quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

A CIDADE DOS ABAIXO ASSINADOS


Estação Ostiense (Roma)
Um pouco mais de esforço, e lá chegaremos!


De tempos a tempos, a comunicação social dá-se conta que a cidade está doente, com uma doença de pele confrangedora.

No "Público" de hoje, pergunta-se: "A arte clandestina pinta ou suja as paredes?"

Ora, a pergunta só faz sentido num contexto em que se perderam todos os critérios de "validação" da obra de arte e completamente se pôs de lado a questão ética, a do direito dos outros e das regras de convivência. Por outro lado, não há nada de clandestino numa actividade tolerada e que é abastecida por um comércio especializado.

Avaliar um "tag" é sempre subjectivo, diz um entendido. Subjectivo, pois claro, como a perda da realidade e a esquizofrenia que não dão, ao que se sabe, especiais créditos artísticos.

Mas os "writers", diz Terrance Lindall no mesmo artigo, seriam "pessoas oprimidas ou suprimidas" que "precisam duma saída, por isso escrevem nas paredes - é grátis."

É evidente que a "expressão" se tornou obrigatória na sociedade da "dessublimação repressiva". Nem todos podem "assinar", com a sua presença, um "reality show" ou um concurso televisivo. Por isso, a televisão está já nas paredes da cidade.

Revolucionários os "tags" e os "graffiti"? Mas são os mais conformistas possível, seguindo apenas as linhas de indução da "cultura global". É sintomático que esta "manifestação popular" não provenha de nenhum recalcado doméstico, mas da chamada cultura "punk" ou "hip-hop" de Nova Iorque de há mais de vinte anos.

Mas nesta cidade já se estabeleceram algumas fronteiras entre a "arte e o lixo", enquanto que no Bairro Alto e no centro histórico de muitas cidades se debate ainda, metafisicamente, se não estaremos perante a "arte rupestre" do século XXI.


O rio Tibre (José Ames)

QUANDO ZEUS PERDE A CABEÇA


"Sólon e Cresus" (Honthorst, Gerrit van)

"Sólon aprofundou esta ideia, através da sua grandiosa fé na justiça. A "justiça" é para ele um princípio divino imanente ao mundo, cuja violação deve ser vingada necessariamente, e independentemente de toda a justiça humana. Desde o instante em que adquire plena consciência disto, o Homem participa, em grande medida, na responsabilidade da sua desventura."

"Paidéia" (Werner Jaeger)


O destino já não está todo na mão dos deuses. E essa passagem, segundo Jaeger, é já visível na "Odisseia" , quando o poeta declara "que o governo divino do mundo se encontra livre de culpa quanto às desgraças que sucedem ao Homem."

Mas, na "Ilíada", o poema da força, na expressão de Simone Weil, não é assim. Os deuses intervêm constantemente, seja enfurecendo Ajax até à cegueira, seja arrancando das garras da morte o vencido cujas armas qualquer herói grego ou troiano se preparava para levar como despojo.

Mas é só para submeter deuses e homens à Lei que nem o próprio pai dos deuses pode ignorar.

A imagem da alma que escolhe, no relato de Er, em Platão, o mesmo embrulho de venturas e desgraças, apesar de ter bebido a água do Letes é a mais verdadeira.

Por isso, a justiça faz-se sempre neste mundo, e não no outro, como Sólon pensava. Se esquecermos a sorte que às vezes parece proteger os maus e perseguir os bons.

"É o resíduo da velha Ate de que fala Homero." (ibidem)

(Ate é a deusa a quem Zeus, enfurecido por ter sido enganado, puxou pelos cabelos e projectou para fora do Olimpo, mas para cair num sítio onde, mais tarde, havia de ter lugar a Guerra de Tróia.)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

GRAVIDADE REVOLUCIONÁRIA


Gabriel-François Doyen
Allégorie funéraire à Loustalot

"O redactor (de "Les Révolutions de Paris") não assinava. Quem assinava era o tipógrafo: Prud'homme. Este nome tornou-se um dos mais conhecidos do mundo.

(...) Loustalot, morto aos vinte e nove anos em 1790, era um rapaz sério, honesto e trabalhador. Medíocre escritor, mas grave, duma gravidade apaixonada, a sua originalidade real consistia em contrastar com a leviandade dos jornalistas do tempo. Sente-se na sua própria violência um esforço para ser justo. E o povo preferiu-o."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Aqui, a palavra grave revela o anacronismo. Vem da "gravitas" romana, povo que serviu de modelo aos revolucionários, como se sabe.

Loustalot era o bom senso possível, a coisa pior distribuída nos tumultos.

Michelet fala em moderação corajosa, com toda a propriedade, se nos lembrarmos que o bom senso e a moderação custaram, tantas vezes, a cabeça dos seus proponentes.

Mas quem se lembra de Loustalot? Do fanático e vicioso Marat, sim, de Robespierre ou de Mirabeau.

Os verdadeiros heróis estão condenados ao anonimato por não se distinguirem da massa dum povo.


"Helénica" (José Ames)

DEUS JOGA AOS DADOS?


Erwin Schrödinger (1887/1961)

"Acredita-se usualmente que a Teoria Quântica tem de ser estatisticamente interpretada, e a estatística é, sem dúvida, essencial para os seus testes empíricos. Mas este é um ponto em que, segundo creio, os perigos da teoria da testabilidade da significação se tornam manifestos. Embora os testes da teoria sejam estatísticos, e ainda que a teoria (suponhamos, a equação de Schrödinger) possa implicar consequências estatísticas, não tem necessariamente de ter um significado estatístico."

