-nuit

"Mas quando, impotente para seguir os deuses, a alma não viu as essências, e por infelicidade, empanturrada de esquecimento e de vício, ela se torna pesada, depois perde as asas e cai por terra, uma lei proíbe-a de animar na primeira geração o corpo de um animal…"

"Phèdre" (Platão)


A classificação do "Fedro" nada nos diz sobre a opinião ou os gostos dos Atenienses, mas permite-nos ter a escala platónica da qualidade das almas.

O tirano está no último círculo, como o último dos escravos. O sofista, o falso filósofo, emparelha com o demagogo, que é um falso político. Como imitadores da verdade, mal se distinguem nas profundas os poetas e os artistas. Um pouco acima, os inspirados pelo delírio divino que produzem toda a espécie de oráculos. A meio da escala, os que procuram manter a boa forma do corpo (ginastas e médicos) e, sobre estes, os estrategas, os que sabem comandar, com o rei justo no segundo nível. Acima de todos os outros, o filósofo, mas não o velho inane e retirado do mundo, ou o observador equânime, porque é "um homem apaixonado pela sabedoria, a beleza, as musas e o amor." Ora, isto parece um pouco incompreensível em quem tanto maltrata os poetas, as musas e as paixões. Mas é preciso ver aqui o iluminado que regressa ao mundo dos homens e para quem tudo foi transfigurado pelo que viu fora da caverna.

Há, pois, para Platão, uma outra vida apaixonada, uma outra beleza e um outro amor que são os daqueles que não esqueceram o que viram e conservam as asas, a leveza.

terça-feira, 29 de setembro de 2009


Porto (José Ames)

A SOCIEDADE CIVIL AMERICANA



"Não penso que precisemos realmente de ser tão exóticos. É simples. Somos um catalisador, o centro da roda. O nosso trabalho é dizer o que está a acontecer e que podia ser melhor. Não é preciso reinventar a roda. (…) Estamos a fazer exactamente o que devíamos fazer. Portanto, eu digo: se não está partido, não conserteis. Vocês são profissionais, nós ajudaremos no que pudermos. Podia-se dizer que somos um grupo de apoio aos profissionais."

"Avoiding politics" (Nina Eliasoph)


Este é um excerto da intervenção de um funcionário municipal numa reunião do grupo de voluntários "Just Say No". A socióloga apresenta este discurso como um dos muitos exemplos da preocupação do cidadão médio de evitar a discussão pública (em privado, é outra coisa e quase toda a gente tem opiniões políticas). A motivação duma atitude dessas não é o tão glosado anti-intelectualismo dos americanos (Hofstadter), mas o igualitarismo político e, mais recentemente, o "politicamente correcto". Como nas reuniões os que falam de certo modo governam os outros, a discussão, que poria em evidência os diferentes dotes de eloquência, é evitada a todo o custo. Além disso, há aí um sentido prático muito característico deste povo. Desde que se suspeite que determinadas questões são insolúveis ou não se encontram dentro do raio de acção do grupo, não se fala nelas para não desmoralizar os outros e para manter uma aparência de eficácia, para os membros se sentirem úteis à comunidade, mesmo se o que fazem não tenha às vezes muito sentido ou seja um simples meio de iludir o investimento público necessário ou a adopção de medidas gerais mais acertadas.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009


(José Ames)

INGLORIOUS BASTERDS




Com Tarantino chega-nos uma versão da história da segunda guerra mundial, tal como poderia ter sido sonhada por um judeu adepto da lei de Talião. Durante as duas horas e meia do filme ficamos pregados à cadeira, nem era preciso dizê-lo. Há, certamente, uma técnica da gestão do espectáculo da violência que redistribui a excitação sem tempos mortos. E acontece que no cinema isso se tornou uma arte com mestres como o autor de "Psico".

Fazer um churrasco da elite nazi, no momento em que o Führer se baba com as atrocidades do soldado-modelo e o reconhecimento do chefe leva Goebbels até às lágrimas, tudo isto quase sem baixas para o lado dos "good guys", parece um daqueles monstros oníricos engendrados pela impotência.

