sábado, 31 de dezembro de 2011

(José Ames)

O CERCO




Um livrinho que me chegou às mãos sobre a URSS da década de 50, depois da morte de Staline, veio 'nuançar' a ideia de um regime condenado a falhar por assentar numa ditadura de burocratas incompetentes (tese que devia ser comparada com a da competência dos banqueiros na presente crise). O caso da China está aí como contra-exemplo.

Em 1959, data de publicação da resenha de Jean Marabini, a URSS vivia um momento de optimismo geral (era o tempo em que parecia possível ultrapassar os EUA), com realizações espectaculares em vários domínios e um relativo abrandamento da repressão política. Nada fazia adivinhar a mais célebre das implosões, apenas três décadas depois.

Apesar disso, podemos hoje pensar que foi o próprio triunfo do sistema, e o desenvolvimento económico e social que possibilitou, a ditar o seu destino. As tensões políticas e a questão das nacionalidades tornaram-se problemas incomportáveis fora da ditadura mais estrita. Staline, nessa via, tinha ido tão longe quanto era possível e a experiência não podia ser repetida. Gorbatchev foi o homem que oficialmente abriu uma caixa de Pandora que já tinha sido aberta pelas mudanças na sociedade soviética.

Um dos argumentos mais utilizados pelos que ainda "nāo fizeram o luto" é o de que a queda da URSS se ficou a dever ao que chamam de "cerco capitalista". E é um argumento aceitável se o libertarmos duma certa paranóia. Porque a competição com os EUA, em matéria de armamento e na corrida espacial, representava um peso colossal na economia do país. Mas, ironicamente, o desenvolvimento que esse esforço na realidade travou foi, na verdade, mais uma moratória para o regime.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Vila Viçosa (José Ames)

OS PRINCÍPIOS


(René Descartes)

"(...) a metafísica pode não resolver problemas, mas é necessária para manter vivas as questões do sentido."

(Odo Marquard)


É o mesmo filósofo que afirma que o cepticismo não é "a apoteose da perplexidade; é simplesmente um obrigatório adeus às questões de princípio." ("Farewell to principles")

Isto por uma razão muito prosaica. Não temos tempo para mudar, de acordo com os princípios. Mas podemos ter tradições que tornem alguns princípios congeniais.

Quando rompemos com as tradições, somos levados inevitavelmente ao cepticismo (e à ausência de princípios) se não formos tomados por outra crença.

O homem "desenraizado" da tradição está como "peixe na água" num meio social em que tudo circula, pessoas, ideias e mercadorias.

Se aplicarmos esta ideia de cepticismo a Descartes, o que vemos é o estabelecimento dum novo princípio ( o Cogito ) em prejuízo da tradição.

Perplexidade é que não é o caso. o Príncipe dos filósofos, como lhe chamava Alain, conquistou o mundo moderno com passo militar, mas sem inquietar as catacumbas da razão.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

(José Ames)

LENINE INCOMPREENDIDO



"Em 7 de Março, no VII Congresso do Partido, Lenine anuncia àqueles que o acusam de derrotismo, "uma desforra para breve, quando o Exército do povo tiver aprendido o seu ofício."
("URSS", Jean Marabini)


Uma pausa para respirar era necessária para reorganizar o caos em que a guerra e a Revolução tinham lançado o país. Foi isso que significou a paz de Brest-Litovsk, de Março de 1918. "É o momento em que dezenas de milhões de Russos considera Lenine como um traidor, e em que se forja no segredo das consciências, seja a vontade de emigrar, seja a de retomar as armas."(ibidem)

A locomotiva da Revolução pede mais e mais combustível. Depois do golpe dos "socialistas revolucionários", com o assassinato do embaixador alemão e do atentado a Oulianov, o partido bolchevique reforça a sua posição, tanto no interior como além fronteiras, mas à custa de se tornar o túmulo da Revolução: "dominando os homens, o Partido moldado por Lenine afirma o seu poder abstracto, impessoal. Todos os fundamentos da URSS moderna se encontram reunidos, os quais foram estabelecidos na crueldade e no heroísmo, no desprezo do indivíduo como no sofrimento de todo um povo para a sua própria superação." (ibidem)

A 'posteriori' é demasiado fácil dizer que a empresa estava votada ao fracasso. A longo prazo, sabemos que foi condenado como regime e como sistema mundial, mas, como ideia utópica de justiça universal, isso aconteceu muito antes, logo desde os primeiros triunfos do sistema. Nem é justo desvalorizar o heroísmo e a generosidade dos que se atiraram para a fornalha da "locomotiva". Não foram ingénuos como os que o são quando podiam saber. A Revolução de Outubro, ela própria, é que fez das revoluções futuras uma ilusão perigosa.