"Conjecturas e Refutações" (Karl Popper)


A Teoria Quântica não tem de ser estatística, segundo Popper que discorda também da crença de Einstein no determinismo, que levou este a tentar refutar a teoria.

Apesar de não estar resolvido, ao que parece, o problema da sua significação, a teoria funciona e Popper encontrou maneira de testar o seu enunciado estatístico, o que lhe permitiu considerá-la científica.

Deus parece, aqui, "jogar aos dados" (contra Einstein). Mas o problema da frequência da probabilidade diz-nos que a nossa razão não pode abdicar da sua vocação para legislar sobre o universo.

E só podemos conviver mal com a noção de jogo, em vez de programa, e de regras do jogo em vez de leis universais.

Mas esse preconceito é melhor do que nada e remete-nos para o que poderia ser a infância da inteligência.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

DESOLAÇÃO


Nitezsche com 20 anos

"O mal não é um problema abstracto que é preciso resolver, mas um confronto trágico do qual é preciso sair vencedor."

(Friedrich Nietzsche)


Um problema que diga respeito só a nós mesmos (talvez Robinson na sua ilha tivesse problemas desses) não está dentro dos limites da ética.

E a ideia dum "pecado original" não existe aqui para explicar por que é que devemos ser "necessariamente" tentados.

Em vez disso, um mundo sem culpa, um mundo de forças em que o único mal é o que nos pode destruir ( e, por isso mesmo, necessário à "higiene" do super-homem).

Irrespirável.


Palácio Farnese (Roma)

Como numa gruta maravilhosa, vêem-se os famosos frescos de Carracci iluminados.

A EFÉMERA MEMÓRIA DA FALTA DE SENTIDO


"Talvez fosse necessário, de uma vez por todas, que se compreendesse que o que tem de ser erradicado são as razões deste sofrimento em que se encontram milhares de crianças, um sofrimento da inteligência, que só aparece nas análises macroscópicas através das consequências que engendra, a angústia da má nota, a desvalorização devida à etiquetagem de "aluno em dificuldade", agravando-se cada ano que passa, para conhecer uma inevitável explosão no colégio. Acompanhada, bem entendido, pela amplificação que não podem deixar de lhe conferir os meios ditos desfavorecidos."

"Si 7=O, Quelles mathématiques pour l'école?" - Stella Baruk)


A autora, professora de matemáticas e investigadora em pedagogia verbera o que julga uma "abdicação do sentido", tradicionalmente ligada ao ensino daquela disciplina, em favor dum simples saber-fazer, do recurso a regras não compreendidas, dum fetichismo dos resultados.

"É espantoso constatar que o modo de ensinar a numeração hoje não é em nada diferente, exceptuados alguns lamentáveis modernismos, daquele dos princípios da escola. Não se propunha, dantes, aos alunos que decompusessem 1 em 0+1, ou 1+0, e até 0 em 0+0." (ibidem)

O uso e abuso da calculadora apenas veio encobrir esse défice de compreensão, desde as operações básicas. "Foi o hábito decorrente da prática que a calculadora fez desaparecer. (...) Não é de admirar, pois, que um procedimento apenas memorizado como regra só fique na memória durante o tempo em que ela for utilizada." (ibidem)

E este "inumerismo" (por analogia com iletrismo), como lhe chama Baruk, é tanto mais dramático quanto vivemos, cada vez mais, rodeados de sinais que é preciso compreender.

Ora, querer compreender é a vocação das jovens inteligências. E o fracasso da escola devia levar os adultos a interrogarem-se "por que é que inteligências bem apetrechadas podem produzir respostas sem sentido." (ibidem)

domingo, 25 de fevereiro de 2007


(José Ames)

HOMÉRICA JUSTIÇA


"Letters from Iwo Jima" (2006-Clint Eastwood)

 

Por que é que, apesar de "Flags of our fathers" ser, incontestavelmente, um grande filme, todos sentimos diante de "Letters from Iwo Jima" que se trata de qualquer coisa de superior?

Não se trata de filmar uma cultura estranha, como em "Nanook" de Flaherty ou "The savages innocents" de Nicholas Ray, com um olhar poético ou etnográfico, porque depois do primeiro filme do díptico, nos encontramos implicados em qualquer coisa que é o contrário da distância do observador. É em nós que um "esclarecimento" dos clichés sobre a guerra tem lugar e, nomeadamente, aqueles que, pela sua abstracção, são os mais assassinos.

Todas as características atribuídas a esse inimigo doutra raça e doutra cultura o reduzem à invisibilidade, à eficácia mortal e ao fanatismo gregário que protegem os juízos sumários.

Em "Letters" é como se se fizesse justiça ao outro, utilizando a mesma atitude compreensiva e o mesmo realismo psicológico que usamos para descrever este lado da trincheira.

Não sei se os japoneses se sentem verdadeiramente retratados neste filme fora de série, mas esta é a mesma atitude que Homero inaugurou falando de Troianos e Gregos em pé de igualdade, ambos os povos mais joguetes das intrigas dos deuses do que realmente culpados.

