terça-feira, 30 de junho de 2015

(José Ames)

ACACIANAS METÁFORAS



"No seu segundo regresso, nomeado tenente-general e de novo marquês, o senhor d'Aiglemont teve a ambição de alcançar o pariato, adoptou as máximas e a política do 'Conservador', cobriu-se de uma dissimulação que nada escondia, tornou-se grave, interrogador, pouco falador, e foi tomado por um homem profundo. Se, por acaso, ficava despreocupado ou mais alegre como era antes, a insignificância e a ingenuidade das suas considerações tinham para os outros subentendidos diplomáticos."

"La femme de trente ans" (Balzac)


O nosso Eça deverá alguma coisa a esta personagem balzaquiana tantas são as nulidades, como o conselheiro Acácio, que passam por homens profundos nos seus romances.

A diplomacia é uma  arte de dissimulação como se diz. Uma dissimulação que toda a gente espera, levando a que as palavras ditas pareçam estar sempre em lugar de outras, que seriam as verdadeiras. E, como no teatro, a palavra dita não pode ser retirada e é parte do desencadeamento da intriga.

O poder (político ou social) de que estão investidos protege o diplomata e o tolo disfarçado de homem profundo de não serem levados a sério. O lugar que ocupam impede-os de cairem na insignificância ou no ridículo.


O filme de Hal Ashby "Being There" (1979) é uma parábola sobre a falsa sabedoria. Chance, um velho jardineiro, um pouco tolo, fica sozinho na casa do patrão depois deste morrer, e  ninguém sabe o que fazer com ele, até que um acaso o leva a conhecer um velho milionário com influência sobre o inquilino da Casa Branca. Treslendo a linguagem prática de Chance sobre o único mundo que conhecia: o seu jardim, o milionário descobre no seu protegido um visionário de profunda sabedoria e apresenta-o ao presidente dos EUA. O 'qui pro quo' é levado até ao fim, com o governo do país convertido à metáfora jardinística que aquele grupo fez das palavras de um retardado mental.

Não é bem como o apólogo do 'Rei vai nu', em que uma criança pode libertar a multidão de representar uma comédia. É a estupidez servil e contagiante dos que imitam os seus superiores.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

(Viena)

DEUS ABANDONA ANTÓNIO

Alexandria



"Os pacientes têm que ser descobertos - porque eles mentem sempre. Não que o possam evitar, é parte do mecanismo de defesa da doença."

"Balthazar" (Lawrence Durrell)


Ora isto é paradoxal, à primeira vista. O doente sabe que é do seu interesse revelar ao médico toda a verdade. Embora seja a verdade só da sua experiência.

O que ali se diz não é que a doença se defenda, na obscuridade, mas que nós nos defendemos da doença, ignorando-a, tanto quanto é possível, alimentando ilusões.

Todos nós receamos o momento de inumana lucidez, em que, como nos versos de Cavafi, o poeta de Alexandria, "Deus abandona António".

A cena em que Marco António, desertado pelas suas legiões, já sem escapatória, enfrenta o destino nas figuras de Octaviano e Agripa, salva o filme de J. L. Mankiewicz.

sábado, 27 de junho de 2015

"Clown" (José Ames)

A VIDA SECRETA

"A vida secreta das palavras" (2005-Isabel Coixet)



Na fábrica, Hanna (Sarah Polley), uma sobrevivente da guerra dos Balcãs, é a única que não precisa de proteger os ouvidos. É surda e desliga o aparelho a maior parte do tempo. Não quer gozar férias, nunca meteu baixa, não fala com ninguém. A empresa não a quer despedir, mas o sindicato não gosta do mau exemplo. Metem-lhe um folheto de viagem nas mãos e obrigam-na a descansar.

Mas em vez de se estender ao sol, com uma pina colada, ela sai do inferno mecânico directamente para a cabeceira dum homem (Tim Robbins) que sofreu uma série de queimaduras graves e ficou temporariamente cego, numa plataforma petrolífera.

Os dois traumatizados abrem-se lentamente um para o outro e o seu encontro é tão miraculoso como o do insecto e a orquídea exótica no pátio dos Guermantes, em "Sodoma e Gomorra", de Marcel Proust.