São as implicações morais (mas não moralistas) desta história que nos deixam um travo amargo na boca, depois de olharmos, retrospectivamente, para o gozo de um ajuste de contas imaginário com a História.

Mas é isto tão diferente do que fez Lubitsch com o seu maravilhoso "To be or not to be", ou Chaplin em "The great dictator"?

Há qualquer coisa que faz o filme ficar muito abaixo daqueles dois exemplos. É que com Lubitsch e Chaplin, os que combatem os nazis, em "To be or not to be" precisam, para além de uma sorte incrível, de inteligência e talento, e, no filme de Chaplin, de um milagre da bondade, mas em Tarantino esses combatentes tornam-se objecto do mesmo horror que despertam os figurões do outro lado.


domingo, 27 de setembro de 2009


Porto (José Ames)

LEVANTAR O VÉU



O Arauto (http://konstriktor.net/blog)


"Se fordes santo e vos faltar pregoeiro, poucos hão-de saber quando é o vosso dia."

(Dom Francisco Manuel de Melo)


Será isto o mesmo que a comezinha ideia de que a verdade nem sempre é evidente e que será muitas vezes necessário um mediador, alguém que levante o véu para a podermos reconhecer?

Ou é o que há de material na propagação que faz falta?

Parece haver, na ideia da verdade, um apelo a uma consciência universal que é feita de "neurónios e sinapses" à espera que a corrente passe.

sábado, 26 de setembro de 2009


(José Ames)

O INCONVENIENTE DA ESCRITA



"É que a escrita, Fedro, tem um grave inconveniente, tal como a pintura. Os produtos da pintura é como se estivessem vivos; mas põe-lhes uma questão, eles guardam gravemente o silêncio. É o mesmo para os discursos escritos. (…) Se ele (o discurso) se vê desprezado ou injustamente injuriado, tem sempre necessidade do socorro do seu pai; porque não é capaz de repelir um ataque nem de se defender a si mesmo."

"Phèdre" (Platão)


Para Sócrates, no diálogo em questão, o discurso escrito não é mais do que uma marca para lembrar aquele que já as conhece as coisas tratadas no livro. Já não seria assim se o discurso fosse escrito "com a ciência na alma", discurso que é capaz de se defender a si próprio, que sabe falar e calar-se segundo as pessoas." Isto é, só se o escrito fosse a "imagem" dessa ciência poderia escapar àquele grave inconveniente.

A verdade seria, assim, tão evidente que dispensaria o autor, autor que, propriamente, não existe. A ideia está já naquele que a reconhece no discurso escrito.

Fora desta "ciência", o livro é como que órfão desde que o autor não esteja ali para lembrar o que queria dizer, que seria qualquer coisa de "pessoal" e, por isso, não muito importante. A escrita torna-se texto (prazer do texto, diria Barthes), livre para qualquer interpretação e para qualquer uso.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009


Setúbal (José Ames)

CORRUPÇÃO


http://dadarabe.blaogy.com/


"Eis por que inventámos o Tempo que nos representa o destino comum de tudo o que não somos."

"La méthode de Léonard de Vinci" (Paul Valéry)


Se não fossem as testemunhas, dar-nos-íamos conta sequer do tempo?

De qualquer modo, não nos poderíamos manter idênticos a nós mesmos. Porque a nossa "clarividência imperturbável", "sabe, na sua fixidez, estar submetida a um misterioso impulso e a uma modificação sem testemunha; e sabe portanto que envolve sempre, mesmo no estado mais puro da sua lucidez, uma secreta possibilidade de fracasso e de total ruína – como acontece ao sonho mais preciso conter um germe inexplicável de não-realidade." (ibidem)


quinta-feira, 24 de setembro de 2009


(José Ames)

A MÚSICA DO TERROR



"Eu vi que as massas podem ser postas em fuga sem cair no pânico, que é preciso distinguir cuidadosamente entre a fuga das massas e esse pânico. Enquanto não se dissociarem em indivíduos isolados que já só estão preocupados consigo, com a sua própria pessoa, as massa continuam a existir, sempre em fuga e, quando páram, podem retomar os seus ataques."