Que melhor desmitificação do fanatismo nipónico do que a diversidade de comportamentos, do heroísmo à cobardia que aquelas grutas de Iwo Jima presenciaram, ou a do único sobrevivente que corrigiu o general que o elogiava como soldado, dizendo-lhe que, na verdade, era um simples padeiro?

Como a própria trajectória deste general, de amigo dos americanos, antes da guerra, de um irónico informalismo até ao momento do suicídio em que já não se distingue dessa tradição e da sua noção de honra, finalmente parte do povo que é realmente a ara do sacrifício colectivo.

sábado, 17 de fevereiro de 2007


Guimarães (José Ames)

SEMPRE ARGAN


"Le malade imaginaire" de Molière

Confinado à cama por causa dum resfriado, todos os compromissos se desligam. Tudo cessa. Compreende-se que eu seja liberto de tal tarefa urgente. A minha liberdade diminui, retrai-se o meu corpo e a minha vontade. Todas as minhas relações deixam de interpretar os meus actos do modo habitual, e eu nesta carapaça que é o corpo doente tenho tempo e cabeça para pensar na vida.

Mas é preciso antes disso vencer a culpa que se deita connosco. Por muito que a sociedade tenha evoluído, continua a ser o trabalho a fonte principal dos direitos. A baixa não pode livrar-se da suspeita de ser uma coisa imoral. Levados por essa lógica paranóica, gostaríamos de apresentar os estigmas da doença, senão mesmo de deixar ficar o cadáver como prova.

O termómetro funciona como um criador de evidência e de decisão. Não há como o traço de mercúrio na zona perigosa para vencer os escrúpulos. O estado maligno convertido num número! É quanto basta para dizermos a nós mesmos: hoje não vou trabalhar.

A consternação do chefe ao telefone, o tom fúnebre com que todos recebem a notícia, quase reclamam a autenticidade. Depois desse efeito de simpatia, sinto-me na disposição de sofrer o mínimo conveniente.

Depois a família aquece. Protecções antigas desvelam-se ao lado das ressurgências da autoridade pré-crítica. O doente entrega-se a esse papel submisso, com uma óbvia desculpabilização. Os outros são obrigados a responder ao interesse do doente, mesmo que seja imaginário e os actos meramente simbólicos.

Preferimos jogar em todos os tabuleiros quando se trata da saúde. Apesar da prevenção que tenho contra as drogas, não deixo de submeter o organismo a estas deflagrações químicas para me curar mais depressa, ou só para obter um resultado mais seguro.

Assim, nunca sabemos se a saúde volta com o tempo, ou com os métodos tradicionais, ditos suaves, ou se é antes pelos milagres da ciência farmacêutica. Mas a verdade é que curar uma gripe à boa maneira dos antepassados é um luxo a que poucos se podem permitir. Reconheça-se, todavia, que em muitos outros casos é a impaciência e o medo que levam as pessoas a preferir o tratamento pesado.

Metido debaixo duma montanha de cobertores, suo as estopinhas. Diz-se que isso é expulsar a gripe. Mas tudo é magia como este pavor da febre e o seu exorcismo. A causa invisível acaba por não existir. Como se déssemos ordem às forças anti-infecciosas que trabalham no nosso organismo para fazer outra coisa.

O que eu não sou capaz de fazer para me voltar a pôr de pé!...

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

HAVERÁ UMA PRÓTESE DA RAZÃO?


Blackboard by Albert Einstein


"Experiência de Einstein-Podolsky-Rosen (EPR): uma experiência concebida para invalidar a teoria quântica, mas que, na realidade, mostrou que o universo não é local. Se uma explosão envia dois fotões coerentes em direcções opostas, e se o spin é conservado, então o spin de um fotão é oposto ao spin do outro fotão. Assim, medindo um spin, conhecemos automaticamente o outro, embora a outra partícula possa estar no outro lado do universo. A informação propagou-se mais depressa do que a luz. (No entanto, nenhuma informação útil, por exemplo uma mensagem, pode ser enviada desta maneira.)

"Mundos Paralelos" (Michio Kaku)


Não se propagou. Porque se não diríamos também que o pensamento se propaga e ultrapassa a velocidade da luz. O que temos é uma informação a priori, deduzida de uma lei, válida enquanto não for refutada.

Einstein morreu inconciliado com a teoria quântica que considerava apenas uma aproximação satisfatória.

Mas, em face de algumas consequência teóricas dessa teoria, como a dos Mundos Paralelos que, apesar de desafiar a racionalidade, obteve uma razoável aceitação por parte da comunidade científica, pelo menos durante um tempo, é de perguntar se se deve falar em aproximação, no sentido em que se encontra no caminho certo, ou se se trata de uma "muleta" que nos ajuda a caminhar, mas na direcção errada.

E há ainda outra perspectiva. O mundo subatómico, que se rege pela mecânica quântica, tanto quanto sabemos, é contrário ao senso comum, mas pode também não ser conciliável com a razão natural. Daí os seus paradoxos.

Não seria o fim da investigação, nem do progresso da ciência reconhecer isso. Pois, tal como os instrumentos que prolongam os nossos sentidos e nos permitem "observar" o mundo subatómico e intervir nalguns dos seus processos e o universo para lá do que os nossos olhos alcançam, também a razão que, segundo a teoria da selecção natural estará adaptada à macroscópica do planeta e à sua geometria, precisará de criar os seus próprios instrumentos ( e o que são os computadores?).

