terça-feira, 30 de outubro de 2007

LAMPADA VELADA


Baden Powell (1857/1941)



No restaurante da pequena cidade, estão os escuteiros. Lembro-me que desprezava esta liberdade vigiada, quando encontrava em plena aventura adolescente o seu acampamento. Mas observo esta bela energia em uniforme e não posso deixar de admirar a sabedoria da instituição. É prolongar as aulas práticas e a lição de cortesia. O jovem sente-se na sua horda, mas é contido por uma espécie de honra ligada aos calções e à blusa. Vejo-os rir do riso agreste que lhes é próprio e dizer os disparates e trocadilhos que eu dizia. Há timidez da natureza no modo brusco e fanfarrão como interpelam os adultos que servem à mesa. Respondem-lhes com o sobrolho carregado os homens de avental. Estão à defesa perante o número e a ordem surpreendente.
Sorrio para mim, porque passei essa idade e a julgo com ternura escrava. Mas mergulho na sopa e logo aqueço. A hortaliça caseira toma conta dos meus pensamentos. Com o seu agradável vapor nas faces, sinto-me transportado para o que aquele grupo saudável já deixou para trás. Por um momento eu é que sou a criança naquela sala. Mas o meu exterior deve ser o mesmo, com os ângulos do tempo. A verdadeira volúpia é solitária. Nenhuma conversação me distrai do gosto a que me aplico de cada espécie da terra e do traço único da cozinha que depende geralmente duma divindade feminina. O apetite dos rapazes, aguçado pela marcha ao ar livre, é bom de ver. Mas sou eu que contemplo e respeito os alimentos. Cada batata frita é uma oferenda e uma metáfora do campo e do corpo humano, fonte do trabalho e do prazer.
Ouvi um operário dizer que não podia estar muito tempo a olhar para o prato. E havia nisso não só a pressa de acabar com uma pausa inútil e o apreço da coisa que se ganhou pelo esforço próprio, mas também o orgulho ingénuo de quem vai direito aos seus fins. Não há lugar aqui para venerar a natureza e o seu labor misterioso. É a lei da troca que faz esta rudeza sem tempo para os deuses. Por isso se come como quem arranca com os dentes um direito. Talvez que esse gesto seja mais propício a dar prazer ao espírito em vez do corpo, o que não diz a aparência. É caso para dizer que o estômago operário é primeiro que tudo político.
Ora a maior parte das vezes, eu como sem gosto, e isso é uma história antiga. É a disciplina quotidiana das paixões. Mas não originalmente voluntária. Aprendi a ser frugal como se aprende a ortografia: repetindo e sempre forçado um pouco. Que me acontece então neste domingo frescote diante da mesa dos moços? Visito o templo que se reconstruiu em três dias. A luz do espírito como que suspensa durante a orgia dos sentidos. Mas ao alcance da mão para nos iluminar no regresso.

domingo, 28 de outubro de 2007

MENSAGEM DE OUTRA GALÁXIA






Maltratado pelo ritmo da cidade, pela fúria de trabalhar mais depressa, o corpo protesta abandonado da razão. E eu procuro calá-lo, deixando de tomar café e de me deitar tarde. Mas o medo de que ele queira dizer-me uma coisa importante leva-me ao médico.

Podemos viver com os sintomas conhecidos sem lhes dar excessiva atenção. É como se o corpo perdesse a faculdade de se fazer ouvir e de interessar este inquilino sem respeito. Porém, basta um sinal incompreensível para nos lançar em terríveis conjecturas. Que me importa o ruído do motor no carro do amigo que me leva a casa? Mas bem vejo como isso se faz ruga e distrai da conversação. Quanto mais esta outra máquina, pela qual existo e penso, parece merecer os cuidados dum mecânico.

Mas o que trago do consultório é a ordem de viver doutra maneira, porque o médico é honesto e não cede perante a minha imaginação. Há um pensamento em Gandhi que ilustra bem esta loucura da medicina. Ele quis sempre sofrer todas as consequências dos seus actos. Um jantar copioso que nos soube bem pode resultar numa indigestão. Pois bem, é preciso aguentá-la. Excitei-me durante o dia e não consigo dormir? Que a mão se mantenha longe do frasco das pílulas. É que quando recorremos às drogas, desfazemo-nos duma parte do corpo e perdemos a experiência necessária. Se nos podemos furtar à dor e ao desconforto que são efeito dos nossos actos voluntários, entramos num círculo de irrealidade e não somos mais responsáveis.