"Le Flambeau dans l'oreille" (Elias Canetti)


Canetti descreve os motins de 15 de Julho de 1927, em Viena. Alguns operários tinham sido abatidos no Burgenland e o tribunal ilibara os assassinos. Seguiram-se cortejos cerrados e protestos e o Palácio da Justiça foi entregue às chamas.

Durante os acontecimentos, Canetti foi testemunha duma coerência extraordinária do movimento. Longe de "desmobilizar" a revolta, o espectáculo dos que tombavam alimentava uma cólera surda.

"Mesmo quando alguém ficava isolado em qualquer parte, sentia-se puxado, arrancado, e isso porque se sentia uma espécie de ritmo no ar, uma música aterradora. Pode-se falar com efeito em música, a pessoa sentia-se levada. Eu não tinha o sentimento de caminhar com as minhas próprias pernas. Era-se como que levantado por um vento sonoro." (ibidem)

Este novo ser que nasce da súbita coesão dos indivíduos na massa tem muito de instinto e é suficientemente caótico e imprevisível para atemorizar qualquer um, à excepção, talvez, de alguns "aprendizes de feiticeiro" que julgam poder levar a corrente no sentido dos seus próprios fins.

Esta força misteriosa ocupou o pensamento de Canetti durante anos a fio e é o tema de "Mass und Macht"(1960). O título é elucidativo, porque o fenómeno das massas não é de natureza política e a força que nele se verifica nada tem a ver com o poder. Parece-se mais com um cataclismo natural e, como diz, este autor, não precisa de um Führer para se formar. Hitler foi, sem dúvida, um maestro desta "música aterradora", mas teve sempre o cuidado para atingir apenas o entusiasmo comicieiro e nunca pôr as massas em movimento. O sortilégio podia permanecer atenuado nos espíritos depois do "rally" e era o suficiente. O ditador não era tão louco que quisesse que o controle da multidão lhe escapasse das mãos.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009


Dublin (José Ames)

FUNDAÇÕES


A Loba de Roma e Rómulo e Remo


"A palavra auctoritas deriva do verbo augere, 'aumentar' e aquilo que a autoridade ou aqueles que comandam aumentam constantemente: é a fundação. Os homens dotados de autoridade eram os antigos. O Senado ou os patres, que a tinham obtido por herança e transmissão daqueles que tinham posto as fundações de todas as coisas para vir, os antepassados, que os Romanos chamavam por esta razão maiores. A autoridade dos vivos era sempre derivada, dependente dos auctores imperii Romani conditoresque, segundo a fórmula de Plínio, da autoridade dos fundadores, que já não estavam entre os vivos."

"La crise de la culture" (Hannah Arendt)


Também o representante da Igreja devia benzer a primeira pedra do edifício a construir e, noutros contextos, o sacrifício dum animal ou da sombra duma pessoa eram considerados propiciatórios. A origem não pode ser obra do acaso e acreditava-se que a "pedra de canto" continha tudo o que permitia a durabilidade e a resistência da construção.

A paixão dos Gregos pela discussão pública oferece-nos o espírito contrário a este sentido de fundação dos Romanos. Um eco mais recente dessa autoridade do passado é o programa do nosso último ditador de não discutir nem a pátria, nem a autoridade, nem a família, nem o trabalho.

Como verdadeiros rústicos, os primeiros Romanos iam buscar as suas ideias à terra. Na fundação há muito do lançar da semente, semente que, como se sabe, estava ligada ao culto de Prosérpina e de Deméter. O tempo que a primeira devia passar debaixo da terra faz pensar não só no processo de germinação, mas também na alquimia da origem que guarda o sagrado no seu mistério. E até o império pode caber na metáfora agrícola. Anexar as terras adjacentes é o sonho do camponês que prospera.