Há quem diga que a Revolução Francesa foi a única revolução. Se não se tiraram todas as lições desse fenómeno 'horribile dictu', é porque, supostamente, essa revolução triunfou no regime actual e a sua história é a história do poder (e dos seus esqueletos).

A impaciência dos acusadores de Lenine só prova que não viam tão longe quanto ele o que era preciso fazer para salvar o poder. Marabini  diz que outros tentaram seguir os mesmos procedimentos do chefe bolchevique e falharam, por lhes faltar o apoio popular. Caso para dizer que, também aqui,  o desespero não é bom conselheiro.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Pedroso (José Ames)

ATRÁS DO COELHO BRANCO



"Escolhes a pílula azul e tudo pára. Depois poderás sonhar belos sonhos e fazer o que quiseres. Escolhes a pílula vermelha: continuas no País das Maravilhas e desces com o coelho branco até ao fundo do abismo."

"Matrix" (1999, Larry & Harry Wachowski)




Não há verdadeiras alternativas no mundo da utopia. Aqui o dilema é quimicamente puro. Pílula azul ou pílula vermelha.

O que torna as coisas menos simples ( porque aparentemente saímos do domínio da ficção ), é que, para muitos, o dilema já se põe nesses termos e que o "natural" (contra o que exemplos como esse se inscrevem) não  se encontra em lado nenhum.

No outro dia, vi o filme de Werner Herzog sobre um rapaz que se curou da droga e da bebida junto dos "grizzly" do Alaska. Treadwell, de seu nome, viveu durante uma década a sua alucinação naturalista com os perigosos animais.

Por fim, como ele, no fundo, talvez desejasse, foi comido por um urso solitário.

Também Treadwell tinha escolhido refugiar-se no País das Maravilhas.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

(José Ames)

A PEÇA ERRADA




"Qualquer ciência social que não ensine que as construções sociais racionais são impossíveis ignora totalmente os factos mais importantes da vida social e fecha forçosamente os olhos às únicas leis sociais realmente válidas e realmente importantes."


"A Pobreza do Historicismo" (Karl Popper)



Essas leis seriam as leis do desenvolvimento. Não podemos antecipar o desenvolvimento porque não podemos prever o que é novo, muito menos numa sociedade euforicamente criativa como a nossa.

Imagino (hipótese absurda, é claro) que o ministro das Finanças poderia responder aos keynesianos e aos críticos à sua esquerda que, precisamente, por não ignorar as leis do desenvolvimento social, é que prevê uma saída para a crise que não é inteiramente racional e poderia ainda perguntar quem, quanto ao futuro, se encontraria mais credenciado do que ele próprio?

A moral da história é que serão os factos do futuro, e só eles, a julgar a sua política.

Mas verificar-se-á, provavelmente, este fenómeno curioso: o sucesso terá sido obtido apesar do modelo inadequado (não racional?) e, mais uma vez, como acontece na história dos homens, todos os actores em cena farão parte duma peça que não será aquela que julgavam representar .

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Parque de S. Roque (José Ames)

PARAR PARA PENSAR


(projectglobalgeneration.com)



"(...) é preciso ser indulgente com a juventude, dizia-se ele, tornamo-nos alguém completamente impossível quando nos limitamos a negá-la."


"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)



O pensamento é de Arnheim, o homem que quer conciliar a cultura com o lucro. Na sua posição de homem extremamente rico, isso parece-lhe possível, e até natural.

Não sei se a juventude, ao criar as suas ideias, pode ser "pacífica" em relação ao adquirido pelas gerações anteriores, nem se estas podem permitir-se não serem "impossíveis",  com uma resistência que, essa, sim, parece natural.