Esta medicina apaga os ângulos da vida e habitua-nos a uma espécie de tristeza que é feita de prazeres sem risco e sem medida. A criança se crescesse tão protegida nunca chegaria a ser homem. E é isso que nos promete este ideal da anestesia. Claro que é possível imaginar a velocidade e a ausência de dor na gravidez e no parto, bem como no processo de germinação das plantas. Atingiremos, quem sabe, a velocidade da luz e o completo domínio das sensações. A tal ponto que não haverá diferença entre ser e imaginar. Mas teríamos destruído o homem. E então era preciso buscar quem pensasse por ele.

O geómetra, o medidor do tempo, o conhecedor da ciência dos sinais e da linguagem. Sem corpo, esse pensador não poderia actualizar os conhecimentos, nem sequer compreendê-los. O mito do computador a fazer as vezes de cérebro num mundo de escravos é uma inépcia completa, mas diz muito sobre o espírito desta época de insensível decadência.

O que dizes meu corpo? Que estás mal? Mas se tens razão, vou dar-te murros ou pôr tampões nos ouvidos? A cidade convida-me à febre e ao reflexo eléctrico. É fácil seguir a multidão apressada. Neste dia sem transportes, muita gente descobriu as pernas e a companhia do ar livre. Se olhar à minha volta e examinar o que faço durante o dia, traduzo bem esse sinal. Só se deve ter medo dum corpo que não sente. Paradoxo.

sábado, 27 de outubro de 2007

O RELÓGIO VAIDOSO


O coelho de Alice



Por que é a vida insuportável quando se define? Quando reduzo, por exemplo, o meu dia ao trabalho e à leitura? Subitamente, o encanto de conversar à noite e nas horas vagas com os grandes autores desfaz-se. E a outra parte da minha vida activa torna-se pesada por falta de compensação. Contudo, regressar depois de sete horas de rotina mecânica, ao convívio do espírito é o que o homem de bem, como diria Montaigne, mais pode desejar.

A felicidade é invisível e não se pode pensar nela sem que fuja. O erro é crer que o tempo livre é uma preparação para o trabalho e mais nada. Levamos no corpo e na alma uma pancada tesa ao aplicarmo-nos a uma tarefa sem interesse, submetendo-nos a um ritmo artificial que deixa mossa. O resto do tempo é de descompressão. A forma humana recupera para novo embate. A ideia deste vaivém é que é mortal. Faz de nós um pêndulo absurdo. O futuro parece não poder escapar a esta lei oscilatória, e a vontade humana não é mais do que uma mola entre outras, de que se conhece perfeitamente a função. Mas é uma vaidade triste que nos faz pensar assim.

Condenamo-nos a viver nos estreitos limites duma servidão que não compreendemos. O trabalho que se vive como uma prisão é degradante e não pode deixar de infectar a vida das pessoas com o espírito da frivolidade e da violência inútil. Por muito abstracta que seja a tarefa e separada das funções naturais, há sempre um aspecto que é digno de contemplação e de amor misterioso. E isso é a longa cadeia do trabalho, que liga o passado e o presente de todos os homens, os vivos e os mortos, às outras espécies e à natureza. O edifício de vidro com as suas secretárias e os seus telefones e o complexo sistema de papéis, apesar do luxo e das despesas supérfluas, não é menos a colmeia dum trabalho quase imóvel e cerebral. Mas esta solidariedade de todos os órgãos económicos conhece os seus fantasmas.

A habilidade das mãos do escriturário é inútil como a cauda que já não temos. O corpo mais perfeito da criação sobra em cada trabalhador. Já não é necessário. O que nos leva a dizer que agora é preciso querer esse corpo. Salvá-lo como a coluna sublime das civilizações. Mas não é o trabalho económico que o pode fazer. É o tempo livre e são outros trabalhos. Cultura física, expressão admirável. E por aqui chego à causa daquela tristeza que é falta de ginástica e força por empregar, juventude para viver. Mas também vaidade, como dizia. A de julgar o universo e de tomar como dinheiro contado a aparência do saber.

