quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

ENTROPIA

Albert Einstein
"(nesse momento, os marxistas colocavam Einstein e a relatividade ao lado do 'idealismo')"

Jacques Merleau-Ponty in "Einstein"

'Materialista' é que Einstein não podia ser. A sua teoria pode ser eficaz em todos os casos conhecidos, mas não resultou da experiência, nem de nenhuma ideia sobre o primado da economia ou das condições materiais de existência.

A sua busca de uma lei única que, em última análise, pudesse explicar o universo, como uma harmonia e não um 'jogo de dados', procede da ideia de Deus mais do que da ciência moderna.

Assim, o mais revolucionário dos físicos teóricos do século XX 'pecou' por pescar em águas metafísicas. E Lysenko, apesar de certificado pela 'ciência soviética', apenas propagandeou teorias erradas que levaram ao desastre na agricultura do seu país.

Claro que o 'instinto burocrático' viu certo. A revolução de Einstein e de outros grandes cientistas, 'libertou o génio da garrafa', para o melhor e para o pior. Enquanto o sistema butocrático tem uma única preocupação: a de se perpetuar e de se tornar mais forte para o mesmo fim. Uma revolução 'já feita' garante a perfeita imobilidade.

Mas a lei da entropia diz outra coisa. Quanto mais um regime se fecha, mais depressa precipita a sua queda...

 

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Sem título

Rua Passos Manuel (José Ames)

 

PATOLOGIAS

"Se a França tivesse um sistema de representação proporcional, a Frente não teria um mas 77 deputados no novo parlamento francês (...), e a esquerda não teria uma maioria parlamentar."


(Tony Judt in "O Século XX Esquecido")

 

Judt escrevia isto em 1997. Dezasseis anos depois, o 'monstro' parece estar prestes a iludir as defesas mais sofisticadas da democracia tal como a conhecemos.

O 'monstro' será outra coisa do que aquilo a que Platão já chamava o 'Grande Animal'? Criatura muito pouco recomendável porque se deixa governar pelo ventre (isto é, o medo e os apetites).

A ideia de Rousseau de que as diferentes opiniões individuais, com os seus desvios, para um lado ou para o outro, os seus extremismos, seriam compensadas no cômputo global, acabando o "Povo" por ter sempre razão (estatisticamente, diríamos hoje) está na origem do voto universal e do progresso da democracia.

É uma ideia muito parecida com a da 'Mão Invisível' de Adam Smith, "Mão" que salvaria, no final de contas, a razoabilidade do mercado.

Não sei se é o caso de invocar a teoria dos 'cisnes negros' de Nassim Taleb para confundir esta ideia ingénua. Mas, de facto, parece que não há nada de garantido - e cada vez mais é assim em tempos acelerados - na eficácia do mercado entregue à sua própria dinâmica ou na justiça (porque é disso que se trata) de uma estatística de massas.

Começando pela defesa das minorias e do direito de oposição, vemos que a democracia tem de ser muito mais - ou muito menos - do que a 'vontade popular'.

Se continuarmos na metáfora zoológica, podemos admitir que o 'Grande Animal' na sua 'assiette', como dizem os franceses, é uma coisa, e quando está com febre ou é atacado por uma doença é outra.

A História já nos deu suficientes exemplos da facilidade com que a democracia abre as portas aos seus inimigos, elegendo vários tipos de 'bigode' - dois dos mais famosos ditadores do século XX tinham esse apêndice capilar. Terá sido por estar doente.

O que parece certo é que para salvaguardar as conquistas da moderna democracia se tem que empregar leis e sistemas eleitorais mais e mais sofisticados (por outras palavras, o legislador tem que ser cada vez mais 'astuto'), para conter a interpretação mais demagógica da democracia.

A França vai, pois, de alterar, mais uma vez, a sua lei eleitoral.

 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

O IMORALISTA

André Gide

 

"O seu mútuo amor é óbvio, mas é um amor sublimado, destituído de comunicação. É a vida de dois estranhos que nunca estão seguros de realmente se compreenderem um ao outro, de se conhecerem um ao outro, e que, no fundo dos seus corações, não têm qualquer comunicação."