Mas, entretanto, Roma adquiriu todos os vícios da administração.

terça-feira, 22 de setembro de 2009


(José Ames)

O PROBLEMA DA ACÇÃO


http://www-abra.blogspot.com/


"Os Antigos não sabiam disso o suficiente para não serem livres nas suas atitudes mentais."

"Introduction à la méthode de Léonard de Vinci" (Paul Valéry)


A ideia implícita é a de que a compreensão, para além de um certo ponto, é inibidora. É o sentido da frase de Hegel sobre o voo da coruja (o pássaro de Minerva), na hora do crepúsculo.

Quanto maior consciência dos mecanismos que engendram uma determinada situação, melhor sentimos a justificação de tudo e a sua necessidade, ao ponto de nos parecer supérflua a própria acção ou então impondo-se apenas pela lógica.

Não é nessa altura que o homem se sente livre, como se fosse ele o motor do seu próprio movimento. A ilusão e a juventude é que são propícias a esse sentimento.

Mas iludidos, duma forma ou de outra, estaremos sempre e por isso é que a acção é possível.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009


Villandry (José Ames)

A NEUTRALIDADE DE PILATOS


"Ecce Homo!"

"É estranho que tanta gente acredite que não há resposta para a pergunta de Pilatos "Que é a verdade?" Afinal, em milhares de tribunais de justiça, milhares de testemunhas são advertidas para dizerem a verdade. E a maior parte delas parece saber muito bem o que delas se espera."

"O mito do contexto" (Karl Popper)


A verdade pode ser definida como uma "afirmação que corresponde aos factos", mas desta definição não se pode deduzir um "critério geral de verdade", como demonstrou Alfred Tarski.

A vontade de se manter de fora dos assuntos dos judeus levou Pilatos a invocar a verdade neste último sentido, como bom entendedor nas artes do pretório que era.

A importância de se saber se determinada afirmação corresponde aos factos deve ter sido reconhecida desde o primeiro esboço de um tribunal, quando foi preciso atribuir responsabilidades aos intervenientes de um processo.

Fora deste modelo jurídico, ficamos um pouco desnorteados porque, rigorosamente, devíamos levar em conta para determinar a verdade muito mais do que os factos "objectivos".

É por interesse político e económico que se confinam os factos ao que é objectivo para todos. Mas é bem visível que a psicologia e a sociologia têm vindo de forma crescente a influenciar a justiça.

domingo, 20 de setembro de 2009


(José Ames)

A POLÍTICA DOS ESTÚDIOS


Jon Stewart

O público não se enganou ao fazer das entrevistas do “Gato Fedorento” aos candidatos um dos programas mais vistos de sempre. Suponho que esse interesse se tenha estendido mesmo àqueles que de há muito mantinham os aparelhos desligados.

O que há de novo aqui é a completa rendição da política à televisão e ao que ela representa. A extraordinária docilidade que todos os candidatos demonstraram, mesmo se nalguns foi visível algum esforço para se adaptarem a uma persona que só existe no campo mediático, é o termo duma evolução imparável. Porque o contacto directo com os eleitores é um mito que só tem expressão se for ele próprio traduzido na linguagem da televisão.

Não tem qualquer relevância para esta evolução a qualidade do humor ou a inteligência que possam caracterizar o programa. O importante é que os políticos possam ser observados fora do contexto habitual, sem as suas defesas retóricas e a sua manha profissional. Que eles consintam em expor-se assim a um público voyeur, formado pelos reality shows, é, ao mesmo tempo, um sintoma do império da “opinião pública”, formatada pela mediatização global, e um efeito da competição eleitoral. Obama condescende com o programa dum entertainer, quem ousaria ser tão pretensioso para se eximir a essa prova de se despir (simbolicamente) diante das câmaras? Tal como a inspecção militar que não é apenas um acto sanitário, este é também um exercício de humilhação que seria de mais, contudo, qualificar de democrático.