Enquanto lhe lava o corpo, Hanna diz isto (por estas ou outras palavras):

- Dantes costumava ficar embaraçada e mais ainda com o embaraço que julgava provocar nos doentes. Depois percebi que gostavam que me ocupasse deles. E que era como se dissessem: - isso é só o meu corpo; tu não sabes o que eu penso."

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Génova

O GÉNIO FORA DA LÂMPADA


Sólon ditando as leis

"Mas, será a natureza rectificada (pela tecnologia) a mesma em que, primordialmente, os seres humanos e as outras coisas vivas chegaram à existência? Se não, por que não poderia o homem, na prática,  prevenir esses resultados antecipadamente?; talvez o homem seja levado por uma força desconhecida."

(Yu Xuanmeng "Heidegger on Technology")

Essa força tem tudo da antiga ideia de destino. Mas esse destino só nos é revelado no fim, ou é um enigma que não somos capazes de decifrar antes. Sólon dizia que só podemos julgar a vida de um homem depois dela ter acabado.

Nesse sentido, a tecnologia que vai mudando o nosso mundo para lá das condições 'primordiais' e tavez - quem sabe? - em direcção a um mundo inviável, é sem dúvida, uma força que ao mesmo tempo nos vai revelando a nós mesmos, com um ímpeto desconhecido na história.

A questão de prevenir o mundo inviável não tem solução, enquanto não controlarmos a força tecnológica e  pudermos simular a realidade. Essa opção talvez nem seja compatível com a democracia, e implica uma filosofia anti-humanista e anti-libertária.

É certamente uma crença a esperança de virmos a, depois de chegarmos a 'senhores' da Natureza, tornar-nos senhores de nós mesmos, impondo-nos um limite à nossa capacidade de auto-destruição e de tolerância às forças desconhecidas que libertamos.

De qualquer modo, o génio já não volta à lâmpada de Aladino.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

(José Ames)

JACOB E O ANJO



luta de Jacó e o Anjo. Pintura do francês Alexander Louis Leloir

 

"Então, Alguém apareceu que lutou com ele até ao despontar da aurora. Vendo que não o conseguia vencer, atingiu-o na articulação da anca, e a perna de Jacob paralisou-se durante a luta. E Ele disse a Jacob: "Larga-me, pois já nasce a madrugada." Mas Jacob respondeu-lhe: "Não te largarei enquanto não me tiveres abençoado!" Perguntou-lhe o Outro: "Qual é o teu nome?", "Jacob", respondeu ele. E disse o Outro: "Não mais te chamarás Jacob, mas Israel, porque foste forte contra Deus e vencerás todos os homens."

"Livro do Génesis"

É nesta estranha passagem da Bíblia, tão comentada (tiro a citação das Memórias de Bénard da Costa), que o texto sagrado mais parece revela (e ocultar) da relação entre o divino e o humano.

Comecemos por aquele aviso do Anjo para que Jacob o largasse por causa da iminência da madrugada. Há aqui uma fraqueza física do 'lado divino' quase impossível de explicar, e o que é relevado é a 'capacidade de negociação' do astuto filho de Isaac, como a que Ulisses demonstrou na caverna de Polífemo. De facto, não se trata de medir forças. 

Veja-se também o recurso a um tempo arbitrário, comum a tantos contos infantis (caso, por exemplo, da Gata Borralheira a quem a fada madrinha impõe que regresse à meia-noite.

Logo a seguir, o Anjo como que é forçado a abençoar o seu antagonista. Ora essa violência, num pacto humano, seria contra a justiça, e, por isso, anulável. Contudo, Jeová, ou o Anjo por ele, parecem achar que isso nunca será matéria de desacordo, sem dúvida, por de algum modo ser a única maneira de ser dispensada a benção divina ao israelita.

Com uma condição, também ela, com muitos exemplos nos contos populares, de Jacob ter de mudar de nome. O novo nome significa a acção violenta e a sua justificação na conversão de Jacob. A sua vida passará doravante a ser consagrada ao dador do nome.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Lamas de Mouros

O CUBISMO ALEATÓRIO

David Lynch em Cannes



Em "Mulholland Drive", depois de Rita introduzir a chave azul no misterioso bloco que trazia na carteira, o filme é como se fosse reescrito pelo inconsciente freudiano.