Para quê dividir o tempo? Ao escrever uma linha rotineira, o que me obriga a dormir? Recusemos a voz interior da demagogia que nos quer dar a liberdade que já temos.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

O TAMBOR


"O Tambor" (1979-Volker Schlondörff)


Os filmes alemães do pós-guerra procuram todos uma explicação para o trauma, como se este povo tivesse de ser um monstro maravilhoso. Assim, a crueldade parece natural. Mas esta vitalidade é infeliz, como a mãe de Óscar no “Tambor”, que morre de devorar toda a espécie de peixe. O seu apetite sexual é vontade de morrer. E tudo se converte em símbolo. É uma geração em busca do pai possível. Mas o que aparece é a irrealidade feminina e a pulsão do suicídio.
A imagem que os alemães dão hoje de si é a da eficácia e da ordem social. Onde se escondeu o bárbaro? Ele nunca foi tão visível como nesta superfície demasiado perfeita para ser real. A ordem é o seu laconismo e a sua austeridade. É preciso imaginar um país vencido e sem direitos, por se ter arrogado todos, para compreender esta penosa marcha do silêncio. A Alemanha é uma nação prisioneira do símbolo. Na admiração pela técnica alemã exprime-se também o horror sagrado.
O que é que nos diz o filme de Schlondorff? Só se salvam os anões. Os que recusaram crescer como Óscar numa casa em que se fazem poucas vergonhas debaixo da mesa. Numa família sem pai, nem mãe. Sem modelos. Apenas a confusão das pernas e do sexo. “Este povo crédulo acreditava no Pai Natal, mas o Pai Natal era o Homem do gás”. As crianças velhas correram atrás desse sonho mortal. Introduza-se um ritmo de valsa na parada militar e o gauleiter fica sozinho à chuva com o braço ridiculamente estendido.
Mas quem sabe julgar a guerra, quando o coro é mais potente e o espectáculo da força nos subjuga? É preciso negar a solidariedade desumana, o que exprime bem a personagem de Óscar, o mesmo que não quis crescer. A História do anão é o circo. Mesmo quando enverga o uniforme nazi, a sua responsabilidade é infantil, e o espectáculo diz que o rei vai nu. Sem pertencer ao mundo das crianças ou ao mundo dos adultos, o pequeno Óscar é juiz da loucura colectiva. O pensamento salva-se ao nível das pernas, e à maneira alemã: como raça.
É a tetralogia da miséria humana. A aurora dos deuses passa por este perpétuo exame anatómico. Porque não é possível condenar a Alemanha do espírito, por muito frouxa que fosse a sua luz em dada altura. É preciso fazer a parte do mal, que é o mesmo que descobrir os demónios em nós mesmos. Na paixão que quer pensar. E essa lição é mais útil do que a do regime e da crise económica. O desumano tem a forma do homem.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

A SÍNDROME DA GROENLÂNDIA



O filme de Al Gore utiliza talvez a linguagem mais apropriada para passar a sua mensagem.

Os gráficos e as imagens são impressionantes, e os argumentos ganham com isso uma grande força demonstrativa.

O ex-candidato à presidência dos E.U.A. parece ter encontrado a missão da sua vida e só por maldade se veria aqui qualquer intuito de utilização da ecologia em proveito da sua imagem pessoal.

A importância da mensagem tem sido desvalorizada por alguns, por a considerarem alarmista e exagerada nas suas projecções, coisa, aliás, prevista no próprio filme como uma reacção "natural".

Se nem tudo serão factos incontroversos, a grande probabilidade de nos confrontarmos com uma acelerada tendência para a catástrofe devia fazer-nos parar para pensar.

Mas nunca os meros avisos foram suficientes para mudar o comportamento das pessoas a uma grande escala.

O próprio facto do filme obedecer a uma retórica de vídeo-conferência e de campanha mediática titila os nossos neurónios sem nos atingir mais a fundo.

Não é, evidentemente, inútil o apelo de Al Gore, porque não sabemos qual é a "massa crítica" de consciência necessária para uma mudança decisiva, mesmo que, de princípio, se faça sentir apenas numa elite ou em grupos minoritários.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

O CONSTRUTOR SOLNESS


"O Construtor Solness"

O simbolismo está datado, e é isso que mais choca na peça de Ibsen que a "Cornucópia" levou à cena.