Portanto, pode dar-se que realmente não consigamos compreender o universo, em todas as suas dimensões, sem, no momento em que o pensarmos nos tornarmos outros e como que apêndices da inteligência artificial.


(José Ames)

O EPITÁFIO DE ÉSQUILO


Batalha de Maratona


"Sobre o que ela (a época) pensou a seu respeito, exprime-se com grande simplicidade o epitáfio escrito para o seu sepulcro: testemunha que a coisa mais alta que na sua vida realizou foi participar na batalha de Maratona."

"Paidéia" (Werner Jaeger)


No entanto, trata-se, nem mais nem menos do que Ésquilo, o grande trágico nascido em Eleusis.

"A criação da cultura ática popular do século V não provém da constituição nem do direito eleitoral, mas da vitória. É sobre ela que assenta a Atenas de Péricles, e não sobre a cultura aristocrática do velho estilo.

(...) Nos Atenienses destes decénios, a quem a forma poética da tragédia se dirigia, achamos qualquer coisa do alto voo e da poderosa força impulsionadora do espírito de Ésquilo, mas também a sua capacidade de renúncia, o seu comedimento e a sua reverência." (ibidem)

Ésquilo é o poeta duma vitória que não se podia atribuir a nenhuma classe em especial, mas a todo o povo. E foi preciso o desafio mortal representado pela invasão persa para criar essa consciência acima das divisões e dos interesses particulares.

O maior dos poetas "renunciou" de bom grado à glória literária para se sentir membro desse povo e "impregnado desse sentimento tão sublime, transpôs os abismos que separam os homens, pelo nascimento ou pela educação." (ibidem)

Esta refundação da cultura fez-se diante do perigo extremo. O que não nos mata torna-nos mais fortes (Nietzsche).

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

A IDEIA E O INSTRUMENTO


"Os Irmãos Karamazov" (1957-Richard Brooks)

Depois de rever uma mediana adaptação dos "Irmãos Karamazov", ficou-me a trabalhar aquela ideia da responsabilidade moral do irmão mais velho, Ivan, o intelectual.

É o bastardo, Smerdiakov, quem comete o parricídio, mas invocando o pensamento do meio-irmão sobre o que seria uma permissibilidade do crime, na ausência de Deus.

Ora, esse é também um dos temas de "Corda", de Alfred Hitchcock. O professor Rupert (James Stewart) é igualmente confrontado com a aplicação prática da sua versão do super-homem nietzscheano por dois dos seus alunos.

Mas Brandon e Philip não têm a motivação do ódio pela sua vítima que Smerdiakov compartilha com Ivan, porque até se vangloriam pelo requinte do seu acto gratuito.

E é por esse seu desejo de ver o pai assassinado que Ivan se acusa, ao contrário de Rupert que, no final, moraliza e se sente na necessidade de se justificar com um distinguo entre o que se diz e o que se é capaz de fazer.


Aviz (José Ames)

JUSTIÇA PENITENCIÁRIA


Franz Kafka (1883/1924)

"(...) E quem as transgredir é castigado, e o nome desse castigo, na nossa cidade como noutras partes, é prestar contas, como se fosse prestar contas à justiça. Perante tais cuidados com a virtude particular e pública, ainda te admiras, ó Sócrates, e pões objecções à possibilidade de a virtude se ensinar? Não há nada que admirar; mais de estranhar seria que ela não se pudesse ensinar."

"Protágoras" (Platão)


Esta ideia de termos de prestar contas não nos remete, pois, para a economia (embora todos sintam a necessidade de boas contas na vida de todos os dias), mas para a justiça, que é uma medida de homem a homem.

É assim que se entende aquele castigo como a reposição de um valor que a nossa injustiça diminuiu.

Mas quando se diz que o corpo é que paga, é porque foi o corpo que esqueceu o estilete da lei na sua pele.

E Kafka imagina, num dos seus contos, uma máquina de punição automática, segundo uma tabela de equivalências entre a falta e os caracteres da pena correspondente a reinscrever na pele, com o que demonstra que a justiça, sem a ideia superior, acaba na mecânica.

Por isso Sócrates objecta.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

A FALTA DE RITMO



"(...) eu sentia aí sobretudo a certeza ou a ilusão que tinham tido esses grandes senhores de serem "mais do que os outros", motivo por que não haviam podido legar a Saint-Loup esse desejo de mostrar que se é "tanto como os outros", esse medo de parecer demasiado pressuroso, que lhe era de facto verdadeiramente desconhecido e que com tanta rigidez e falta de jeito desfeava a mais sincera amabilidade plebeia."

"À l'ombre des jeunes filles en fleurs" (Marcel Proust)


Por outras palavras, a verdadeira educação, ao fazer das considerações de protocolo uma segunda natureza, favorece uma espécie de graça em que o carácter conspícuo e voluntário da consciência está ausente.

É o que diz uma canção conhecida: "guilty feelings have no rythm".

Saint-Loup, não deixando por um momento de ser aristocrata e de ter as maneiras da sua casta, era uma criatura inconsequente quanto às ideias que professava (como os Aiguillon e os Noailles em 1789), mas essa contradição não alcançava a sua consciência.


"Harbour" (José Ames)

O EFEITO BORBOLETA


"Flags of our fathers" (2006-Clint Eastwood)


No meio do caos, a imagem daquele grupo de soldados implantando a bandeira no alto do rochedo de Iwo Jima cristaliza o sentido da guerra.