As personagens conservam apenas a máscara, mas o seu papel mudou, às vezes é apenas uma conotação relativamente ao anterior, toda a acção se encontra num tabuleiro deslocado, delirante de sentido.

A certo ponto, desistimos de procurar a lógica, para nos deixarmos sugestionar, porque tudo se tornou um Mc Guffin hitchcockiano.

Não tira que fiquemos, no final, com a impressão de que o autor já não está lá. Que foi substituído pela prestidigitação.

"No hay banda" igual a "No hay autor".

terça-feira, 23 de junho de 2015

Sem título

(José Ames)

 

A ARTE DE GOVERNAR

"A política é a arte de impedir as pessoas de meterem o nariz em coisas que lhes dizem realmente respeito."

(Paul Valéry)

Mas que estado tão avançado da civilização seria esse, em que as pessoas tivessem de ser privadas do direito a governarem o seu país, através de um artifício, para que esse governo fosse entregue a quem 'sabe', ou a quem 'pode'!

Mas o 'espírito' é que é o verdadeiro autor da frase de Valéry, que não é mais falsa do que essa outra que diz que, em democracia, é o povo que governa. Que relação pode haver entre aqueles que votam ou se manifestam, com qualquer arte de governar, ou de pilotagem no alto mar (Platão)? Uma votação pode ser uma grande onda, e milhões na rua fazem virar qualquer barco. A passagem é muitas vezes estreita, e o piloto que conseguiu salvar o seu navio, as mais das vezes, aproveitou bem a pura sorte.

Aqui a grande virtude é a coragem. Não entregar todos os nossos trunfos à sorte ou ao santo padroeiro.

Nestes encontros e desencontros, salva-se a vontade de El-Rei D. João II, a ideia colectiva da "Mensagem".

Se lermos assim a história, não há arte, nem sabedoria que cheguem para justificar a política, e a democracia, o governo do povo pelo povo, é mais do que uma metáfora.

 

 

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Sem título

(Viena)

 

A RAIZ DO PENSAMENTO

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"Este capítulo é puramente prático e diz respeito ao que actualmente é a principal marca e o elemento de insanidade; podemos dizer, como sumário, de que é a razão usada sem raiz, a razão no vazio.

O homem que começa a pensar sem os primeiros princípios adequados enlouquece, o homem que começa a pensar pela ponta errada."

"Orthodoxy" (G.K.Chesterton)

A ideia é fácil de entender. A razão não é apenas uma faculdade. Fala-se numa 'idade da razão', associando esta ao ser biológico e social que pensamos ser. A palavra processo não daria conta desta realidade (como não dá, no caso do chamado 'processo histórico'). Somos, talvez, 'processados', mas essa é outra questão.

Não pensamos só com a razão, e as mais das vezes ela não se encontra no 'estado livre', vem misturada com as emoções, os sentimentos, um ou outro 'catecismo', os preconceitos, etc. Se não fosse toda esta 'ganga', que não tem nada de abstracto, nem de alheio a nós mesmos, a razão 'pensaria' no vazio, como diz Chesterton. E quando ele fala em raízes, refere-se ao sedimento mais profundo deste meio quase caótico em que pensa a nossa razão.

Por exemplo, nada pode fazer que não tenhamos sido crianças antes de sermos homens (Alain). E a criança que fomos faz parte da raiz do que pensamos. A ideia de Freud, no fundo, não pode deixar de estar certa, mesmo se não concordarmos com o seu teatro grego.

Mas, mais do que isso, é que a razão 'purificada', liberta dos 'cavalos de Platão', não tem nenhuma razão para decidir num sentido ou noutro, quando todas as opções são abstractas e deixaram de ter qualquer contacto com a vida.

Era o que o cientista de "Ex-M dizia a propósito do quadro de Pollock. Como iniciar um movimento racional no meio do caos, recorrendo só à razão?

O triunfo da razão na nossa ciência é paradoxal. Porque, cada vez mais, colocamos a 'plataforma de Arquimedes' mais longe da Terra, sem ganharmos um novo ponto de vista. E sabemos bem demais o quanto a razão científica e aquele triunfo dependem da forma como governamos o mundo.

 

domingo, 21 de junho de 2015

(José Ames)

CAÇAR RATOS





"O capital não é um conceito imutável: ele reflecte o estado de desenvolvimento e as relações sociais prevalecentes de cada sociedade.

