terça-feira, 28 de novembro de 2017

(José Ames)

A DEMOCRATIZAÇÃO DA ARTE



"Enquanto a massa se volta para aquilo que é reconhecido como tendo valor cultural e, do mesmo passo, o desvaloriza, a estratégia própria à economia cultural consiste em compensar essa desvalorização dos valores culturais pela valorização do que é destituído de valor. É por isso que a valorização do que é destituído de valor é tanto um sinal de democratização da cultura quanto de resistência a essa democratização."
"Du Nouveau" (Boris Groys)

A partir do momento em que o consumidor de arte pode dizer: "Isto também eu fazia!", com o que culmina realmente a democratização, tanto na produção como no consumo de arte, parece evidente que não existe um valor intrínseco, escondido nas obras de arte que se trataria de decifrar ou revelar.

Groys diz também que "a pretensão de uma actividade criadora espontânea a partir do nada parece ingénua." Quer dizer, que o acervo histórico das obras de arte, todos os museus e bibliotecas, são, cada vez mais conscientemente, o necessário ponto de partida para a inovação. Situação que nos faz pensar na antiga escolástica, quando a citação e o comentário do comentário eram tudo quanto se podia esperar em termos de originalidade.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

(José Ames)


A FÉNIX SEM MEMÓRIA

(Buda gigante de Bamyán)


"Tomemos como exemplo os primeiros cristãos. Eles abandonaram a cultura pagã e foram para os desertos, para o espaço mais profano da sua época. Esta partida pode ser interpretada como uma destruição simbólica da cultura. No fundo, o eremitismo cristão é uma inovação que revaloriza o profano e desvaloriza os valores estabelecidos."

"Du Nouveau" (Boris Groys)

A gruta dos eremitas vai adquirir "mais valor do que os valores mais antigos. No decorrer do tempo, constroem-se nesse lugar igrejas cada vez mais sumptuosas, ornadas de frescos e de oferendas votivas. Mas são sempre as relíquias do santo homem que constituem o maior valor, assim como um pequeno número de coisas simples, quotidianas que ele utilizou - o ready-made da sua santa vida, se quisermos."

Os talibãs que destruíram os Budas gigantes de Bamiyán não acabaram com uma real ou suposta idolatria, apenas transferiram o valor dessas estátuas para a cultura kitsch do proselitismo islâmico. E se tivessem "world enough and time", no próprio lugar da destruição, simbólica ao mesmo tempo que real, veríamos erguer-se o templo ou o museu dos novos valores.

Por muito crua que nos pareça esta "transvaloração", se pensarmos no que o Cristianismo fez aos mais belos templos pagãos, alguns dos quais sobrevivem como cativos, sob a forma de uma coluna e do seu capitel, integrados na nave da catedral, concluiremos que a história não nos conta outra coisa.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

(José Ames)

O LAÇO VIVO

(Man Ray)

"Podemos descrever sumariamente do seguinte modo a percepção do corpo de outrem:

a) nunca é objectiva. Não há percepção "tal qual" do corpo de outrem. A menor vibração do afecto faz variar os elementos objectivos do corpo percebido (estatura, forma, cor, etc.). Ora, como a percepção do corpo implica sempre uma relação afectiva, estas variações nunca se detêm. (...) Não há um sujeito aqui que perceba ali um corpo, mas um laço vivo de forças constituindo o solo sobre o qual se ergue a percepção das formas;
(...)
b) não é subjectiva. Porque este "objecto" percebido é sempre outro porque inapreensível do interior; o exterior resiste, é ele que esquematiza o meu/seu interior, é ele que impõe uma forma e uma materialidade à percepção."

"A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções" (José Gil)

Está aqui delineada uma teoria da física paradoxal do corpo a corpo (Gil chama-lhe metafenomenologia). Que explica as perturbações da linguagem no campo da nudez, o terror que pode provocar o corpo que passa a ser a órbita do rosto e não o seu "suporte" e, evidentemente, o desejo, como rapto da afectividade, sem distância para as palavras.