Um dos problemas da nossa cultura é que os velhos, até certo ponto, se renderam ao futuro, e cem anos de "ética publicitária" aproximaram essa atitude da quase adulação dos indecisos valores da juventude.

O confronto dos novos com o passado faz parte do nosso processo de adaptação. Mas,  à medida que as mudanças se aceleram, graças ao efeito exponencial sobre as nossas vidas da tecnologia e das comunicações, estamos perto da situação em que os velhos são cada vez mais novos e os novos cada vez mais velhos.

E não se pode parar para pensar...


domingo, 25 de dezembro de 2011

(José Ames)

O PRIMEIRO INDIVÍDUO


Ulisses e Polífemo


É quase sobre-humana esta capacidade de Ulisses. No momento do perigo, temos de confiar mais nos instintos, e a maior parte das vezes nem nos é dado o tempo de reflectir.

Ulisses prefere passar por cobarde, e preparar  as forças e os estratagemas. Nasceu para enganar os mais simples e ingénuos, como Polífemo.

O espírito retira-se para encontrar a ordem e a harmonia, o domínio da linguagem e da memória. Marvin Minsky diz que, no momento em que pensamos, não sabemos como pensamos  e, logo, que não se pode falar duma verdadeira consciência. A comparação com a máquina (embora mais complexa do que todas as que podemos construir) está sempre presente.

O certo é que a abertura ao mundo produz o efeito duma sobre-exposição fotográfica no pensamento "coincidente", o qual tende a transformar-se num epifenómeno dos sentidos. Só pensamos fora da experiência e depois dela (como a Minerva de Hegel).

Ulisses é o primeiro indivíduo (no sentido moderno), antes do individualismo.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Lisboa (José Ames)

O CHOURIÇO




"- Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente, e Carlos que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
- Que raiva ter esquecido o paiosinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma..."

"Os Maias" (Eça de Queirós)




Toda a gente reconhece esta passagem do final do romance. Os dois amigos correm para o "americano", ao mesmo tempo que Carlos declara não valer a pena correr para coisa nenhuma.

De todos os grandes projectos do Maia, e apesar de todos os seus privilégios, contra todos os seus pergaminhos, salva-se o chouriço. A tragédia incestuosa desmoralizou-o completamente, mas a necessidade de recolher ainda o leva a fazer uma corrida.

É o fim de toda uma época. Faz lembrar o mundo provinciano de Tchekov, antes da Revolução. Toda esta gente tem a ideia que merecia mais da vida, mas o que os confirma, pelo contrário, no destino que lhes coube é a sua visível vontade de decadência.

A atmosfera risonha da primeira parte, em que a pena de Eça descobre uma fundamental vacuidade, é a preparação da queda inexorável duma classe social.

Qualquer paralelo com a situação que vivemos hoje é abusiva. Não existem, agora, classes moribundas, nem pergaminhos, nem projectos que se possam dizer da nação ( a não ser, talvez, o duma Europa que o não sabe ser)

Pelo que, parece não haver motivo nenhum para nos sentirmos desmoralizados...

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

(José Ames)

OS VISIONÁRIOS DE SOLARIS

"Solaris" (1972, Andrei Tarkowsky)

 
O desespero de Burton, em "Solaris", de Tarkowsky, por não conseguir transmitir aos "terrestres" a sua experiência ( o seu relatório sobre as suas visões  tornou-se tema de chacota), não é o mesmo do crente no meio dos cépticos ou dos indiferentes.

O filme que ele submeteu ao conselho de peritos que julgou o caso foi o melhor argumento contra a sua versão dos factos. Ele tinha "apenas" filmado nuvens, mas não foram nuvens que vira. A sentença não se fez esperar: influência do campo magnético de Solaris associada a uma depressão psíquica. Ninguém pensou que a humanidade encontrara uma nova fronteira.

Alguns anos depois, perante o impasse do projecto, prepara-se uma nova missão para avaliar a situação. Kris Kevin (um psicológo!) viajará até ao "planeta oceânico", mas ele próprio sucumbirá às alucinações sofridas por Burton.