Com isto, a política deixou de ser grande ou pequena para assumir o que já vem sendo desde que a televisão assentou arraiais: uma produção dos estúdios (que já não se confinam aos de qualquer televisão em particular, mas estão em toda a parte em que a política se dá a ver).

sábado, 19 de setembro de 2009


Granja (José Ames)

FEDRO



"A visão é, com efeito, o mais subtil dos órgãos do corpo; no entanto, ela não vê a sabedoria. Porque esta suscitaria amores inacreditáveis se apresentasse aos nossos olhos uma imagem tão clara quanto a da beleza, e o mesmo se passaria com todas as essências dignas do nosso amor. Só a Beleza goza do privilégio de ser a mais visível e a mais encantadora."

"Fedro" (Platão)


Platão não fala aqui nem do bem, nem da verdade, mas da beleza das ideias, a qual não se oferece à visão. O filósofo socorre-se de um órgão do corpo para descrever uma experiência que tem tudo de amorosa.

Não nos diz que a razão é o órgão para identificarmos o justo e o verdadeiro, como se o corpo não existisse. Serve-se de um modelo natural, que é o da contemplação do que é belo e desejável.

Podemos então imaginar o que seria a experiência de uma ideia clara e perceptível, que envolvesse não só o nosso espírito mas o nosso corpo inteiro?

Esse seria o verdadeiro modelo da justiça, outro nome do amor com o significado que o Cristianismo mais tarde lhe deu.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009


(José Ames)

A CULTURA DOS ROMANOS


http://antoniomartnortiz.blogspot.com


"Os Gregos não sabiam o que era a cultura porque eles não cultivavam a natureza, mas antes arrancavam às entranhas da terra os frutos que os deuses tinham escondido aos homens (Hesíodo); e, estreitamente ligado a isso, o grande respeito romano pelo testemunho do passado enquanto tal, ao qual devemos não somente a conservação da herança grega mas a própria continuidade da nossa tradição, era-lhes completamente estranha."

"La crise de la culture" (Hannah Arendt)


Napoleão, movido por esse respeito do passado e por ali encontrar o primeiro modelo da sua própria glória, fez desenterrar o antigo fórum e libertar as venerandas ruínas dos aluviões do Tibre. É um pouco o que temos de fazer por causa de um outro tipo de aluvião: o da interpretação histórica e o das ideologias.

Uma das razões por que não se faz hoje justiça a Roma é ter existido o seu império e os valores actuais nos impedirem de contextualizar realidades tão cruentas como a guerra de conquista e a escravatura que esse povo levou a extremos.

Em relação ao nosso passado e à nossa tradição, estamos hoje, talvez, mais próximos da atitude grega ("colectora", se pensarmos na opinião de Arendt) do que da dos Romanos. Utilizamos o passado para os mais variados fins (conhecimento, justificação do poder), mas não o respeitamos.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009


Aveiro (José Ames)

O SULCO BRILHANTE



"A inteira operação deste grande Vinci é unicamente deduzida do seu grande objecto, como se uma pessoa particular não lhe estivesse ligada, o seu pensamento parece mais universal, mais minucioso, mais seguido e mais isolado do que pertence a um pensamento individual. O homem muito elevado nunca é um original. A sua personalidade é tão insignificante quanto é preciso."

"Introduction à la méthode de Léonard de Vinci" (Paul Valéry)


Não parece isto tão afastado do individual como do colectivo? E contra a cultura da personalidade, da expressão da alma do artista, do inconsciente criador, etc.?

Se Valéry diz que a elevação nunca é "original" é no sentido de que se a realidade existe, não podemos "vê-la" através da nossa personalidade, das nossas idiossincrasias, mas na medida em que nos libertamos delas (sem deixarmos de nelas nos apoiar).

Isto significa uma aposta na objectividade das nossas melhores ideias, na sua universalidade, no valor da consciência (oh, quanto isto é platónico!) que através do ostinato rigore (a divisa de Leonardo) alcança a compreensão do mundo.