No corpo, tudo é expressivo (Cunningham, citado por José Gil). Ao contrário da "boutade" de que tudo é político, não nos custa nada admitir que a presença do outro faça todo o nosso corpo responder com a imagem induzida pela imagem que o outro projecta, mas que é, ao mesmo tempo, máscara e recusa de identificação. Logo, aqui tudo é expressão, conforme e contra a imagem.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

"Fábrica" (José Ames)

FRANÇOISE




"(...) ela tinha conservado da sua infância duas particularidades que podia parecer deverem excluir-se, mas que quando se encontram reunidas, se fortificam: a falta de educação da gente do povo que não procura dissimular a impressão, e até o doloroso alarme nelas causado pela visão de uma mudança física que seria mais delicado parecer não notar, e a rudeza insensível da camponesa que arranca as asas das libélulas antes que tenha ocasião de torcer o pescoço dos frangos e a quem falta o pudor que lhe faria esconder o interesse que lhe despertava ver o corpo que sofre."
"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Proust descreve a reacção da velha criada Françoise ao ver entrar, desfigurada pelo ataque de que acabava de ser acometida, a avó do narrador. E frisa que esta aparente insensibilidade não era devida à falta de amor pela doente, de quem, pelo contrário, muito gostava.

Marcel pode, assim, observar as duas atitudes opostas, ditadas por códigos de classe diferentes na forma de lidar com o sofrimento ou a diminuição do outro. A filha, evitando olhar o rosto devastado da mãe para não lhe transmitir a sua própria aflição e a da criada, cuja indiscrição revela toda uma outra "política": a das chamadas verdades da vida, ao mesmo tempo que isso lhe permite assumir a impassibilidade que a outra atitude procura pela esquiva e pelo pudor.

A curiosidade de Françoise, por outro lado, não está isenta de uma nuance de crueldade e de filosófico desagravo. Como boa católica, podia ver a justiça dos Céus repor nesse momento uma igualdade que a sociedade não cessava de desmentir.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017


(Leiria)

A ADAPTAÇÃO DO ESQUELETO

http://www.osteopathie-france.net

"Por outro lado, existem aqui também organizações autónomas apresentando resistências à adaptação, em particular sob a forma da burocracia estatal e das suas extremas necessidades securitárias, mas também sob a forma de partidos políticos, de sindicatos ou de outros grupos de interesses que se fixaram numa imagem interna do seu próprio sucesso organizacional - e isto muitas vezes sem se quererem dar conta do facto que as condições externas se modificaram grandemente. Nenhuma destas organizações é, no entanto, capaz de realmente testar as condições ambientais do seu êxito, e cada uma se atem antes de tudo à sua própria redundância."

"Politique et Complexité" (Niklas Luhmann)

"As condições ambientais do seu êxito" significaria o quê? Simular até que ponto uma organização está dependente de certas trocas de informação com os outros sistemas e das relações com o seu meio ambiente?

Isso não é, evidentemente, possível, quer dizer que o teste é a experiência real que força à adaptação, a bem ou a mal. Por isso, toda a retórica a favor da flexibilidade e da adaptação soa a parti-pris ideológico; como se as organizações e os indivíduos pudessem preparar-se para a mudança de que não se sabe o sentido, e quando se desconhece até que ponto a flexibilidade compromete a outra face do sucesso: a duma estabilidade mínima das organizações.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

(José Ames)

ONDE ESTÁ O PROFANO?


Claes Oldenburg, Colher de Jardineiro, Serralves


"Mas na realidade, a introdução de certos objectos profanos no contexto da memória cultural torna difícil dar-lhe um outro uso cultural. Nenhum museu tem necessidade de outro urinol virado do avesso se já possui um. Se se quiser reintroduzir uma coisa profana na tradição valorizada, deve-se começar por mostrar a realidade do seu carácter profano, quer dizer, o que a diferencia de todas as coisas que antes foram valorizadas."
"Du Nouveau" (Boris Groys)

Devia ser fácil dizer: isto não é arte! Uma cena de praia, uma paragem de autocarro com a sua fila de passageiros à espera, uma lata de refrigerante.