Podia comparar-se a situação de Burton à do primeiro crente em Deus. Imagina-se que, tal como a linguagem natural não pode ter sido fundada pelo indivíduo, tampouco a religião o pode. O crente, mesmo sozinho, faz parte duma comunidade que não precisa de estabelecer as provas de existência do seu deus, nem criar um facto linguístico novo.

Burton, pelo seu lado, só tem a sua verdade, "verdade em que ninguém crê". E a angústia dessa situação faz dele um exilado da convivência humana. A missão transformou-o num extra-terrestre.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Almada (José Ames)

A "ÚLTIMA" ARMA

"Train to nowhere" (ustrainsnow.com)

 
A relação de forças na CP está em vias de mudar. Os homens que põem a andar os comboios estiveram sempre tão conscientes do seu poder de parar a empresa, (o que é relativamente fácil para um grupo tão pequeno e especializado), que os gestores da CP devem ter tido de contar como despesa corrente cada greve dos maquinistas e a mímica duma resistência pro-forma para se justificarem perante o governo, já que se trata duma empresa pública (ou, mais eufemisticamente falando, duma Entidade Pública Empresarial).

Um sintoma dessa mudança, para além da política austeritária que nos está a ser imposta, foi a interpretação que o respectivo sindicato se viu na obrigação de prestar ( mais para os seus associados do que para o público em geral ) perante o anunciado atraso no pagamento dos salários de Dezembro. Em resumo, em vez de se justificar mais uma greve, tentou-se afastar qualquer hipótese da empresa se encontrar em dificuldade, dando-se como adquirido  que os défices estarão sempre, por natureza, cobertos pelo orçamento do Estado.

Não há nenhuma organização, seja ela a mais necessária e de maior interesse público, como é o caso dos sindicatos, com o seu, devidamente regulado, direito à greve, que esteja livre de ultrapassar um limite que pode ser legal ou de simples bom-senso.

Pois uma coisa a que é difícil resistir é a de usar todo o poder que se tem para obter vantagens para si próprio ou para os seus. Não se espera, por isso, que a força das organizações se auto-contenha virtuosamente. Compete à lei fixar os limites e fazê-los cumprir.

É óbvio que o Estado falhou no caso da CP e que o poder dum dos sindicatos da empresa ultrapassou  os limites do razoável. Em Portugal, os trabalhadores têm tão poucas vezes oportunidade de abusar do seu poder, sendo quase sempre o contrário que acontece, que este exemplo não pode ser edificante para ninguém.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

(José Ames)

LITURGIAS


iconostase

"Assim, tinham criado entre eles uma espécie de simpatia que residia principalmente na forma das suas relações; mas as formas têm influência sobre o interior; e os sentimentos de que são feitas podem de igual modo ser despertados por elas."

"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)


O homem que mima a piedade, sem premeditação, é já piedoso. Alain chamava a atenção para a sabedoria da Igreja que, em vez de pedir a crença, começa por pedir a atitude. É como nos casamentos sem amor que se transformam pela convivência.

Muitos dos ateus que assistem, por exemplo, ao ofício de defuntos são mais crentes do que gostariam de pensar...

Para a Igreja Ortodoxa, o Cristianismo é uma religião litúrgica. Primeiro, louva-se a Deus segundo as formas. A importância da doutrina é secundária. Em comparação, em certos períodos da sua história, a Igreja Católica serviu-se da doutrina como arma de poder e de exclusão.

A força do "serviço", ou "função pública" (leitourgía) vai muito para além da religião. A reunião da família à volta da televisão é um exemplo: ajudou à passagem da palavra para a imagem e à destituição do "pater".

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Leça da Palmeira (José Ames)

FANTOMAS





Daquela vez, na banheira, pensei em Fantomas e no seu crime por sugestão. A vítima, amarrada a uma cadeira, sente fugir-lhe um fio de sangue pelo braço. Uma venda impede-a de perceber que o facínora tinha aberto a torneira de água quente. A via do tratamento pela água para o crime perfeito.