(...) Certamente, o preço que os mercados financeiros estabelecem para o capital imaterial de uma empresa ou mesmo de um sector, num dado momento, é largamente arbitrário e incerto."


"O Capital no Século XXI" (Thomas Piketty)


O antagonismo que Marx teorizou entre o Capital e o Trabalho produziu um sentido histórico de enorme sucesso, cujos efeitos estão ainda longe de terem sido ultrapassados por qualquer outro antagonismo. Ora, uma mitologia do Bem e do Mal está na raiz da acção política e de todas as utopias que se sucederam na história.

O profeta alemão caracterizou o Capital de tal modo, indo ao 'âmago' de uma vampirização do trabalho assalariado, que de facto, a sua grande obra não se podia ficar por um relatório do 'estado de coisas'. Explicar o mecanismo do lucro implicava a denúncia da 'exploração do homem pelo homem', tema profundamente ético. A consequência, na lógica hegeliana (assente sobre os pés e não sobre a cabeça), era a 'necessidade' da Revolução/Salvação.

Aparentemente, a nossa época 'absorveu' essa dialéctica e o conflito 'histórico' implícito, através da sua relocalização, ao nível da cultura, ou da liberdade de opinião individual (porque 'tudo é relativo'). O 'pragmatismo', dos EUA, por exemplo, nas suas relações com a China significa que a fábula do gato, atribuída a Deng Xiaoping, funciona nos dois sentidos, enquanto as ideias inaugurais já estão no mausoléu, nos dois países. Este aparente acordo sobre a importância de 'caçar ratos' vai ao encontro das palavras de Piketty.

Pragmatismo e segurança, binómio em que perseveram os governantes americanos e chineses, talvez seja uma resposta à 'mutabilidade do conceito' e ao reino da arbitrariedade e incerteza que caracteriza o capital financeiro.

Pode supor-se que, na prática, as duas maiores potências económicas do momento estão em vias de, por um lado, trocar uma parte das liberdades por mais segurança (num conceito que abrange a economia), e, por outro, a abdicarem de uma parte da sua segurança por umas gotas de perfume democrático.

sábado, 20 de junho de 2015


Elvas

A QUANTIDADE MORAL




"A mais terna, a mais trágica das ilusões é talvez acreditar que as nossas acções podem somar ou subtrair à quantidade total de bem e de mal no mundo."

"Cléa" (Lawrence Durrell)


Quantidade, essa é a questão. Como se o mundo fosse um sistema de forças em equilíbrio. Nenhuma acção sem a reacção correspondente, nenhuma crise sem a sua recuperação.

Já Simone Weil pensou numa energia espiritual com eficácia mensurável. A atenção como criação. Mas talvez só possamos agir, se inventarmos tudo.

É por isso que, como diz o mesmo Balthazar, no "Quarteto de Alexandria", "é tarefa do pensador ser sugestivo; a do santo calar a sua descoberta."

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Sem título

(José Ames)

 

O GRANDE DESEDUCADOR

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"A educação democrática, admita-o ou não, quer e precisa de produzir homens e mulheres que tenham os gostos, os conhecimentos e o carácter apoiante do regime democrático."

"The closing of the american mind" (Allan Bloom)

É o mesmo que a conhecida fórmula: "sem democratas, não há democracia."

O endoutrinamento e a 'lavagem ao cérebro' sempre foram necessários aos regimes despóticos. A democracia, pelo seu lado, precisa de cultivar a igualdade (pelo menos no plano simbólico, como nas democracias que, ao mesmo tempo, promovem a desigualdade social, mesmo extrema, como é o caso dos EUA), a tolerância e, como diz Allan, o relativismo em relação à verdade. O extraordinário sucesso da teoria de Einstein, embora nada tenha a ver com a ética, como que selou a fórmula inultrapassável (mas contraditória) de que 'tudo é relativo'.

O sistema educativo dos americanos parece ter estabelecido essa aliança espúria com a ideia deturpada da física teórica, de tal modo que, diz-nos Bloom, no seu tempo de professor, o 'relativismo' era a crença 'espontânea' dos alunos e causava escândalo que não fosse reconhecido o seu carácter óbvio.