(Roger Martin du Gard sobre André e Madeleine Gide, citado por Simon Leys)

Pouco depois da morte da sua mãe, Gide casa-se com a sua prima Madeleine Rondeaux. O matrimónio é, como se diz, 'platónico'. O escritor é 'descomplexadamente' homossexual, o que não o impede de ter a sua única descendência de outra mulher, casada com um amigo, o pintor belga Théo van Rysselberghe.

Martin du Gard foi uma das grandes e mais lúcidas amizades de André Gide. Penalizava-o, neste, a falta de controlo sobre as suas 'pulsões' mítico-sexuais, a sua pederastia e o sacrifício que o seu egoísmo impunha a Madeleine. Mas esta, apesar de tudo, foi considerada pelo réu como o único amor da sua vida. Na sua morte, dirá: "desde que 'Em' me deixou, perdi o gosto da vida e, a partir daí, deixo de manter um diário que só poderia reflectir angústia, desgraça e desespero." Mas sabemos que não foi a sua grande paixão.

A estranheza e a falta absoluta de comunicação, de que fala Martin du Gard, começa em 1917, depois da escapadela de Gide com o seu protegido Marc Allégret para Londres. Uma Madeleine humilhada queima todas as cartas de amor de André ao longo de trinta anos (perda, essa sim, inconsolável para o escritor). Por outro lado, o amigo do casal diz que "o seu mútuo amor é óbvio". O que é que aqui não comunica? O 'eterno adolescente' que existe em tantos homens nunca foi impedimento para o amor feminino. Afinal que 'conhecimento' mútuo pode haver no que é tido pelo mais incondicional dos amores: o da mãe?

Madeleine deixa-se vencer pelo demónio do fatalismo. Desinteressa-se da vida, apressa o envelhecimento. Nas palavras do próprio Gide, "Ela age continuamente como se eu já não a amasse e eu ajo com ela como se me amasse ainda... É por vezes terrivelmente doloroso."

Ambos se iludem, afinal, destruindo um equilíbrio precário. O amor é óbvio, mas como maldição.

 

 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Sem título

Rua da Alegria (José Ames)

 

O MAU GOSTO DE ANTERO

Cincinnatus

"(...) “Eu tenho para falar dois fortes motivos. Um é a liberdade absoluta que a minha posição independentissima de homem sem pretensões literárias me dá para julgar desassombradamente, com justiça, com frieza, com boa-fé. Como não pretendo lugar algum, mesmo infimo, na brilhante falange das reputações contemporaneas, é por isso que, estando de fora, posso como ninguem avaliar a figura, a destreza e o garbo ainda dos mais luzidos chefes do glorioso esquadrão. Posso tambem falar livremente. (...) “A este primeiro motivo, que é um direito, uma faculdade só, acresce um outro, e mais grave e mais obrigatorio, porque é um dever, uma necessidade moral. É esta força desconhecida que nos leva muitas vezes, ainda contra a vontade, ainda contra o gosto, ainda contra o interesse, a erguer a voz pelo que julgamos a verdade, a erguer a mão pelo que acreditamos a justiça”

Antero de Quental ("Bom-senso e bom-gosto.”)

A leitura do primeiro motivo faz pensar. A forma como é enunciado dá a medida do preconceito. Antero sente-se mais independente (independentíssimo), pelo simples facto de se declarar livre de pretensões literárias, para julgar um outro homem de letras, António Feliciano de Castilho, a quem ele pergunta com uma insolência de muito mau gosto: "Sim, exmo. sr. Eu não sei se V. Ex.ª tem olhos para ver tudo isto.” (Castilho era cego, como se sabe).

É o mesmo preconceito que hoje parece favorecer os 'independentes' na política nacional, mesmo quando são apenas dissidentes (oportunistas ou não). Antero, que tem um lugar tão destacado na nossa literatura, não é propriamente 'independentíssimo', como o seria, por exemplo, um analfabeto, o qual, por outro lado, teria muito pouca qualificação para falar de literatura.

Embora se aceitem melhor as qualificações de um 'analfabeto' na política, profissão que, em democracia, deveria estar ao alcance de qualquer um, não é por isso que ele seria mais independente do que um político treinado e membro do 'glorioso esquadrão'.

A independência em relação à política é as mais das vezes indiferença ou voluntário alheamento. Os antigos romanos foram algumas vezes arrancar os seus chefes aos labores da terra que eles prezavam acima dos perigos e da confusão da cidade.