A criminologia do herói de Pierre Souvestre e Marcel Alain é um Kama Sutra. O inspector Jouve, a antítese fraterna, é o factor velocidade. Por sua causa, o bandido imagina os golpes mais audazes e fulgurantes. Há quase uma contiguidade física entre o criminoso e o justiceiro, este falhando o outro por segundos. É a quase metamorfose: O Dr. Jekyll falha o encontro com Mr. Hyde, isto é, consigo mesmo.

Lady Beltham não é uma clandestina, mas uma urna de vidro. Essa figura que se anima pela única vontade de Fantomas é a bela adormecida. Fandor, nome de ressonância eslava, é o comentário do génio. Para não se dissolver na música, a acção trágica cinde-se na fala magistral e no sentimento de assombro.

Fantomas é apresentado como uma criatura diabólica. Na sua natureza, há o insondável do psíquico, organizado como um segredo portador de morte.

A máquina do prazer em Sade é um jogo infinito. A morte, como mostrou Barthes, é contrária à economia do castelo-refúgio. Mas Fantomas tem o mundo debaixo da sua sombra. O seu prazer não olha a gastos. E a morte é o último fetiche duma lógica poética que não põe fim à vida, nem se alimenta da nossa angústia.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

(José Ames)

DAS JANELAS DE OPORTUNIDADE E DE OUTRAS JANELAS



 "Este é um daqueles casos em que o devedor tem poder sobre o credor." 


 (J.M. Keynes, sobre a dependência dos EUA em relação aos seus devedores durante a 1a. Guerra Mundial, citado por  Reinhard Blomert)




O dinheiro fácil corrompe, é certo, porque não tem base económica e gera dependência, como aconteceu connosco que utilizámos esses dinheiro para fomentar as exportações dos países que agora nos querem impor a lei de Shylock, a da libra de carne tirada do nosso corpo.

Tiradas como a do vice-presidente da bancada socialista, que já vê tremer as pernas da Alemanha, são basófias de sapo antes de rebentar. Mas respondem às emoções mais profundas de certos auditórios.

De  Poitiers, lugar duma célebre batalha em que o galo francês perdeu a crista, contra o "Príncipe Negro", no século XIV,    o homem talvez mais odiado por metade de Portugal, cometeu uma "gaffe" política na qualidade de particular, e julgou-se obrigado a justificar-se diante do tribunal mediático. O "frisson" não distraiu ninguém das malfeitorias que estão a ser feitas para o bem de todos.

Mas a frase de Keynes não deixa de ser actualíssima. À medida que a inoperância dos líderes da UE transfere poder para os coveiros do euro ( a que se juntou, por despeito, a "pérfida Albion", com o seu plano de emergência para os súbditos em Espanha e Portugal ), são também mais visíveis as consequências desastrosas para todo o mundo, sem mercê para os próprios credores. E sabe-se por que triste razão as janelas de alguns arranha-céus de Nova Iorque ficaram famosas.

Se este não é um caso que pede a união dos devedores para fazer valer a interdependência de uns e outros, longe de qualquer retórica sobre a virtude e o vício dos povos  (afinal para cada corrompido há sempre um corruptor), resta-nos esperar (sentados) pelos émulos pátrios dos burgueses de Calais que propuseram ao pai daquele Príncipe Negro, em troca das suas vidas, que a cidade fosse poupada.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Varsóvia (José Ames)

A HUMILDADE SOCRÁTICA


khaledallen.wordpress.com


"Se já sabes tudo, não fales,
 mantém-te em silêncio;
 se já sabes tudo, não ajas, mantém-te quieto."

"Uma viagem à Índia" (Gonçalo M. Tavares)




É o que diz a sabedoria antiga. E é como se só o erro e as paixões fossem combustível para o motor da história e para o destino da humanidade.

A planície onde se encontra Er, no mito de Platão, é o lugar onde tudo se repete, e as almas, de facto, não escolhem vida futura nenhuma. Quanto mais se conhece a trama em que nos enredamos, com mais razões nos deparamos para não agir e permanecer em silêncio. Só mesmo a ideia dum Deus pessoal, que acolhemos no segredo da intimidade, podia resolver este paradoxo de não sabermos nada e agirmos como se soubéssemos tudo.  