Não era possível, depois dessa fotografia histórica, deixar de acreditar na vitória, como se o concurso extraordinário de circunstâncias que levou esses militares individualmente considerados à milagrosa composição dum grupo escultórico que se podia admirar, no seu élan e tensão eficaz, sobre o fundo da grande tradição monumental, não pudesse ser obra do acaso e, em vez disso, revelasse o desígnio não se sabe de que deuses de mudar a sorte da guerra a favor dos "nossos rapazes".

Pode-se comparar a história desta fotografia ao efeito borboleta na teoria do caos. Um pestanejar do diafragma da câmara sobre aquela burlesca operação de trocar a bandeira da companhia (para não ser levada como troféu por um qualquer general oportunista), acabou por deflagrar numa onda de patriotismo e de propaganda.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

MO CHÚISLE


"Million dollar baby" (2004-Clint Eastwood)


Em "Million dollar baby", o velho guarda do ginásio (Morgan Freeman), depois do desaparecimento de Dunn (Clint Eastwood), a seguir ao seu acto de misericórdia no hospital, escreve à filha do amigo, para lhe falar do pai que ela persistia em não querer conhecer, devolvendo-lhe todas as cartas.

Em Maggie, a pugilista oriunda do bairro das roulotes e duma família que vivia da assistência social, Dunn encontrou mais do que uma criatura sua, com quem conheceu uma espécie de glória. Ao assistir o suicídio desse ser inviável, foi como se assumisse uma nova paternidade que para sempre os ligasse num mundo mais real do que o real.

Não sabemos se a filha de Dunn o procurou depois. Mas eu creio que o narrador se enganava, julgando o seu amigo à beira do desespero. Ele tinha descoberto o sentido daquelas palavras em gaélico no roupão que deu a Maggie: minha querida, meu sangue (Mo chúisle).


Cordoaria (José Ames)

O SUJEITO DA HISTÓRIA


http://www.michelquereuil.fr/comedie.html


"Talvez se se tivessem entendido e unido, houvessem detido por algum tempo a Revolução. Esta encontrou-os dispersos, isolados, fracos com o seu isolamento. Uma outra causa da sua fraqueza, muito honrosa para eles, é que muitos eram sinceramente contra si mesmos, contra a velha tirania feudal, eram ao mesmo tempo os herdeiros da filosofia do tempo, aplaudiam esta maravilhosa ressurreição do género humano, faziam votos por ela, ainda que isso lhes custasse a ruína."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Até ao Termidor, em 1793, a Revolução durou uns escassos quatro anos. Nenhuma clique teve tempo de se apoderar do Estado e de trair os ideais em nome do realismo político.

Como no teatro, a tragédia precipitou-se no final dos seus vários actos. A palavra teve uma eficácia nunca vista. Como se a política deixasse de ter um discurso próprio e fosse ela a realidade mesma.

A morte do rei é a conclusão de um silogismo assassino. Mas o Terror escapa ao controle dos seus instigadores. O instinto de sobrevivência rebela-se contra a lógica, e a morte dos lógicos, na guilhotina, faz cair o pano.

Michelet é o evangelista dessa Revolução inaugural que inspirou todas as que se seguiram.

Pela primeira vez na História, os actores julgaram terem eles próprios escrito a peça, mesmo os nobres que fizeram hara-kiri na Assembleia Nacional.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

COLONIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA



"A colonização da experiência: Não é por acaso que a televisão pôde ser controlada por um punhado de conglomerados comerciais. Nem é por acaso que foi usada para recriar seres humanos em novas formas, adaptadas aos ambientes artificiais e comerciais. Uma conspiração de factores tecnológicos e económicos levou inevitavelmente a essa situação, continuando a fazê-lo."

Jerry Mander (2º Argumento, em "4 Argumentos para acabar com a televisão")


Não há, evidentemente, um comité anti-público a conspirar a "alienação das massas". Nem o facto, normal no nosso sistema, de existir um controle (que a Internet veio pôr em causa) significa que os que controlam saibam o que realmente estão a fazer, em termos de futuro.

"Em todo o caso, não há dúvida de que a televisão faz o mesmo que a fantasia esquizofrénica, colocando no nosso espírito imagens de realidades externas à nossa experiência." (ibidem)

As imagens substituem-se à visão directa e o conhecimento em pacotes à aprendizagem pessoal.

São verdadeiros implantes, para usar a expressão de Mander, para os quais a ficção científica nos vem preparando.

Ora, a nossa inteligência e o nosso espírito crítico formaram-se na correcção do sensualismo e dos erros de juízo.

Queimar essa etapa significa, simplesmente, descolar do planeta e entrarmos num ambiente programado que tem sempre razão contra nós.


(José Ames)

A REFUTAÇÃO DA MISANTROPIA


"Flags of our fathers" (2006-Clint Eastwood)


A lição desse magistral "Flags of our fathers", de Clint Eastwood, é que não há heróis, no sentido de que ninguém sente que merece tal distinção, talvez porque na ideia de heroísmo esteja implícita a liberdade, inspirada pelos valores mais altos e generosa até ao sacrifício.

Quando, pelo contrário, é o soldado anónimo, qualquer um, empurrado pelas forças à matança que se sente ao mesmo tempo encorajado pelo exemplo dos seus companheiros e responsável por eles e perante eles.

Mas o filme é também uma reflexão sobre a consciência desses heróis involuntários e como o colectivo transforma o paradoxo individual em força militar e de propaganda.