Entretanto, os professores da democracia foram transformados em auxiliares (sujeitos a caução) do Grande Deseducador em que o conjunto dos mídia se tornou. Escusado será dizer que essa 'educação' não corresponde a um ideal, democrático, ou não, e nem sequer a uma política. É um pseudo-sistema, jogando com os destroços do antigo, uma espécie de subproduto da corrida tecnológica.

Em que se transformará, assim, o regime democrático, sem o apoio da sua Escola e da sua Universidade? É que as universidades se transformaram em mentores da organização capitalista mais do que guardiães dos princípios democráticos...

O Francis Underwood de "House of Cards" é talvez profético. Um novo Ricardo III, shakespeareano, personagem de uma ficção maior, rebolanda a sua 'corcunda' nos despojos de uma grande ideia.

 

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Sem título

Viena

 

Sem título

Viena

 

O CÉU DE NÉON

 

"Falando do lugar das humanidades nas universidades, ele chama-lhes uma 'velha Atlântida submersa', para a qual, outra vez, nos voltamos tentando 'encontrar-nos, agora que todos os outros desistiram'. 'As humanidades são como o grande Mercado das Pulgas de Paris de antigamente, onde, entre montes de sucata, as pessoas com olho para isso encontravam tesouros deitados fora..."

(Prefácio de Saul Bellow ao livro de Allan Bloom "The closing of the american mind")

Diz-se muitas vezes que a 'cultura geral' (mas o que será que distingue essa cultura de um concurso televisivo, como no filme de Redford ''Quizz show"?) é a melhor formação mental para a nossa época de aceleração histórica, em que as 'aquisições' científicas ou heurísticas, nos diversos campos do saber, são cada vez mais precárias. E propõem-nos, alguns, o modelo do 'robot' multi-usos, pronto a adaptar-se às novidades 'culturais', ao sabor da moda.

A especialização a todo o custo parece levar-nos para não se sabe onde, em todo o caso, com ela, e sem um grande esforço de síntese e de elaboração crítica, abdicamos de compreender o nosso mundo. O que é muito diferente da 'alienação' do passado, na falta de uma religião para a 'era da técnica', como diz MGTavares. Porque se não podemos 'compreender' o 'mundo aberto', podemos sempre ficcioná-lo através da mitologia.

O Mercado das Pulgas de que fala Bloom tem do pior e do melhor, a sucata e a jóia, ignorada, a não ser pela espécie ameaçada dos humanistas (ameaçada, porque a ciência moderna vai no sentido oposto, do não-humanismo, apesar deste ser apenas um nível mais do antropológico).

A nossa esperança é que num mais ou menos próximo futuro venhamos a descobrir esse legado, a Atlântida submersa de Bloom, como a Europa do século XIV descobriu a Antiguidade clássica.

Paradoxalmente, isso compara-nos e à nossa era, a uma nova Idade Média, que em vez das sombras do românico, apresentasse o brilho e o ofuscamento de um céu de néon.

 

quarta-feira, 17 de junho de 2015

(José Ames)

A ATENÇÃO WEILIANA





"A atenção, no seu grau mais alto, é a mesma coisa que a oração. Ela supõe a fé e o amor."

(Simone Weil)


A espécie de atenção que dedicamos, por exemplo, a resolver um problema de matemática, corresponde menos a um esforço mental do que a uma disposição para nos abstrairmos de tudo o resto. E pode ser um treino para a atenção de que nos fala a autora de 'L'enracinement'.

Graças à álgebra e a outras invenções mais modernas, somos capazes de lidar com outros graus de abstracção, sem nos preocuparmos em repensar o nível elementar. Por esse caminho, já nos é possível reparar um aparelho complexo, substituindo um dos seus módulos, cuja composição não precisamos de conhecer. Quer dizer, o que economizamos da nossa atenção vai a par de uma maior especialização abstractizante e de um maior desenvolvimento artificial. Começamos, desde há algum tempo, a ser menos inteligentes do que as nossas máquinas, o que é, aliás, um tema recorrente na ficção científica.

Perante esta evolução, não é estranho que a inteligência 'modular', de montagem' (o 'kit') encontre nos 'media' tecnológicos o incubador congenial.

Claro que isto vem muito de trás. A mecânica do automóvel, por exemplo, permanece um mistério para muitos condutores... O que é novo é a extensão e a velocidade deste uso 'alienado' dos nossos próprios artefactos. O nosso mundo, excepto, talvez, para uma casta perdida no seu babel de especializações, aproxima-se curiosamente da era do paganismo e do seu 'tudo são deuses' (Tales).