Se quisermos falar em independência no caso de Cincinnatus, por exemplo, não é como a qualidade que garante o melhor juízo e o mais informado, mas a saída de um círculo vicioso do pensamento. Este general romano voltou à vida militar, não por gosto, nem por ambição, mas porque considerava que era esse o seu dever de cidadão. Com isso, o curso da acção mudou, mas não a dependência dos motivos e das circunstâncias.

 

 

domingo, 27 de outubro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

A FORÇA SATÂNICA

Vassili Grossman


"Então, quanto mais severos se tornavam os seus passos, quanto mais pesada era a sua mão, quanto mais obediente à sua violência doutrinal e revolucionária se tornava a Rússia, tanto menos poder ele tinha para lutar com a força realmente satânica da antiguidade escrava."

"Tudo passa" (Vassili Grossmann)

Valdimir Ilyich Oulianov, depois Lenine, apesar de oriundo da pequena nobreza, ambicionava libertar o povo russo da escravatura milenar. Adaptou a teoria marxista para 'saltar' etapas e elevar o seu povo a um pedestal onde brilhasse como um farol para todo o mundo. Os seus dotes de inteligência, firmeza e de organizador potenciaram a força dum partido visionário que emergiu do caos pré-revolucionário.

Parece que era um homem 'simples', delicado para com todos os que não o contrariassem. Então era implacável. Chamar estupor a um ministro seria considerado uma carícia. Não usava das palavras em vão. Tinha o vocabulário da guerra de classes. Os seus olhos perscutadores, olhos de tártaro, não deixavam enganar.

Há sempre, numa crise, uma passagem estreita onde tudo se joga. Lenine foi rápido, genial.

Mas ele não chegou a conhecer toda a extensão do seu gesto. Apesar de ter erguido os caboucos do regime e de lhe ter fornecido a justificação teórica em mais de vinte volumes, teve de passar a palavra, no final da sua vida breve, a um 'alter ego', mais lúcido do que ele, revolucionário quimicamente puro, sem as 'fraquezas' de classe (por que não?) do original.

Grossman, cujo testemunho arrebatador, de escravo prisional, só agora foi traduzido na nossa língua, diz que o grande fracasso de Lenine foi que o mesmo povo escravo que ele queria libertar não mudou nada com a revolução. Senão para se enterrar cada vez mais fundo na obediência ao medo e na passividade. A URSS pôs o primeiro homem no espaço, mas a 'força satânica' da sub-humanidade foi a verdadeira matéria-prima.

Staline bem percebeu que o perigo só podia vir das elites, a começar pela elite que fez a revolução. Daí a nova inquisição e o estado policial.

O êxito ou o fracasso do fundador deve medir-se pelos recuos ou os avanços da 'antiguidade escrava'. Ora, no colapso final, em 1991, onde estavam os cidadãos?

 

sábado, 26 de outubro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

O PAPEL DA FORÇA

Júlio César


"Na Bíblia, os massacres cifram-se geralmente por dezenas de milhar. A exterminação total, num único dia, sem excepção de sexo nem idade, duma cidade de quarenta mil habitantes não é, nos relatos de César, nada de extraordinário. Segundo Plutarco, Mário passeava-se pelas ruas de Roma seguido duma tropa de escravos que abatiam imediatamente quem quer que o saudasse sem que ele se dignasse responder."

"Réflexions sur la barbarie" (Simone Weil)

Simone critica duas opiniões erradas sobre a barbárie. A de que devido "a um demasiado poderio técnico ou a uma espécie de decadência moral" estaríamos a tornar-nos mais bárbaros, e a crença contrária numa "diminuição progressiva da barbárie na humanidade dita civilizada" , perigosa na medida em que "não se procura conjurar o que se crê estar em vias de extinção."

E o pensamento fundamental: "Não creio que se possam formar pensamentos claros sobre as relações humanas enquanto não se puser no centro a noção de força, como a noção de relação está no centro da matemática."

"(...) Eu proporia de bom grado este postulado: é-se sempre bárbaro em relação aos fracos."

Por isso Simone não considera o Estado nazi um exemplo da barbárie, mas de civilização, de baixa civilização, que ameaçava a independência de vários países da Europa.