A figura de Hilde (Beatriz Batarda) é a juventude de Solness (Luís Miguel Cintra) ou a sua própria morte, pela negação do tempo. Por isso Solness se defende dela, contra-atacando a actual juventude dos outros. É injusto para com o seu empregado Ragnar e atravessa-se no caminho da sua felicidade.

Mas não adianta resistir ao destino. Hilde desce da montanha para lhe lembrar o melhor de si próprio que jaz debaixo de anos de auto-tortura e sentimentos de culpa. A ideia de que todo o êxito mundano se paga com a morte do ideal. O sucesso profissional de Solness coincide com o incêndio que destruiu a casa da família de Aline, a sua mulher, e com a morte dos seus filhos gémeos.

Hilde convence-o a subir ao alto da torre que acaba de construir e a colocar ali uma coroa, como fizera há dez anos. Solness precipita-se, depois de cometida essa façanha.

Não estamos habituados a ver as ideias conviverem como personagens entre as demais.

Mas a psicologia está lá, sem uma falta.

Contra o senso-comum, um velho que se recusa a envelhecer faz uma espécie de pacto com a morte. Em troca de um último momento de glória, abandona-lhe o resto dos seus tristes dias.

domingo, 21 de outubro de 2007

O HOMEM QUE GOSTAVA DO DESERTO


Howard Hughes

No “Aviador”, filme de Martin Scorcese, a caricatura do milionário, privilegiado sem alma, indiferente à sorte do seu semelhante, não existe. O que existe é a ideia duma paixão útil ao seu país: os aviões, mesmo se a excentricidade tudo parece sobrelevar.

Assim, o egoísmo e o prazer contribuem, consumindo o corpo, os milhões públicos e os da fortuna pessoal para o progresso duma indústria que interessa a todos.

Claro que Howard Hughes nos é apresentado como um louco visionário, amado mesmo pelos seus fracassos, que, apesar de tudo, sabe que existe uma espécie de Providência que transforma os erros privados em virtudes públicas. A história da aviação seria assim, como a de outras grandes realizações humanas, feita de génio, coragem, desapego pelo valor do dinheiro e de desafio das leis e das mentalidades.

A sua defesa no tribunal contra o requisitório do seu principal concorrente (a Pan Am) é uma invocação da ideia mais cara aos Americanos e que lhes vem dum período da sua história em que o Estado não era garante de nada: a iniciativa individual.

O fim de H.H. na loucura contribui para dissociar a sua figura da iconografia do capitalista, mesmo excêntrico. E se é verdade que nunca se perdoará a um multimilionário o seu dinheiro, também não se pode julgar a vida de um homem senão depois de ele morrer (Séneca).

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

CARTESIANISMO






O que trabalha em casa, às horas que quer e sem ter ninguém a vigiá-lo, apenas regulado pela obra a fazer e a necessidade, não sabe até que ponto o trabalho próprio é feito pelos outros e contra os outros. E talvez que a disciplina patronal à moda antiga apenas quisesse cortar a influência do grupo, de modo a que o trabalhador contasse com todas as suas forças.
É a ideia da primeira burguesia industrial esta de somar indivíduos e de organizar a produção sem recorrer à psicologia. Foi preciso pôr em causa essa ordem mecânica para descobrir que o homem trabalha mais e melhor num bom clima humano e que os progressos da produtividade dependem tanto da técnica e da organização como das relações entre as pessoas.
Quando a disciplina se torna flexível, o sentido da responsabilidade é partilhado por muitos, mas sem os privilégios do poder. Por outro lado, a organização pode ser tão complicada que as pessoas se guiem apenas pelo seu temperamento, encontrando múltiplos recessos que escapam à cadeia dinâmica que dá vida à empresa. E é um paradoxo genuinamente burocrático esta situação do funcionário escondido pelos papéis. Esses redutos contrariam a lei da empresa e do trabalho colectivo. Mas não se vencem pela investida hierárquica.
A organização deficiente põe à prova o carácter do trabalhador. E não há melhor exercício da vontade e do autodomínio do que enfrentar quotidianamente a inércia dos outros e o seu comodismo. Porque o trabalho próprio passa a ser preocupação pelo trabalho dos que faltam, dos que passeiam ou simplesmente se relaxam no serviço. As tarefas deixam de ser coisas que se fazem sem pensar quase, para se tornarem sentimentos e emoções ferradas. Quem não perder a cabeça encontra aí o fogo que tempera. Sem procurar nenhuma vantagem material ou ideal, a força chega e o pensamento que de cada vez deve limpar as ideias da paixão sai mais robusto da prova.
Mas é bom de ver que o egoísmo dos que se limitam a assistir a esse esforço é mais propriamente medo de si próprio. De não saberem vencer o despeito e a raiva, de a cada momento se sentirem motivo de troça e não ser capaz o pensamento de deixar o tórax munido de espanador e do vento do espírito. É claro, porém, que a empresa não pode contar só com a boa-vontade. Por isso a disciplina e a autoridade regressam periodicamente, quando ao abuso do poder se seguem os excessos da liberdade – porque a verdadeira liberdade não é colectiva.
Organizar melhor os homens, de resto, é sempre submeter o indivíduo a um princípio exterior. O progresso é tornar cada vez menos pessoal a necessidade. Separar o espírito das coisas. É a lição de Descartes.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

