segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O MAU GOSTO DE ANTERO

Cincinnatus

"(...) “Eu tenho para falar dois fortes motivos. Um é a liberdade absoluta que a minha posição independentissima de homem sem pretensões literárias me dá para julgar desassombradamente, com justiça, com frieza, com boa-fé. Como não pretendo lugar algum, mesmo infimo, na brilhante falange das reputações contemporaneas, é por isso que, estando de fora, posso como ninguem avaliar a figura, a destreza e o garbo ainda dos mais luzidos chefes do glorioso esquadrão. Posso tambem falar livremente. (...) “A este primeiro motivo, que é um direito, uma faculdade só, acresce um outro, e mais grave e mais obrigatorio, porque é um dever, uma necessidade moral. É esta força desconhecida que nos leva muitas vezes, ainda contra a vontade, ainda contra o gosto, ainda contra o interesse, a erguer a voz pelo que julgamos a verdade, a erguer a mão pelo que acreditamos a justiça”

Antero de Quental ("Bom-senso e bom-gosto.”)

A leitura do primeiro motivo faz pensar. A forma como é enunciado dá a medida do preconceito. Antero sente-se mais independente (independentíssimo), pelo simples facto de se declarar livre de pretensões literárias, para julgar um outro homem de letras, António Feliciano de Castilho, a quem ele pergunta com uma insolência de muito mau gosto: "Sim, exmo. sr. Eu não sei se V. Ex.ª tem olhos para ver tudo isto.” (Castilho era cego, como se sabe).

É o mesmo preconceito que hoje parece favorecer os 'independentes' na política nacional, mesmo quando são apenas dissidentes (oportunistas ou não). Antero, que tem um lugar tão destacado na nossa literatura, não é propriamente 'independentíssimo', como o seria, por exemplo, um analfabeto, o qual, por outro lado, teria muito pouca qualificação para falar de literatura.

Embora se aceitem melhor as qualificações de um 'analfabeto' na política, profissão que, em democracia, deveria estar ao alcance de qualquer um, não é por isso que ele seria mais independente do que um político treinado e membro do 'glorioso esquadrão'.

A independência em relação à política é as mais das vezes indiferença ou voluntário alheamento. Os antigos romanos foram algumas vezes arrancar os seus chefes aos labores da terra que eles prezavam acima dos perigos e da confusão da cidade.

Se quisermos falar em independência no caso de Cincinnatus, por exemplo, não é como a qualidade que garante o melhor juízo e o mais informado, mas a saída de um círculo vicioso do pensamento. Este general romano voltou à vida militar, não por gosto, nem por ambição, mas porque considerava que era esse o seu dever de cidadão. Com isso, o curso da acção mudou, mas não a dependência dos motivos e das circunstâncias.

 

 

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