Talvez seja instrutivo, a esta luz, ler o comportamento da super-potência e verificar como o fim da situação bipolar pode ser um perigo para uma civilização digna desse nome.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

DOGMÁTICA

"Trindade" de Dürer

 

"Deus é a verdade... Não perguntes o que é a verdade; porque imediatamente a escuridão de imagens corpóreas e nuvens de fantasmas se atravessarão no teu caminho e perturbarão a calma que à primeira cintilação te inundou, quando eu disse verdade."

"De Trinitate" (Santo Agostinho, citado por E. Cassirer)

É como em certas parábolas do budismo, em que o mestre, em vez de responder directamente à pergunta do discípulo, o confronta com uma questão 'ao lado', ou com um dito aparentemente absurdo, remetendo-o para a falta de sentido da pergunta.

Já que Agostinho escreve sobre a Trindade, detenhamo-nos aqui. Um dogma, coisa horrendíssima para a nossa época, é muito parecido com a interdição das perguntas que o santo recomenda quando a palavra 'acende a luz'.

Mas o dogma é um escândalo para o pensamento livre, diante do qual nada do que existe pode furtar-se ao escrutínio da razão, pensamento que acredita, contra Kant, que poderemos saber tudo, que o real, por detrás das aparências, é um caminho sem fim, tão infinito como a nosso desejo de conhecer.

Ora, Kant não tem razão se o seu agnosticismo for apenas sensato. Porque ele não nos livra da ilusão: a de julgarmos que conhecemos os nossos limites, principalmente. Parece que vemos aqui a proposta de reduzir a nossa mundividência à vida rigorosamente cronometrada do pensador de Königsberg.

Precisamos, talvez, de nos iludirmos sobre aqueles limites para nos ultrapassarmos a nós mesmos. E, pelo menos no Ocidente moderno, não nos coibimos de fazer perguntas absurdas.

Por outro lado, a dogmática 'profana' não tem cessado de proliferar. Não tendo a sociedade, porém, os órgãos com que a Igreja se dotou, os dogmas têm vida curta. Morrem, geralmente, durante a crise que provocam.

 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Sem título

Campanhã (José Ames)

 

NÃO HÁ SISTEMA

(José Ames)

"- Se as próprias enfermeiras estão paradas por falta de sistema!"

Assim se lamentava uma das empregadas da secretaria do meu posto de saúde diante dos utentes (neste caso, candidatos a utentes, porque não havia nenhum serviço que pudessem utilizar), velhos na maioria, resignados com os caprichos do 'sistema'.

Ninguém fala desta outra frente de ataque à 'saúde pública' que actua por embolização dos meios informáticos. Fez-se a organização depender dos computadores e agora deixa-se tudo entupir por falta de assistência ou de renovação do equipamento. Comparadas com isto, as clínicas privadas pertencem ao primeiro mundo, onde tudo é limpo, polido e conectado. As falhas do sistema são raras e depressa remediadas. A saúde privada sabe que só pode baixar os seus padrões de qualidade (e subir os seus lucros) quando o Estado tornar irreconhecível, para pior, evidentemente, o que já foi a saúde pública.

Há a luta contra o 'sistema' que é a de todo o esquerdista que se preza. O facto da Direita ter também na mira os seus sistemas não nos deve admirar. O que a Direita não tem é "o" Sistema, porque ele está só na cabeça das pessoas, ou, para os crentes, algures no futuro. Por isso ela está mais do lado de Pança do que do de Dom Quixote.

Simon Leys diz que o Cavaleiro acabou por converter o Escudeiro, o que redundaria na superioridade moral daquele.

Fora dos anti-romances de cavalaria, porém, a luta entre as duas culturas políticas é de sempre e, por princípio, não pode haver conversões.

 

 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

A FORMA HUMANA


"Diz que é preciso conhecer a criança para a instruir [...], eu diria antes que é preciso instruí-la para a conhecer. [...] É ensinando-a a cantar que saberei se tem jeito para a música."
(Alain)

Não é o que mostra o caso da criatura encontrada nos bosques do Aveyron, no filme de François Truffaut? Quaisquer que tenham sido as potencialidades humanas do ser selvagem, só as começamos a conhecer depois da sumária instrução do dr. Itard e dos primeiros rudimentos da linguagem que, neste caso, nunca poderia ser mais do que um pobre substituto da língua materna.