Mas, na verdade, alguém andou a mudar as etiquetas no nosso mundo de todos os dias. A começar pela fotografia, que transforma a vida em imagem. E quando, diante de um "motivo", lamentamos não ter trazido a câmara, é porque aquilo a que Groys chama de profano já não está lá.

Virtualmente, já é tudo ready-made e instalação interactiva.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

(Alentejo)

A UTOPIA

http://www4.ncsu.edu


"A maior das infâmias é abandonar as fileiras, jogar fora as armas e incorrer por covardia em qualquer outra falta desse tipo. O guerreiro que a comete, castiga-o Platão degradando-o para o escalão dos indivíduos dedicados ao lucro e converte-o em artífice ou camponês."

"Paidéia" (Werner Jaeger)

Se Platão fala da política da cidade, não admira que a sua utopia nunca tivesse sido muito popular. E mesmo na aristocracia não ganhou adeptos, por recusar a todos a inclinação natural.

Mas para aquela sociedade que fazia precisamente da negação da natureza a sua regra essencial, ele foi a grande inspiração. Tal como os guerreiros da "República", a Igreja exigiu o celibato nas suas fileiras e há muito de platónico no cristianismo, como se sabe.

Mas se fala da alma e só dela, não há ali nada que qualquer de nós não possa verificar em si próprio. Porque o espírito é uma pura aristocracia, se é espírito. E o castigo da degradação, quando se falta a si próprio, é justiça.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

(José Ames)

CONTRASTARIA


(Um retrato do Fayoum)


"Assim, se o vanguardista do princípio do século não foi aceite pelo grande público, foi em primeiro lugar porque ele elevava ao nível dos valores culturais os elementos do meio ambiente quotidiano que este público, que o manipulava todos os dias, considerava como "não culturais", e aos quais por isso procurava ultrapassar."

Esse artista priva, deste modo, o público da "ilusão que se lhe tinha tornado mais cara, aquela que lhe fazia crer que se podia aproximar da cultura valorizada, tal como ela é procurada, e nesta via põe claramente em evidência o seu fracasso."

"Du Nouveau" (Boris Groys)

Este processo deve ter-se verificado em todos os passos dados pela arte fora do sagrado. Do hieratismo das figuras egípcias aos retratos do Fayoum, ou do esquematismo dos primitivos italianos aos padrões clássicos do Renascimento e destes ao realismo trágico de um Caravaggio.

Emprestar as feições dos contemporâneos à representação de uma passagem bíblica ou fazer figurar um animal doméstico junto à perna duma mesa, na "Última Ceia", não era já abrir o caminho à tematização do quotidiano e a essa essência do profano que é a "natureza morta"?

O que é novo, mais do que a perda da aura de que fala Benjamim, talvez seja o desaparecimento do artista criador e a sua metamorfose num agente de contrastaria, especialista na demarcação do que deve e do que não deve ser valorizado.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

(Lamego)

METAMORFOSE

[Índios Terena, Cachoeirinha, RS, 1955].

"Assim, as diferentes teorias da intertextualidade mostraram que o novo é sempre constituído de antigo, de citações, de referências à tradição, de modificações e de interpretações do que já existe. Mas tirou-se muitas vezes a conclusão que na cultura em geral não há nada de novo e que não existe criador. Uma vez que a cultura se ocupa exclusivamente de variações do que já existe, não é necessário para a explicar nada que lhe seja exterior, nem a fortiori do homem como seu criador."

"Du Nouveau" (Boris Groys)

O que é dizer que o radicalmente novo é uma espécie de utopia.

Mesmo duas culturas que se encontrassem, sem quaisquer contactos anteriores, como terá sido o caso da descoberta do Novo Mundo, só poderiam avaliar-se mutuamente a partir do que já conheciam. As naves e as armaduras do homem branco ou a gráfica nudez dos índios foram objecto de diferentes níveis de racionalização tendo como base os mitos já existentes.

Mas prescindir do homem como criador é admitir que as coisas encontram por si mesmas um sentido. E isso é absurdo. Quando valorizamos determinada obra, porque através dela se adaptam as fronteiras da nossa percepção dum mundo em metamorfose, é como se a arrancássemos da imanência e do espaço profano ( para dizer como Groys).