E podemos lamentar, como todo o patriotismo que não se paga com a vida, que os "heróis" tenham sido utilizados para vender os títulos de guerra, outra vez apanhados pelo mecanismo.

Nada mudou desde a guerra de Tróia, e o fantasma de Helena é sempre uma pobre explicação.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

A ARTE DO PILOTO



"Assim, o poder institucionalizado nas comunidades organizadas muitas vezes aparece sob o disfarce da autoridade, reclamando um reconhecimento imediato e não questionável; nenhuma sociedade podia funcionar sem isso (um pequeno, e ainda isolado, incidente em Nova Iorque mostra o que pode acontecer se a autêntica autoridade nas relações sociais for quebrada ao ponto de não poder mais exercer-se na sua forma derivativa e simplesmente funcional. Um pequeno problema no sistema do metropolitano - as portas dum comboio deixaram de funcionar - tornou-se num encerramento grave da linha durante quatro horas e que envolveu mais de cinquenta mil passageiros, porque quando as autoridades do trânsito pediram aos passageiros para abandonarem o comboio avariado, eles simplesmente recusaram).

"On Violence" (Hannah Arendt)


De facto, em circunstâncias como a descrita, as pessoas não podem confiar na opinião dos outros, nem no seu exemplo. Não é uma situação para resolver democraticamente.

Porque é como se estivessem embarcados no alto mar, onde mesmo antes de entrar todos sabem que há uma autoridade a bordo, para segurança de todos. E, como no exemplo que Platão gostava de citar, em caso de tempestade, não se pedem opiniões, nem um saber e uma competência estranhas à arte de pilotar.

É por isso que, pelas más razões, tantos dos que detêm alguma espécie de poder, e nomeadamente nas empresas, gostam de dizer que "estamos todos no mesmo barco".

Por outro lado, não há democracia, por mais genuína e estabelecida, que, em teoria, não tenha de ser preterida numa extremidade.

Mas como o corpo que recupera a saúde, depois de se ter sujeitado a um regime drástico, é desejável que o Estado se desembarace dos constrangimentos que o salvaram. E se a vantagem da democracia é poderem os governados livrarem-se de um mau governante, sem derramamento de sangue (Popper), o perigo das medidas excepcionais é o tornarem-se a normalidade.


Berlim (José Ames)

O OBSERVADOR EXTENUADO


"Profissão: repórter" (1975-Michelangelo Antonioni)


Um jornalista, David Locke, troca de identidade com um morto, num hotel do deserto. Este era traficante de armas e, seguindo os contactos da sua agenda, Locke, na sua nova pele encontra-se com os representantes da guerrilha, mas tem de fugir da ex-mulher e dos amigos que procuram obter pormenores sobre a sua morte repentina. Uma estudante de arquitectura, que conhece na cidade de Gaudi, acompanha-o nessa fuga do passado.

É melancólico ver um filme como este, pela saudade que nos deixa do que já foi o cinema europeu.

E, no entanto, Antonioni parece perdido como a sua personagem.

A jovem (Maria Schneider) fica impressionada com a história do cego que, por causa da fealdade do mundo, se suicidou depois de ter recuperado a visão. Se a psicologia da cena nos parece postiça, não estará aqui a chave do comportamento de Locke?

A sua loucura tem um esboço de justificação quando nos é dito que o morto acreditava na causa da guerrilha. O nosso jornalista, talvez por deformação profissional (efeito de seguir as regras, como naquela entrevista ao ditador africano?) já não acredita em nada.

Mas em matéria de fé não se podem calçar os sapatos de um outro.

A segunda vida de Locke acaba perto de Almeria, noutro quarto de hotel, como se os gestos das personagens não tivessem qualquer realidade e as peripécias da fuga fossem apenas um protelamento da morte desejada.

É o que nos diz, no final, o silêncio daquele terreiro visto das grades da janela, com as figuras à distância, acossadas pela sombra.

Mas nada é explícito. Este cinema fala através de hieróglifos.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007


"Hades" (José Ames)

A SOMBRA DO GUERREIRO


"Kagemusha" (1980-Akira Kurosawa)


Se, de certo modo, Kagemusha não pode ser analisado, é porque o tema do duplo é nele central. Vemos claramente como esse tema decompõe a história sob a lei do simbólico. A “sombra” sentada no alto da colina recupera a bravura do filho legítimo. Como o significante, esse impostor detrás da efígie do senhor da guerra torna todas as acções individuais impossíveis. A sua legenda de “a montanha imóvel” une num mesmo campo de leitura as forças do clã Takeda. O chefe morto é um nome que um pobre diabo incarna até se confundir com ele.

Kurosawa parece querer dizer-nos que o poder é uma metamorfose criada pelo espírito de todos. O verdadeiro Shingui retira-se do seu hieratismo para a individualidade – e ao fazê-lo perde já qualidades, como se percebe pela repreensão do velho que lhe traz notícias do cerco. O seu substituto nos deveres do Estado é menos que um corpo sem fala, como um Shuingui distraído, ele é uma espécie de hieróglifo. A aparência reduzida a uma pose imóvel e aos traços dum rosto impassível é letra original do clã.