O ponto de vista moderno começa pelo outro lado. Parte-se do princípio de que a criança, se não nasceu com os dotes, os adquriu antes de chegar à escola. Como? Pela sua capacidade de interagir com uma ferramenta inteligente. É como se a língua materna cedesse, logo nos primeiros anos, a uma linguagem artificial, mais atractiva e mais universal. Os écrãs fascinam o prqueno ser, e ele depressa 'sabe' mais do que os pais e os professores nessa nova língua.

Na atitude envergonhada de muitos pais em relação ao seu 'atraso' tecnológico, em comparação com os filhos, temos uma das fontes da desorganização da família e da autoridade de pais e professores. Essa atitude significa, na verdade, que já 'cederam' o passado cultural que eles próprios herdaram, em nome dum 'homem novo' que começa por fazer 'tábua rasa' desse passado.

O 'homem novo' está a remeter para o museu de história tudo aquilo em que se fundamentava a escola que sempre conhecemos. Ele não precisa da disciplina das filas de cadeiras, com um mestre-vigilante que o prepare para o emprego sentado, ou preso a um lugar, do antigo terciário. É mais radical ainda do que os velhos marxistas que desqualificavam a memória e os mitos sociais, para exaltar, em vez dos heróis individuais, as forças e a economia, "a última instância".

A lição de Alain tem a ver com a 'forma humana'. Já não estamos aí. Demos um 'salto quântico' no desconhecido.

 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Sem título

Matosinhos (José Ames)

 

QUESTÕES DE ESTILO

"Numa entrevista completamente autocentrada, e construída sobre a imagem do líder decidido e inabalável ("nunca me fui abaixo"), aquilo que sobressai, como uma obsessão, é o action man que só caiu porque foi traído e só não salvou o país porque não o deixaram. Que Sócrates pense isso de si próprio, não chega a espantar - como canta Caetano, "Narciso acha feio o que não é espelho". O que espanta é ele continuar a ter uma vasta corte de fiéis, que certamente não o seguem por causa das suas ideias (quais são?), mas sim porque continuam fascinados com o seu estilo enérgico, desbocado e autoritário."

(João Miguel Tavares no 'Público')

O ódio a José Sócrates reparte-se bem entre a direita e a 'verdadeira' esquerda. Gostava de pôr ao contrário a questão levantada por JMT.

Não há dúvida que quaisquer que tenham sido os erros da sua governação, e qualquer que tenha sido a justificação da campanha que lhe foi incansavelmente movida, enquanto foi primeiro-ministro, outros vieram a seguir, com muita vontade de fazer, que tanto ou tão pouco fizeram que, em comparação, o Narciso de JMT merecia um juízo mais equitativo. É, pelo menos, o que diz o ditado: "Atrás de mim virá quem de mim bom fará."

Mas não. A 'ferida' continua aberta. E, me parece, que mais depressa Passos teria direito a uma segunda oportunidade do que Sócrates.

Ora, se não nos devemos deixar enganar pela arte do ex-primeiro-ministro (tudo parece pensado para produzir um efeito mediático, para, neste caso, 'reconstruir' uma imagem vandalizada), tampouco temos motivo para nos surpreendermos. Trata-se de legítima defesa (outros não esperariam por ter cumprido a sua 'travessia do deserto'). A Direita construiu nos media a horrenda quimera que é para tanta gente a figura de José Sócrates. Com "o seu estilo enérgico, desbocado e autoritário", não podíamos esperar que ele não espreitasse a sua oportunidade.

Mas voltemos ao fascínio, não dos que apoiam o homem, mas daqueles que querem fazer passar a imagem do político execrável que as sucessivas campanhas fizeram dele. Providencial culpado para os coveiros da nação, que, apesar de tudo o que aconteceu depois, mantêm a sua vela acesa a um demónio que 'veste Prada', 'playboy' e verdadeiro 'macho político', nas palavras do jornalista. É curioso que JMT pergunte pelas ideias de Sócrates. Mas a verdade é que nem com uma lanterna as encontraremos na política portuguesa (ou têm século e meio). José Sócrates, por desgraça, não é diferente, e está muito bem acompanhado por essa Europa fora.

Para concluir, talvez o entrevistado de Clara Ferreira Alves tenha acertado na 'mouche', quando disse: "Eu sou o chefe democrático que a direita sempre quis ter." Desdenham-no porque o querem comprar"?

Isso explicaria tambėm por que é que esse estilo causa tanta urticária a uma certa esquerda.

Mas, ao dizê-lo, é bem verdade que ficamos sem saber no que realmente pensa José Sócrates.