DO ABUSO DO CLOROFÓRMIO


Marie Jean-Pierre Flourens (1794/1867)

"Mas mesmo se nos abstrairmos do facto que a única duvidosa vantagem é um enfraquecimento da memória que dura o tempo da intervenção, o desenvolvimento desta prática parece-me apresentar um outro sério risco. Dado que a formação universitária geral dos nossos médicos é cada vez mais superficial, a medicina poderia atrever-se - na sequência da utilização ilimitada deste remédio - a empreender intervenções cirúrgicas cada vez mais complicadas e difíceis. Em vez de efectuar experiências sobre animais para fazer progredir a ciência, transformará em cobaias os pacientes que nem sequer se aperceberão de nada."

(citado em "La raison dialectique" de Max Horkheimer e Theodor Adorno)


Esta é a transcrição de uma carta de Jean-Pierre Flourens, fisiologista francês, sobre a utilização do clorofórmio.

O seu principal argumento é o de que "na sequência geral da enervação, as dores são ressentidas ainda mais vivamente do que no estado normal. O público é iludido pelo facto do paciente ser incapaz de se recordar do que se passou, uma vez a operação terminada."

Mas o que é uma dor de que não nos lembramos?

Esta concepção do corpo inconsciente que não deixa de sofrer os traumatismos que o narcótico impede que atinjam a consciência pode, de facto, ser generalizada.

Os efeitos a longo prazo, por exemplo, de certas tecnologias, nomeadamente as que produzem radiações ainda não suficientemente estudadas, não deixarão de ser averbados ao nosso estado físico e mental, num futuro mais ou menos próximo, mesmo se actua sobre a consciência dos danos uma outra espécie de clorofórmio que é a habituação e a sugestão colectiva ou institucional.

E o que se diz sobre alguns avanços temerários da medicina poderiam ser aplicados, palavra por palavra, à ciência moderna. Tudo o que não se sente imediatamente como limite é como se não existisse.

Como dizem os autores, "a técnica médica e extra-médica tiram a sua força de tal cegueira: ela só terá sido possível graças ao esquecimento. A perda da memória como condição transcendental da ciência. Toda a reificação é um esquecimento."

domingo, 14 de outubro de 2007

UM PROBLEMA DE PIGMENTAÇÃO


"Adivinha quem vem jantar"
(1967-Stanley Kramer)


Sidney Poitier foi na história do preconceito racial no cinema o rosto da mudança.

Num filme como "Adivinha quem vem jantar" vemos que o casal de liberais que se confronta com a escolha da filha de casar com um negro, belo e educado, dotado de um currículo profissional distintíssimo, não teve só a coerência das suas posições públicas sobre o assunto a impedi-los de ceder ao "instinto social".

As hesitações e as moratórias só servem aqui a acção dramática, porque este doutor Prentice é, de facto, um negro-branco, tanto pela sua perfeita adesão aos valores do "establishment", como pela ausência de qualquer peculiaridade rácica, além de um certo problema de pigmentação.

Quarenta anos depois do filme, damo-nos conta do caminho percorrido e de como foi preciso começar pelo espécime perfeito, quando toda a diferença física era um argumento.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

CONTO DE INVERNO


"Conto de Inverno" (1992-Eric Rohmer)


O Inverno é tempo de fé e de esperança. Quando se acredita que há-de vir o bom tempo e o sol da alegria física, quando se espera que o que nasceu ou foi semeado cresça e se faça homem ou árvore.