Era na mesma linha que Simone Weil dizia que em cada homem (no homem inteiro) há qualquer coisa de sagrado, mas que a sua pessoa era indefinível e nada podia ter de sagrado.

Valéry refere-se a uma liberdade positiva, que só é possível no rigor (a cartesiana separação de águas entre o espírito e o corpo) e a uma liberdade aparente que "não é mais do que o poder de obedecer a cada impulso do acaso, e quanto mais nela nos comprazemos mais encadeados à volta do mesmo ponto, como a rolha de cortiça no mar, que nada prende, que tudo solicita e na qual se contestam e anulam todas as forças do universo."

Esse rigor é, por outras palavras, o espírito humano, fiel a si próprio e por isso traçando no universo o seu sulco brilhante.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009



(José Ames)

UMA PEQUENA IGREJA


Julius Schmid, Schubertiáda


"Como todo o poder eclesiástico, ela julgava as fraquezas humanas menos graves do que aquilo que pudesse enfraquecer o princípio de autoridade, prejudicar a ortodoxia, modificar o antigo credo, na sua pequena Igreja."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


O "charlismo" não põe em perigo a disciplina do pequeno clã nem a indisputada autoridade da Patroa. Já os gostos musicais do barão e a sua pretensão a ser o árbitro, não só nessa matéria, mas, sobretudo, sobre quem os Verdurin deviam ou não convidar, eram uma verdadeira heresia.

Mesmo admitindo que o pathos melómano de Mme Verdurin era sincero e o seu critério realmente seguro, a melhor arte não servia menos de código social para preservar o sentimento de se pertencer ao "fin du fin".

Noutras igrejas, infelizmente, o que desempenha o papel que a música desempenha neste caso, não sobrevive à ruptura dos laços.

terça-feira, 15 de setembro de 2009


Orléans (José Ames)

DEMAGOGIAS


http://josephros.blogspot.com


"Os demagogos – 'muitos grandes homens que adularam o povo, que nunca o amaram'(Shakespeare) – tornaram-se cada vez mais difíceis de identificar quando a popularidade, o apelo directo aos sentimentos do público, se tornaram a principal avenida para o poder."

"Cleopatra's nose" (Daniel Boorstin)


A opinião da maioria é hoje a suprema instância e uma realidade omnipresente, graças ao "aumento da literacia, à educação pública, aos jornais diários e à impressão rápida, ao ascenso do voto secreto e ao alargamento do sufrágio, ao ascenso dos estudos de mercado e das sondagens eleitorais (…), a par do desenvolvimento das emissões de rádio e de televisão". O chamado "bom senso" é não só a coisa do mundo melhor distribuída (Descartes), como a mais influente. Mesmo se essa opinião tem muito de auto-reprodução e de efeitos de espelho, ela apresenta-se na política com a consistência da realidade objectiva. Não são precisos intérpretes para traduzi-la em discurso eleitoral. De certa maneira, a "adulação" tornou-se a exigência de um realismo incontornável. Não se podem ganhar eleições sem a demagogia que consiste em identificar a verdade com a opinião maioritária plasmada na medioesfera.

A antiga acepção da demagogia, nunca era a ir ao encontro do senso-comum, mas favorecer os desejos e os "instintos" populares contraprodutivos. Ora, no reino da doxa mediatizada, aqueles não se podem confundir com a opinião maioritária "estabelecida". Os falsos amigos do povo não ousam assim a verdadeira demagogia.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009


(José Ames)

O RISO DE RABELAIS


François Rabelais (1483/1553)


"Elle en mourut, la noble Badebec,

Du mal d'enfant, que tant me sembloit nice;

Car elle avait visage de rebec,

Corps d'Espagnole, et ventre de Souyce.

Priez à Dieu qu'à elle soit propice,

Luy perdonnant, s'en riens oultrepassa.

Cy gist son corps, lequel vesquit sans vice,

Et mourut l'an et jour que trespassa."