 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sem título

Invasão do campo (José Ames)

 

PARA ALÉM DE "LA LUNA"

Bernardo Bertolucci


Lorenzo (Jacopo Antinori, com algo do olhar demoníaco do herói da 'Laranja Mecânica'), um adolescente de 14 anos em edipiana atracção pela mãe que se 'esconde' dos outros, mergulhado nos seus 'headphones', decide passar uma semana, alegadamente a fazer ski, refugiado na cave do prédio em que habita. Aí o vem a descobrir a meia-irmã drogada, Olívia (Tea Falco), com quem conhece uma grande intimidade. Prometem um ao outro mudar de vida, mas antes de se separarem e Lorenzo pôr termo às suas 'férias na neve', Olivia retoma, sem o irmão saber, o caminho da auto-destruição. Ele próprio regressa ao 'submarino' musical nas últimas imagens.

Não é um filme tão dependente como "La Luna" (1979) das premissas freudianas. Bertolucci amadureceu a ideia e a tese psicanalítica perde a sua necessidade. Talvez o célebre conflito de Édipo ocupe, ilegitimamente, um lugar real. Mas está em vez de outra coisa que não interessa muito conhecer do ponto de vista dramático. Que esse conflito tenha sido 'substituído' por um quase-incesto sororal mantém a história num dos temas preferidos do realizador. Com a grande vantagem, porém, de Bertolucci já não nos querer chocar.

A ideia psicanalítica é cada vez mais um 'operador' da narração, como o foi em 'Spellbound' de Hitchcock.

Se vier, por isso, a ser considerado daqui a alguns anos como um fime 'datado', sê-lo-á injustamente.

domingo, 20 de outubro de 2013

Sem título

Campanhã (josé Ames)

 

OS HIERÓGLIFOS DO PASSADO

Marcel Proust


"Cada dia que passa dou menos valor à inteligência. Cada dia me dou mais conta de que é fora dela que o escritor pode retomar alguma coisa das nossas impressões passadas, quer dizer atingir algo dele mesmo e a única matéria da arte. O que a inteligência nos dá sob o nome do passado não tem nada a ver com ele."

"Contre Sainte-Beuve" (Project de préface) de Marcel Proust

E como poderia a vida passada ser objecto de dedução? Não, não, a memória do que vivemos só pode ser "libertada" por um novo olhar sobre esses objectos que, eventualmente, tiveram uma parte insignificante na emoção passada e que, precisamente por isso, foram esquecidos pelos interesses do presente (incluído o de oblívio), mas que conservam intacto um eco do passado.

Este método, utilizado por Proust na "Recherche" está muito mais próximo da psicanálise do que da arqueologia.

E também aqui o sentido que se dá à interpretação prevalece sobre a verdade.

sábado, 19 de outubro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

O ESPÍRITO JESUÍTICO

 


"Depois de vários meses de aplicação a todo o instante, Julien tinha ainda o ar de pensar. O seu modo de mexer os olhos e de trazer a boca não anunciava a fé implícita e pronta para tudo crer e tudo sustentar, se preciso fosse pelo martírio. Era com raiva que Julien se via suplantado nesse género pelos camponeses mais grosseiros. Havia boas razões para que eles não tivessem o ar pensativo."


"Le Rouge et le Noir" (Stendhal)


Um homem de génio, mas sem vocação, no meio dos boçais seminaristas de Besançon, apostados em imitá-la, obedecendo "como um pau entre as mãos" do santo padre, para fugir à enxada e "obter um soberbo lugar, em que mandarão como um chefe, longe de qualquer controle."

O espírito jesuítico tem aqui a sua plena demonstração.

A hipocrisia continuada acaba por dar os seus frutos e moldar o interior pelo exterior.

E até o abade Pirard, no entanto suspeito de jansenismo, se surpreende com a dúvida do seu amigo Chélan sobre a sinceridade do seu protegido.

Para que é precisa a sinceridade? Basta a obediência.

Como grandes missionários que foram, os jesuítas tiveram que simplificar a psicologia.

 

 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Sem título

Jardim Botânico (Porto)

 

QUEDA NO HIPERTEXTO

"After Hours" (1985-Martin Scorcese)


A lógica do sonho conduz o herói de "After Hours", no brilhante exercício de Scorcese.