Como atravessar a espessa abóbada artificial que nos esconde os astros, para procurar o objecto real que pede a atenção weiliana?


terça-feira, 16 de junho de 2015

Sem título

Elvas

 

O SILENO

Sileno

 

"Não procures verdade no que sabes."

(Sophia)

Misterioso aviso este. Devo então procurar a verdade no que não sei? Precisamente. Quando julgo tê-la encontrado e a pus na sua gaiola, já a perdi. O 'nada sei' não era uma astúcia do célebre filósofo aparentado ao Sileno para fazer falar os outros e vê-los enredados nos seus próprios jogos de linguagem.

Claro que quando alguém diz de um 'convencido' que não é 'dono da verdade', não diz o mesmo que acima. Só contesta um monopólio, não que a verdade possa estar numa gaiola científica, por exemplo.

Mas o que seria um mundo em que se tivessem perdido as convicções, por mais ilusórias que pudessem ser? Esse mundo ficaria, provavelmente, entregue aos programas, que não têm de ter fé neles próprios. Quanto aos programadores, nem teriam de ser humanos. Bastava-lhes responder a um só problema: como tornar o mundo, presente e futuro, um mundo 'sustentável', segundo um modelo matemático (mais confiável, embora, do que os modelos dos economistas).

Podemos conceber que tudo isso não fosse mais do que a 'administração' de homens e coisas, e que a verdade irrepetível de que fala o poeta pertencesse ao mundo religioso, ao transcendente?

 

segunda-feira, 15 de junho de 2015

(José Ames)

O INSTINTO COMO VALOR



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"O mal não é um problema abstracto que é preciso resolver, mas um trágico confronto do qual temos de sair vencedores."
(Friedrich Nietzsche)

Não estou certo de que um problema 'abstracto' (por exemplo, os da física teórica?) não possa ser ocasião de uma tragédia, nestes tempos cibernéticos. Na imagem do grande cérebro que a 'rede' configura, extensão protésica segundo a ideia de McLuhan, a abstracção é imediatamente eficaz.

Por outro lado, não é a maior parte dos confrontos que ameaçam a vida uma questão pré-filosófica, de vida e de morte, e, até certo ponto independentes da moral? Poderia, assim, reduzir-se a essência do bem à luta darwiniana pela sobrevivência.

Não é só a 'metafísica' e a transcendência que caem na esfera dos problemas 'abstractos' e, portanto, tornados indiferentes à moral 'superior', é a natureza do 'herói da vontade' que é remetida para o instinto.

domingo, 14 de junho de 2015

Viena

PORTUGUESINHO



Guido Piovene, autor, nos anos cinquenta, de uma monumental 'Viagem a Itália', escreveu, a propósito de Florença: " É difícil produzir numa cidade onde muitos só falam para escutar e escutam para registar se os outros disseram alguma tolice."

Seria demasiado esperar que essa atitude correspondesse a uma espécie de polícia da inteligência, o que, de qualquer modo só por si teria reduzido a quase nada as conversas ociosas. De facto, atrevo-me a supor que isso terá mais a ver com a antiga tradição política de forçar o destino através do envenenamento. A cidade, justa ou injustamente, ganhou a fama da alta intriga e da arte do subentendido. Que deliciosa oportunidade, nessa atmosfera de suspeita mútua, armar uma bela ratoeira aos incontinentes!

No tempo das 'indulgências', é claro que se acreditava na salvação da alma. O dinheiro pago era a prova disso, mesmo se revelava a materialização do 'poder espiritual'. A corrupção da Igreja deve ter 'solto as línguas' e dado à malícia florentina o pasto mais apetecido.

A cidade da arte renascentista cala hoje os antigos vícios. Piovene descobriu, porém, o seu segredo, tornado simpática idiosincrasia.

É irresistível, neste ponto, comparar essa idiosincrasia com o nosso próprio vício de maldizer, sobretudo dirigido a nós próprios, enquanto povo. Não se pode imaginar por um segundo sequer que nos auto-depreciamos porque temos um alto conceito do que deveríamos ser. A preguiça talvez seja a mola real. Porque ser afirmativo nos obriga pelo menos ao esforço de sermos consequentes.