(Epitáfio escrito por Gargântua para o túmulo de sua mulher, Badebec, segundo Rabelais)


Badebec, para além de ter morrido no ano e no dia em que se finou, de ter cara de rabeca, de ser magra como uma espanhola e de ter o ventre gordo duma suíça, tinha uma capacidade vulvária que o epitafista media em sesteiros (correspondente a 3 ou 4 alqueires – mas o sétier de Paris chegava aos 152 litros).

O gigantismo em Rabelais é uma máquina de comicidade, num tempo em que os gigantes abundavam ainda na literatura (como em Ariosto) e não tinham sido averbados definitivamente à loucura de um Dom Quixote. Os gigantes não eram mais espantosos, de facto, do que os mil anos de Matusalém e a longevidade dos patriarcas bíblicos.

Antes do Renascimento e o Humanismo se imporem, era preciso a terraplanagem da hipocrisia religiosa por um riso homérico como este. Por outro lado, não se compreenderia a liberdade deste ataque contra os "sorbonnagres", sem um clima de extraordinária tolerância (falsa tolerância, se pensarmos que estamos a menos de cinquenta anos do massacre de La Saint-Barthélémy).

domingo, 13 de setembro de 2009


Gaia (José Ames)

OS MISTÉRIOS DO "HUMANISMO"



“O mistério do universo é a sua compreensibilidade”.

Aquela frase de Einstein é um aparente paradoxo, porque o que a mente vai compreendendo é o universo da Física, e entre o homem e essa totalidade há apenas uma diferença de grandeza.

Só encontramos a matemática e a cosmometria que procuramos. Isso, portanto, compreendemos, e assim conseguimos os espectaculares avanços da humanidade, numa certa direcção.

O mistério da adequação do que pensamos ao mundo, tal como o fazemos, não é o verdadeiro mistério. E era preciso que aquilo a que chamamos matéria tivesse uma vontade para não nos dar razão, ou, como diria Descartes, que por detrás dela estivesse um génio maligno.

Por isso uma nova ordem se pode sempre impor às coisas desde que haja uma lógica no espaço e uma vontade para impô-la.

Mas o que é que se impõe a quê?

sábado, 12 de setembro de 2009


(José Ames)

O MECANISMO SECRETO


Leonardo da Vinci ("Estudo da última Ceia")


"Mas o espanto ultrapassa tudo, quando se apercebe que o autor, na imensa maioria dos casos, é incapaz de responder ele próprio pelos caminhos seguidos e que é detentor de um poder do qual ignora os mecanismos."

"O instinto é um impulso cuja causa e cuja finalidade se encontram no infinito, admitindo que causa e fim significam alguma coisa nesta espécie."

"Introduction à la méthode de Léonard de Vinci" "Paul Valéry)


Por muito que admiremos a inteligência, sabemos que ela é, sobretudo, uma questão de lógica e de velocidade de raciocínio, características que a tornam mais ou menos previsível.

Mas podemos imaginar um computador que além de associar à lógica e à rapidez uma capacidade de memória monumental, complicasse as suas decisões (um pouco como os incidentes de uma vida interferem nas associações mentais), de tal forma que a própria máquina fosse incapaz de fazer uma previsão.

E talvez que a capacidade de resolver este tipo de problemas artificiais e de encontrar soluções formais inesperadas se aproxime do instinto de que fala Valéry, mas há uma grande diferença: nenhum sistema fechado pode imitar a complexidade das relações com o mundo exterior. É caso, por isso, para dizer que o "instinto" reflecte um mundo sempre incomparavelmente mais vasto do que aquele que podemos pensar, ou simular através da máquina. O infinito é a metáfora apropriada.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009


Alcobaça (José Ames)

DESCONCERTO



Luigi Malerba (1927/2008)


"Todos os sonhos são um pouco misteriosos, e é nisso que reside a sua beleza; mas alguns são muito misteriosos, ou seja, não se percebe nada; são como os enigmas. Mas enquanto os enigmas têm solução, os sonhos não têm. Podemos atribuir-lhes uma centena de significados diferentes, cada um deles tão bom como o outro."