O mostrador do relógio vem repetidamente lembrar que se está a passar uma barreira, a partir da qual reina o insólito e todas as coincidências se tornam consistentes (como dizia Arendt, a propósito do totalitarismo).

É, de resto, a impossibilidade de estancar as coincidências que faz este jovem "word processor" perder o pé no hipertexto da realidade.

Ao contrário do pesadelo, a vida é um filme que pára se fecharmos os olhos e nos conseguirmos abstrair dele.

 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Sem título

Poluição (José Ames)

 

DE CRISE EM CRISE

http://www.galizacig.com


"Segundo o director do FEEF, Klaus Regling, citado numa nota hoje divulgada, a extensão das maturidades concedida a Irlanda e Portugal “irá reduzir as suas necessidades de refinanciamento no período pós-programa” de assistência e “irá aumentar a confiança dos actores dos mercados, protegendo assim Irlanda e Portugal de riscos de refinanciamento”.
Jornal Púbico de 24/6/13 (Lusa)

Palavras, sem dúvida. Assim, o jovem Hamlet se dirige ao velho Polonius que em vez da sabedoria da sua grande idade não tem mais do que a 'maturidade' do príncipe (se como o caranguejo pudesse andar para trás).

As palavras levaram uma grande volta. Não é indiferente que a palavra maturidade seja associada aos prazos da dívida. Tal como a publicidade que 'assujeitou' a poesia e a arte em geral, desvalorizando-as, como fazem os elevadores ou os telefones com a música clássica, a "Economia", mais subrepticiamente, vai convertendo as nossas vidas na narrativa do défice. As crises do sistema são a nova incarnação do destino, o que nos distrai, passavelmente, da realidade...

 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Sem título

Braga

 

A CAVERNA DA PITONISA

"Para ele, falar era uma maneira de satisfazer um desejo violento e esgotante. No mesmo momento, o fenómeno da sua eloquência tornou-se para mim mais compreensível. Os oito ou dez últimos minutos dum discurso assemelhavam-se a um orgasmo de palavras."

Ernst Hanfstaeng (chefe de imprensa do partido nazi)

Hitler era o homem indicado para provocar a grande histeria das massas. As suas palavras e o tom em que as vociferava tinham o seu quê de narcótico e de hipnotizante.

A pitonisa na sua caverna vem-nos à ideia diante das imagens do grande comício de Nuremberga.

O encontro improvável entre a alma germânica e o 'insecto raro' que a devia inocular, como em Proust, no pátio dos Guermantes, foi fecundada a orquídea exótica, podia, de facto, não ter acontecido.

É outra versão da ideia do 'nariz de Cleópatra' referida por Pascal.

Não são as consequências lógicas que escrevem a história, mas a singularidade dos encontros e dos desencontros.

 

 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

EUNUCOS

 

(Babilónia, segundo David Griffith)

O eunuco não pode regressar. O déspota precisa do sexo dos outros para estabelecer o seu poder sobre a vida e a morte. Que há de tão importante no corpo das mulheres e dos castrados para ter um significado tão profundamente político? Um poder sobre os homens nunca é tão definitivamente expresso como no harém. Pela castração, o corpo é marcado para sempre como objecto do senhor, e o sujeito torna-se um homem sem língua, isto é, sem poder de resposta. Quanto à mulher no palácio, é o número mesmo que a desvaloriza. Ela é verdadeiramente um castrado, menos por razões anatómicas, do que pelo pensamento do gineceu. A concubina entre as outras nem sequer é uma mulher. O harém é um jardim ginecológico. O que aí se perpetua como espectáculo é a confiscação do poder de fazer filhos.

Cambises pode mandar assassinar toda a sua prole. Ele próprio é a imagem da sociedade escrava. Nenhuma humanidade lhe é permitida. Nenhuma sabedoria. A liberdade pode dar-se a um escravo, a uma concubina refractária, mas eles não se tornam livres por isso. Como o eunuco, estão marcados. A castração é irreversível, como as metamorfoses do corpo e o envelhecimento. A tortura é uma “distorção” do mundo e do pensamento.