Não se pode viver, é certo, na quietude e na anulação de todas as nossas forças, enquanto elas existem.

Por isso, a história de S. Francisco ou a de Santo Agostinho são exemplares. Porque primeiro "erraram" abundantemente. E só depois encontraram a sabedoria.

A história de qualquer povo mostra-nos a "malha" em que esse povo é tecido e como a força das suas  ilusões é essencial para qualquer movimento.

A maior das astúcias da razão é a humildade socrática. Saber que não sabemos abre-nos o mundo.

sábado, 17 de dezembro de 2011

(José Ames)

O FOGUETÃO PLATÓNICO

A igreja de S. Simpliciano, em Milão

"Simpliciano elogiou-me por eu não ter tropeçado nos escritos de outros filósofos, cheios de falácias e engano, 'atrás dos miseráveis elementos deste mundo', enquanto que nos Platonistas, a cada volta, o caminho leva à fé em Deus e na sua Palavra."


"Confissões" ( Santo Agostinho)




É o maior filósofo da Igreja que "recupera" para o Cristianismo, um Platão precursor, espécie de Baptista a anunciar a vinda de outro maior do que ele.

Com isso, não fez mais do que outros doutrinários, estabelecendo, 'a posteriori', as origens remotas de, por exemplo, o materialismo.

Mas a teoria das Ideias platónicas, fazendo deste mundo e dos seus "miseráveis elementos" uma aparência da realidade de que só o filósofo que emergiu da célebre Caverna pode ter a experiência "ofuscante" (pois a partir dela fica incapaz de ver o mundo como era dantes - é verdade que recebe, ao mesmo tempo, uma missão de libertar os outros e de se habituar de novo às sombras), é fundamental para a separação entre a Igreja e o mundo.

A Natureza não seria, então, uma epifania, mas um lugar de exílio, e o próprio corpo uma prisão. Com a força de propulsão de um foguetão, a filosofia grega fez descolar um cristianismo incipiente,  para o melhor e para o pior.

Tudo isto é problemático e, de certo modo, exterior ao fenómeno religioso. A prova é que o "dolorismo" e a "morte para o mundo" tiveram o seu tempo, mas são hoje temas menores.

Por isso a influência do platonismo, se dotou a doutrina de alguns dos seus fundamentos filosóficos, condicionou  a vida religiosa num sentido para fora do mundo que não saberíamos  dizer se faz parte da força ou da fraqueza da Igreja.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Cáceres (José Ames)

A MORAL DOS ARQUIVOS


(Helmut Schmidt)

"(...) Penso ser para nós alemães decisivo que quase todos os nossos vizinhos – e para além disso quase todos os judeus no mundo inteiro – se recordem do holocausto e das infâmias que aconteceram durante a ocupação alemã nos países da periferia. Não está suficientemente claro para nós alemães que provavelmente entre quase todos os nossos vizinhos, ainda por muitas gerações, se mantém uma desconfiança contra os alemães."

(Helmut Schmidt, em 4/12/2011, no Congresso do SPD)


O antigo chanceler alemão, a propósito da crise europeia, lembra a verdade histórica e a verdade moral em que a Alemanha surge à pior luz possível.

Sendo o sentimento de culpa uma das molas mais activas da cultura judeo-cristã, Helmut Schmidt, apesar de nonagenário, está certo de tocar uma corda sensível em quem o escutou e em quem o lê.

Se a memória dos homens, com os seus lapsos e a "hibernação" egoísta a que nos habituou ao longo da história, fosse ainda a mesma, o sobressalto moral que pretendeu provocar com o seu discurso de Berlim, tinha algumas probabilidades de acontecer.

Mas a memória dos homens está a passar para todo o género de suportes, para uma "nuvem" que, só ela, deterá o sentido da história, e essa tendência não pode deixar de ser acompanhada por uma alienação, muito diferente da descoberta por Marx. Se um "apagão" geral nos roubar essa memória, é o homem que será "descontinuado".

O chanceler tem toda a razão, mas já não se confronta só com a memória curta dos povos. Como se pode responder identitariamente com um arquivo sem medida humana e com esta nova “insustentável leveza”?