Quanto mais cómodo não é fazer como os bancos falidos: não dar crédito. Dizer em vez de português, portuguesinho.

sábado, 13 de junho de 2015


"Church" (José Ames)

A SIMULAÇÃO DA VIDA


Moisés e as Tábuas da Lei (G. Doré)



Não se deve procurar uma correspondência absoluta entre os episódios do "Decálogo", a série para a televisão do realizador polaco K. Kieslowski, e os Mandamentos.

Mas não há dúvida que a história daquele pai tão orgulhoso da sua inteligência e da precocidade do pequeno Pavel parece ajustar-se perfeitamente à proibição da idolatria.

Desde o cálculo da resistência do gelo no computador à verificação experimental, tudo traía uma confiança tão optimista nas certezas da ciência que a aparentavam muito com uma religião sem Deus.

O imponderável que provoca o afogamento da criança no lago pode ser interpretado de várias maneiras. Até como falta de informação...

Mas alguma vez saberemos tudo de tudo para culpar a ignorância?

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Brotas

A GRANDE FICÇÃO






"Temos de distinguir entre ficção e ideologia. Porque genericamente falando a ideologia é qualquer coisa que não está associada com a ciência, ou com a verdade, ou com o real, com a realidade. Mas como nós sabemos desde Lacan e antes dele, a própria verdade é uma estrutura de ficção. O processo da verdade é também o processo de uma nova ficção. E assim encontrar a grande ficção é a possibilidade de encontrar uma fé final, uma fé política."

(Alain Badiou, conferência no Birkbeck Institute for the Humanities, Londres, em 26/11/2005, transcrição de Robin Mackay)

Mas pode acreditar-se nos mitos? Jean-Pierre Vernant  fazia essa pergunta em relação aos Gregos. Teriam eles a fé dos 'fiéis'  do Cristianismo, por exemplo? A ironia de um Aristófanes ou a política de um Platão não são realmente representativos da atitude comum. Nesse tempo, levava-se tão a sério o culto dos deuses que Sócrates foi condenado à morte por querer introduzir 'novos deuses' (como a consciência no sentido moderno) na cidade.

Por outro lado, temos a opção do jornalista pela lenda contra os factos no filme de John Ford, 'O Homem que matou Liberty Valance'. 

A palavra 'narrativa' entrou recentemente no nosso vocabulário político. Talvez seja o sinal de que a crise política, o desencanto geral em relação à política e à democracia, tenham sobretudo a ver com a redução da política à ideologia, com o triunfo dos economistas e dos saldos de balanço.

Nesse sentido, a 'grande ficção' de que fala Badiou é outro nome para as ilusões 'eficientes' conotadas com a juventude dos homens e das nações. O filósofo, como o ancião, acabam por ter razão contra eles mesmos, porque o melhor que fizeram na vida não foi fruto de análise nem de dissecação.

Quem pode devolver-nos o estado de graça senão um novo mito criador?

quinta-feira, 11 de junho de 2015

(José Ames)

O CASTELO INACESSÍVEL



Volto a embrenhar-me com Kafka no labirinto do sem-sentido.

A absoluta originalidade deste autor terá as suas raízes de que não sei o suficiente para afirmar sequer uma influência. Às vezes, dir-se-ia que se socorre da "técnica" do sonho, descrevendo situações absurdas que, afinal, estão apenas deslocadas em relação à nossa experiência.

A psicologia das personagens nunca está ao serviço do drama, mas da ironia e duma estratégia de desorientação do leitor, o qual, a cada momento, tem de se reposicionar para não perder de vista o seu mundo, que é o único mundo, por detrás da estranheza.

Compreende-se por que razão Kafka se ria tanto ao ler aos amigos aquilo que escrevia...

No "Castelo", o poder torna-se romanceável pela primeira vez. E até a figura gemelar dos assistentes que são testemunhas indesejáveis de todos os momentos de K. parecem menos reais do que representar uma hipóstase política alojada num canto do nosso cérebro.

Ou então, é a narrativa da doença psíquica, a paranóia, por exemplo. A realidade é tratada como uma conspiração contra a personagem. Toda a gente, na aldeia, se ocupa, duma maneira ou de outra, do pobre K.