É o que nos diz o "Conto de Inverno", de Eric Rohmer. E, como se não bastasse a tradição natalícia, há no meio do filme uma cena da peça de Shakespeare com o mesmo nome, em que os mortos ressuscitam e os que desapareceram comparecem junto daqueles que viveram para isso.

Félicie conhece Charles durante umas férias e é o amor louco. Mas no regresso (ele vai emigrar para os EUA, e ela voltar a Paris), dá-se o inacreditável: ela engana-se ao indicar a sua morada. Lapso freudiano.

A acção transfere-se para 5 anos depois. Ela tem uma filha de Charles que nunca mais voltou a ver. Entretanto, conhece outros homens que ama, mas não o suficiente para viver com eles.

Toda a sua felicidade está em amar uma realidade ausente, mesmo se são escassas as hipóteses de se reencontrarem.

Já se adivinhou, porque este é o tempo dos contos, em que sempre acontecem coisas maravilhosas, que tanta fé e esperança são, no final, recompensadas, pois, um dia, se sentam em frente um do outro, por acaso, num autocarro.

Rohmer tem que nos dar, em poucos minutos, na introdução da história, a imagem da intensidade desse amor de verão, e escolhe para tanto uma montagem semelhante à de um vídeo-clipe, com cenas de amor sucedendo-se umas às outras, ao ritmo exaltante da música.

Esse recurso diz bem da impossibilidade de se contar a felicidade. Cai-se inevitavelmente no estereótipo. Uma fotografia, por exemplo, torna-se um buraco negro que absorve todo o sentido.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

DUELO DE MÁSCARAS



"Sleuth" (1972), de Joseph Manckiewicz, é um filme sobre o desprezo, o mais dogmático e inconciliável dos desprezos: o desprezo de casta.

Dois dos maiores actores do cinema moderno (Olivier e Caine) pedem meças um ao outro neste duelo de classes, através do jogo, até à morte. Como aquele jogo de mãos das crianças em que se perde rapidamente o controle.

Andrew (Olivier), velho senhor da gentry, colecciona autómatos e escreve policiais. Milo (Caine), cabeleireiro, de ascendência italiana, é jovem e começa a singrar na vida.

O primeiro odeia o segundo pelo seu sucesso, mas, sobretudo, por lhe ter roubado a mulher. Convida-o para a sua mansão no campo e facilmente o convence de que não poderá sustentar o luxo da sua amante, pelo que o alicia a um assalto simulado ao cofre das jóias.

Mas, obtido o flagrante delito, Andrew leva o seu jogo ao extremo e depois de humilhar, de uma forma execrável, o seu rival "mata-o" com um tiro de pólvora seca.

Quando vem a si do desmaio, Milo regressa a casa de Andrew, disfarçado de detective, incriminando-o com pistas fabricadas e depois de se revelar, humilhando-o por sua vez, fazendo-lhe crer que vai ser acusado pela morte da amante finlandesa que ele, Milo, teria assassinado, depois de conseguir que traísse o velho e lhe confessasse a sua impotência.

Andrew acaba por matar Milo, deveras, por não acreditar que ele tenha informado a polícia. Mas já se vêem as luzes do carro que parou à sua porta.

Milo, ao acordar do seu desmaio, poderia ter-se simplesmente permitido dar uma sova monumental a quem lhe pregou um susto de morte e com ele jogou como o gato com o rato.

Mas, com isso, confirmaria o lorde nos seus preconceitos de nascimento e privilégios. Era preciso jogar com as suas armas e consumar uma vingança de inteligência.

É Andrew que acaba por proceder como um burguês convencional, defendendo a tiro a sua honra e a sua virilidade.

Manckiewicz, grande amante do teatro e do artificio, deu-nos uma comédia genial, em que os papéis se invertem e as máscaras caem para mostrar outras máscaras.

Como a significar que nada é o que parece, a última imagem é a de um palco de teatro.

Laurence Olivier: um portento.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

A ETERNIDADE DO PLÁSTICO


http://www.jasfarma.com/noticia.php?id=733


Pude, enfim, visitar a exposição sobre "O Corpo Humano", na rua da Escola Politécnica.