Portanto, o escravo é ainda escravo doutra maneira. Mas pode pensar-se, esquecer. A verdadeira oposição é interior. De nós para nós. A liberdade não é um estado. Não se concede. Não se conquista como um forte. O escravo sem senhor, somos todos quando a primeira luz do espírito nos faz erguer sobre a natureza. O corpo, eis a memória que é preciso pensar. Este depósito misterioso do universo que se transforma em sonho e realidade. Como é que ele nos faz pensar? Os outros estafetas do fogo sagrado, esperam o corpo para fecundá-lo. E de cada vez é preciso aprender a fugir do harém e a escapar às garras do animal triste.

Alguns eunucos chegaram ao mais alto poder e a sua vingança como que triunfou. Mas o corpo do eunuco tem todas as paixões. A própria genitalidade deve exprimir-se noutro lugar, sob outra forma. Mas é tão forte o preconceito e a imaginação que esse mutilado me parece menos do que um homem sem uma perna ou um maneta. Aqui não é o corpo que falta, mas o símbolo e a palavra.

 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Sem título

Campo 24 de Agosto, Porto

 

GRAVIDADE

"Gravity" (2013, Alfonso Cuarón)

A gravidade, que é o título do filme, é também a personagem principal?

Podemos pensar isso porque toda a história se passa no espaço a menos de um Portugal posto de pé. Depois, o 'milagroso' regresso à terra, à gravidade, é realçado pelo pisar dos pés (do tamanho do écrã) de Sandra Bullock e do erguer das colunas poderosas das suas pernas. Assim, como um herói, à Schwarznegger.

A música triunfal doutra 'guerra das estrelas' vem por acréscimo, é esperada, como aquele punhado de lama que agarra a escapada do 'espaço' ("I hate space"). Não nos livramos de cavalgadas de valquírias.

O final, de facto, arruína todas as belas cenas com o 'planeta azul' por fundo, ou o grande vazio silencioso onde se perdem os escafandros brancos.

O começo é uma saída para reparar as comunicações, com um diálogo bem humorado com Houston. Mas logo é lançado o alarme sobre uma tempestade de destroços de um satélite russo que se avizinha. A partir daí tudo corre mal. O próprio Matt (Clooney) se deixa perder no vórtice. Está-lhe destinado um regresso virtual para dar ânimo a Bullock.

No final de contas, mais um 'western', com o seu herói solitário. É o que os americanos sabem fazer melhor.

Ficam as cenas no espaço, a dança dos artefactos humanos que se escangalha, infalivelmente, a interpretação de Bullock e a fotografia.

 

domingo, 13 de outubro de 2013

Sem título

 

DA TRISTE FIGURA

Dom Quixote
"Porque ele obstinadamente recusou ajustar 'a imensidão do seu desejo' à 'pequenez da realidade', estava condenado a um perpétuo fracasso."
(Miguel de Unamuno, citado por Simon Leys in "Tha hall of uselessness")

Aquelas palavras referem-se a Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura. Leys emparceira com Unamuno e muitos outros na crítica dirigida ao autor, que fez tudo para tornar ridícula a sua criação, na verdade, um símbolo da verdadeira fé. É como se Cervantes não estivesse à altura da sua personagem...

Parece que não há nada a fazer. O maior dos filósofos teve uma sorte parecida, visto que só é lembrado na linguagem corrente pelo adjectivo platónico, para significar o amor que não se consuma, que não sai da esfera do ideal, características que hoje são distintivas da frustração e do malogro.

Quixotesco, pelo seu lado, remete para alguém fora do seu juízo, perdido, não na 'imensidão do seu desejo', mas encarcerado na sua lamentável loucura. O desfecho do romance parece dar razão aos 'ajuizados', aos que se conformam com o estado do mundo, e o próprio fidalgo, na hora da morte, 'reconhece os seus erros'.

Donde vem então a universal admiração por esta figura anacrónica, que confunde moinhos com gigantes e persevera em tratar uma pobre camponesa como a mais bela e merecedora das damas?

Não existe, infelizmente, um quixotesco 'positivo' (nem a palavra o consente; quixotesco rima com grotesco e outros epítetos pejorativos). Não deixa de ser verdade que grande parte das acções 'nobres', desde o princípio votadas ao insucesso, se aparentam à espécie de loucura de Dom Quixote.

Segundo Simon Leys, o fiel escudeiro, Sancho, "não acreditava naquilo em que o seu mestre acreditava, mas acreditava no seu mestre." Pelo que Sancho foi 'convertido', não pelo fidalgo trocar gigantes por moinhos, mas pela sua fé.