A vontade do guerreiro exercida para além da morte funciona com a literalidade dum pacto de governo e dum testamento. É esse vínculo à legitimidade do chefe clânico que torna possível a representação do duplo e que lhe marca um termo. A farsa é contestada por uma criança; insensível à religião do poder e à leitura política, a criança julga a aparência nua. Depois é o animal indomável que atira à poeira o falso dono. Corpo do centauro militar, o cavalo revela-nos a densidade da existência. E a abstracção do poder vivida pelos homens ganha assim a realidade individual e concreta. O senhor não é apenas a face e o gesto, porque toda a natureza denuncia essa falta de raízes humanas. O duplo não pode enganar as mulheres ao expor o corpo. É preciso a partir dessa altura – como se o feminino fosse incompatível com a lealdade à ficção do duplo – pôr fim ao jogo político e celebrar o luto adiado por esses três anos.

Despedido como um cão, mas já sem alma própria, como se as cerimónias e o culto do senhor feito na sua pessoa lhe tivessem comunicado os direitos do morto e o seu espírito; e sobretudo depois da sagração no campo de batalha pela morte da juventude que protegia a figura emblemática, sem ignorar o “conteúdo”, apedrejado pelos soldados que se vingam assim de terem sido ludibriados por uma sombra, o ladrão da realeza percorre o campo de batalha onde o filho de Shingui, para escapar à lei paterna, vai conduzir o exército orgulhoso de outrora ao extermínio. Cioso de criar novos símbolos e de se distinguir em tudo do grande guerreiro, levou a montanha a mover-se, contrariando a letra e o espírito da herança. Os inimigos compreenderam que o clã Takeda estava próximo do fim. Testemunha do desastre, a sombra do guerreiro dissolve-se no lago Suwa com o seu cadáver.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

A FONTE


Sharbat Gula (Steve McCurry)


"Nós esquecemos sempre que elas (a beleza e a felicidade) são individuais e, substituindo-as no nosso espírito por um tipo convencional que formamos fazendo uma espécie de média entre os diferentes rostos que nos agradaram, entre os prazeres que conhecemos, só guardamos deles imagens abstractas que são lânguidas e deslavadas porque lhes falta precisamente esse carácter duma coisa nova, diferente do que já conhecemos, esse carácter que é próprio da beleza e da felicidade."

"À l'ombre des jeunes filles en fleurs" (Marcel Proust)


Aquilo que nos permite responder às situações práticas com um mínimo de reflexão e um máximo de eficiência, ou seja, o hábito e o preconceito, é o mesmo que nos pode condenar à tristeza e a uma vida sem esperança.

É por isso que sair de casa é, quase sempre, um bom remédio para os velhos de todas as idades que pensam terem já visto tudo.


Dresde (José Ames)

NO CAMINHO DE SOLARIS


"Solaris" (1972-Andrei Tarkowsky)


"Ao passarmos a viver em ambientes completamente artificiais, rompeu-se o nosso contacto directo com o planeta, alterando-se o nosso conhecimento do mesmo. Desligados, como astronautas flutuando no espaço, não podemos agora distinguir o alto do baixo ou a verdade da ficção. Estas condições favorecem a implantação de realidades arbitrárias. A televisão é neste contexto um exemplo recente, um exemplo grave, uma vez que acelera grandemente o problema."

Jerry Mander (1º Argumento, em "4 Argumentos para acabar com a televisão")


Mander compara a realidade empobrecida dos ambientes artificiais que alteram a nossa percepção e o nosso conhecimento, à situação descrita em "Solaris", o filme de Andrei Tarkowsky.

No espaço, sem contacto com a natureza, as imagens da memória confundem-se com a experiência actual dos sentidos, a "informação surge toda igual. Torna-se impossível agir de acordo com a informação."

A mulher do astronauta como que ressuscita, naquela estação espacial. E ambos temem o regresso à Terra, por que isso significa uma nova e definitiva separação.

A televisão não começou nada, e é um meio, entre outros, de "colocação em órbita" e de perdermos a realidade.

Em "Solaris", Eurídice é resgatada dos Infernos, mas à custa de tudo se tornar um sonho.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

OBJECTIVIDADE



Um amigo meu perguntou-me se eu punha em causa a objectividade, se não me estava a tornar "idealista" (não disse a palavra, mas acho que pensou nela).

Mas o que é a objectividade senão o acordo da razão entre os homens? A própria ciência baseia-se nesse acordo.

Desde Kant, porém, sabemos que essa objectividade é enformada pelas chamadas categorias transcendentais da Razão humana. Isto é, só experimentamos o que podemos e como podemos.

É possível até conceber-se um outro ser, "algures" no Universo, inteligente de outra maneira ( e não necessariamente mais inteligente), para quem questões como a das 4 dimensões ou das 11 e o problema da origem do Universo e os limites deste no espaço e no tempo não tivessem qualquer significado.

O que é que podemos então conhecer?

E por que é que a "Natureza" havia de nos dotar de uma ferramenta para resolver, não os nossos problemas, mas os de seres como esse?

Não é isto ainda a síndrome do homem criado à imagem de Deus?


(José Ames)

METAFÍSICA



"Pois é esta, na verdade, a principal fonte da nossa ignorância: o facto de que o nosso conhecimento só pode ser finito, ao passo que a nossa ignorância tem, necessariamente, de ser infinita."

"Conjecturas e Refutações" (Karl Popper)


Para Popper, a demarcação entre ciência e metafísica é a possibilidade, ou não, de se testar ou refutar uma teoria.

E a diferença entre uma teoria sobre a origem do universo e o historicismo é que a primeira pode apoiar-se num modelo matemático, ao contrário da investigação histórica.