Estava à espera de qualquer coisa de animado e envolvente, com recurso à mais avançada tecnologia da imagem, e deparei-me com uma espécie de múmia do século XXI.

Esta técnica de polimerização permite eternizar as relíquias cadaverosas, sem ter de sacrificar as vísceras que os Egípcios destinavam aos vasos canópios.

Tudo, mesmo a mais nebulosa ramificação do sistema capilar pode ser recuperado e exposto diante dos nossos olhos incrédulos.

O atleta esfolado, com os músculos espetados como pequenas asas para melhor exploração visual, suspende-se na corrida impossível. Não longe, a própria pele inconsútil, artificialmente rosada, faz-nos pensar na muda de um réptil.

O cadáver explode pelas vitrinas, nos seus ossos, órgãos e tecidos.

Estes S. Bartolomeus de feira científica, sem pele e de olhos vítreos, não têm nada a ver com a vida nem com a morte.

Os próprios cadáveres que estiveram na origem da apresentação foram transformados em plástico. E melhor do que a múmia de Lenine podem responder às perguntas mais fáceis e sofrerem uma perpétua redissecação mental.

São já só uma distante conotação do corpo.

OS POBRES DE ESPÍRITO



Alegadamente contra a hipocrisia do cinema de autor e conforme o espírito do movimento Dogma 95, o filme de Lars Von Trier (LVT) "Os Idiotas" (1998) não está assinado.

Além disso, é tosco, filmado com a câmara ao ombro, pelo próprio Lars, muitas vezes, e desrespeitando as regras da dramaturgia essenciais. O resultado é uma obra um tanto indigesta e desagradável ao olhar e que obriga o espectador a coser o que deliberadamente foi descosido. O sentido do filme depende, assim, de uma satisfatória reconstituição do puzzle formal com que LVT, por amor da "espontaneidade", complicou o seu trabalho.

A comunidade de idiotas voluntários, cada um à descoberta do seu "idiota interior", é vista pelo olhar de Karen, uma mulher que fugiu de casa e que, ao princípio, encara com cepticismo a terapêutica do grupo e questiona a ética das suas representações, no papel de falsos doentes mentais, junto da população.

O grupo acaba por não sobreviver aos seus conflitos internos, e Karen, que ensaia um regresso à sua família, mas comportando-se à mesa como um idiota doutrinado ( o que lhe vale uma bofetada do marido ), acaba por concluir que já não pode ter uma vida normal.

LVT talvez nos tenha mostrado que a sociedade dita normal se comporta hipocritamente com os seus doentes mentais, mas o seu parti pris de simpatia para com um grupo duas vezes hipócrita tira, de certo modo, todo o sentido à sua denúncia.

domingo, 7 de outubro de 2007

INICIAÇÕES


Iniciação no Lesotho
http://www.trc.org.ls/picture_galleries_pages/picturegallerypeople.htm


O ritual da iniciação diz muito sobre a sociedade que integra.

A solenidade maçónica, descrita, por exemplo, em "Guerra Paz", está de acordo com os ideais humanitários, mas Pierre sente-se desmoralizado por encontrar ali apenas a "boa sociedade" dos salões.

Em tempos mais primitivos o ritual era constituído por uma série de provas de que o corpo, geralmente, conservava as marcas.

As praxes estudantis têm algo desses rituais, mas perdeu-se a inocência e a ingenuidade antigas. É tudo feito perfunctoriamente, como um jogo que não se leva demasiado a sério, mas que parece, de qualquer modo, obrigatório.

Como acontece sempre nos casos em que a tradição perdeu a forma, e o espírito, como aquele banqueiro judeu em "Le Côté de Guermantes" que respondia "à la cantonnade" ao marquês de Foix, não só se perdeu, como não se encontra.

O imperativo de repetir sob novas formas deixa um grande lugar à imaginação, e porque tudo isso se pratica em público, o ritual parece destinado a "épater le bourgeois", senão fosse, quase sempre, apenas o sinal da perda do sentido do ridículo.

Por isso, quando vejo esses jovens a andar de gatas pela via pública, sob a batuta de algumas implacáveis capas negras, não sei o que mais admirar, se o zelo na comédia do poder por parte de uns ou a merina paciência dos outros.