"Il serpente" (Luigi Malerba, citado por George Steiner)


O enigma tem um autor, homem ou ser mitológico, e é por isso que existe, em princípio, uma solução para o seu mistério. Sonhos há, classificados por Freud como "Träumt von Oben", "cujas fontes se encontram muito próximas da superfície do consciente e das preocupações alimentadas enquanto acordado, pelo indivíduo que sonha".

Mas de onde vêm os sonhos sem solução, que não têm a coerência dum ego por detrás da sua semântica?

A hierarquia psíquica proposta pelo autor da psicanálise (ego, id e super-ego) não parece ser a única possível. Uma hierarquia pode impor à mensagem uma distorção ou uma camuflagem, mas de um desconcerto a várias vozes não se pode deduzir um sentido único.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009


(José Ames)

A LUZ BRILHANTE


Platão (429–347 AC)


"Porque a função original das ideias não era a de governar ou de outra maneira determinar o caos dos negócios humanos, mas, numa 'luz brilhante', iluminar as suas trevas. Enquanto tais, as ideias não têm nada a ver com a política, a experiência política e o problema da acção, mas dizem respeito exclusivamente à filosofia, à experiência da contemplação e à busca do 'ser verdadeiro das coisas'".

"La crise de la culture" (Hannah Arendt)


A ideia suprema em Platão é a do Belo, a única que corresponde ao que se diz acima. Para Hannah Arendt, a ideia do Bem, introduzida exclusivamente no "contexto político de 'A República'", terá sido a solução encontrada pelo filósofo para a "não-pertinência" política da teoria original das ideias: "(…) a utilidade só pode ser salva pela ideia do bem, pois que 'bem' quer sempre dizer, no vocabulário grego, 'bom para' ou 'apto a'.

Há aqui o passo decisivo duma mudança de foco e de natureza dessa "luz brilhante" do exterior, do universo visível, para o interior da mente humana e dentro dela, graças ao conceito de utilidade e de adaptação, para a supremacia da Razão.

O Belo, como manifestação da harmonia cósmica e do acordo da alma com o Grande Ser, não é, evidentemente, utilizável em política. Vejam-se as prevenções de Oulianov contra a música que, precisamente, o tornavam inapto para a acção.

Mas a Razão, sobretudo depois da requalificação kantiana, é um pobre e falível substituto daquela "luz brilhante".

quarta-feira, 9 de setembro de 2009


Wroclav (José Ames)

O ESPÍRITO PRÁTICO


Thomas Edison (1847/1831)



"O inventor – o Edison nas fronteiras do quarto reino - não está limitado pelas seguras inibições do conhecimento científico. De facto, é até enganador falar de uma 'fronteira' – um limite exterior para o quarto reino. Isso sugere uma linha clara entre o conhecido e o desconhecido. Aquele que procura no reino das máquinas não anda atrás de conhecimento, mas da novidade cujas fronteiras estão em todo o lado. 'Na altura em que fiz experiências com a lâmpada incandescente', confessou, ou antes vangloriou-se Edison, 'eu não compreendia a lei de Ohm. Para além disso, eu não quero compreender a lei de Ohm. Isso impedir-me-ia de fazer experiências.'"

"Cleopatra's nose" (Daniel Boorstin)


Inventores como Edison parecem ser os Abencerragens da teoria da indução, tão cabalmente criticada por Karl Popper.

Edison, que foi "um prodigioso inventor", depois de uma longa vida, "não acrescentou quase nada ao conhecimento científico" (ibidem).

A teoria de que é a experiência que, através de inúmeras tentativas, nos sugere as ideias não corresponde à verdade, e é preciso admitir que o próprio Edison, sempre atento à utilidade e à popularidade das suas descobertas, partia também ele de uma hipótese.

Se o conhecimento científico "estabelecido" (apesar de tudo) pode inibir a formulação de hipóteses verdadeiramente novas e revolucionárias, o "espírito prático" de um Edison encontra no seu próprio método um limite que não pode ser ultrapassado.