Mas a que espécie de teste se pode sujeitar uma teoria como a dos Mundos Paralelos? Só o da coerência interna do sistema, quando se introduz um facto novo, não pertinente.

O tempo de validade de qualquer teoria depende do progresso do conhecimento.

Contudo, sobre o problema da origem, as teorias estão condenadas a suceder-se ad infinitum, porque é sobre a essa questão que, necessariamente, temos de ser mais ignorantes, não tendo qualquer proporção aquilo que sabemos com o que nos falta saber.

E, no limite, podíamos imaginar uma teoria que nunca fosse posta em causa pelo progresso científico (que a matemática nunca pudesse invalidar), sem que isso mudasse alguma coisa quanto à prova da sua realidade e ao nosso grau de incerteza.

Mas tem ainda sentido, nesta situação, em falar em Física?

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

AQUECER NÃO É PRECISO


Le Grand Hôtel de Cabourg (Balbec)

"De maneira que nós já não podíamos ter água quente porque Françoise se tinha tornado amiga daquele que a fazia aquecer."

"À l'ombre des jeunes filles en fleurs" (Marcel Proust)


No Grande Hotel de Balbec, a ex-criada da tia Leónia, uma camponesa com os traços da Velha França, como as figuras no pórtico da igreja românica a alguns quilómetros da praia, tinha feito amizades independentemente dos seus patrões.

E se antes de conhecer o homem que aquecia a água, era a primeira a barafustar contra o incómodo e a falta de competência, agora era o que se via.

Moral da história: se a água quente significa aqui a economia e as novas relações entre a criada e o encarregado do aquecimento são já do domínio político, temos nesta anedota o exemplo de que não há economia pura e de que o poder nem sempre está onde se julgava que estaria.


Bastide (José Ames)

A ÓPERA DOS MALANDROS


James Gasndolfini como Tony Soprano

A cereja no bolo da série "Os Sopranos" são as sessões de psicanálise dum brutamontes sensível.

É verdade que este mafioso não é feito duma só peça, nem o seus actos se explicam unicamente pelo gosto da violência ou pelo mau feitio.

Quase nos sentimos tentados a dizer que o desafio dos produtores foi o de banalizar a personagem ao ponto de podermos reconhecer que, na situação dada e sendo as leis do meio o que são, não actuaríamos de modo muito diferente.

A encenação dos problemas de consciência de Tony Soprano e a truculenta relação com a sua "head-shrinker" resumem bem o que está aqui em causa. Uma humanização do gangster que nos revela os novos mecanismos de justificação moral.

E ao monólogo religioso com que se consola e perdoa a si mesmo o old timer, sucede uma espécie de catarse verbal, sem outro apoio transcendental para além do Prozac.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

A CONCÓRDIA


A Tomada da Bastilha

"Os velhos que tiveram a felicidade e a infelicidade de ver tudo o que se fez neste meio século único em que parecem acumular-se os séculos, declararam que tudo o que se seguiu de grande, de nacional, durante a República e o Império, teve contudo um carácter parcial, não unânime, e que só o 14 de Julho foi o dia do povo inteiro. Que continue, pois, esse grande dia a ser uma das festas eternas do género humano, não só por ter sido o primeiro dia da libertação, mas por ter sido o mais alto na concórdia!"

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


A ponto de, derrubada a Bastilha, e com o rei vencido e em estado de choque, se ter proposto uma estátua a esse mesmo monarca em plena praça da Bastilha, que foi votada por unanimidade!

O nosso dia da Concórdia foi o 1º de Maio de 1974.

Também nesse dia, a maioria das pessoas se esqueceu dos seus interesses, da sua família natural ou política, com as ideias ainda por arrumar e as novas alianças por estabelecer, e deu corpo, por uma vez, à ideia utópica duma nação fraterna.

Logo a seguir entrou a economia política, de mãos dadas com o Imaginário.


"Gulliver" (José Ames)

OS NOVOS ARRANHA-CÉUS


http://www.stats.uwaterloo.ca/~cgsmall/trance.jpg


Um programa da BBC revela-nos a existência de mundos paralelos.

O Big Bang não foi então o princípio de tudo. Como poderia sê-lo? Era preciso explicar o que existia antes da grande explosão, os agora chamados universos paralelos.

As revelações não ficam por aqui. Em vez de ser constituído por partículas, temos um universo de cordas com diferentes amplitudes, como na música, e das três ou quatro dimensões passamos para nada menos de que 11.

Três cientistas, numa hora do comboio para Londres, onde iam ver a peça "Copenhague" de Michael Frayn, sobre uma outra disputa entre cientistas, afinaram o modo como tudo isto poderia encaixar.

Enfim, porque parece que é possível construir um modelo matemático para esta complicação de mundos.

Era sabido que a ciência deixou há muito de ser compreendida pelo senso comum, o que é uma consequência de ser cada vez mais abstracta. Não há limite para o que podemos descobrir com instrumentos cada vez mais independentes da forma humana.

O custo desse progresso é estarmos a criar um mundo onde nos sentimos cada vez mais estranhos e dispensáveis.

Esse paradoxo é patente na arbitrariedade aparente de mais uma teoria sobre a origem do universo e, no fundo, sobre a nossa própria origem.

Felizmente que a matemática pode validar a coerência interna dum sistema, mas não a sua existência.