sábado, 29 de abril de 2017

Milão

A APRESENTADORA DA MAÇÃ

"Carta a três mulheres" (1949-Joseph L.Mankiewicz)


O cineasta, mestre da intriga, autor do fabuloso "All about Eve" (e respectivo argumento), Joseph Mankiewicz, deu-nos, em 1949, outra jóia: "Carta a três mulheres".

Addie Ross, a amiga comum, é a voz-off que nos vai desfiando a meada. Sem nunca aparecer em cena, ela é a rival de todas aquelas mulheres, cujo casamento o fatídico sétimo ano põe em perigo. Mas, em vez de justificar o ciúme delas, Addie revela-se uma verdadeira fada do amor, mexendo os cordelinhos a fim de reforçar os laços e dar um novo fôlego às paixões.

Como em "Eve", cada flashback conta a história de Deborah, Rita e Lora Mae, sempre visando estabelecer o fascínio retrospectivo de Addie na mente dos respectivos maridos.

Durante a crise desencadeada pela carta de Addie, as suas amigas descobrem que não estão a fazer o que podem para salvar o seu matrimónio. E os homens, absolvidos da leviandade, saem como o investimento acima de todos os outros. Num papel deliciosamente passivo, como se toda a culpa só pudesse vir, realmente, de Eva.

segunda-feira, 24 de abril de 2017


(José Ames)

PENSAR SOBRE ANDAS




"Porque um pensamento sem fim prático é sem dúvida uma ocupação clandestina não muito conveniente. Esta espécie de pensamentos, sobretudo, que caminhando sobre andas, tem apenas um minúsculo ponto de contacto com a experiência, é suspeita de nascimento irregular. Sem dúvida falava-se assim outrora dos "voos do pensamento"; no tempo de Schiller, um homem cujo peito albergasse tão sublimes problemas teria sido muito considerado. Hoje, em contrapartida, ter-se-ia a impressão que este homem era um pouco anormal, a menos que fosse o caso do pensamento ser a sua profissão e a sua fonte de rendimento."
"L'Homme sans Qualités" (Robert Musil)

Por mais que os avanços da ciência dependam dos "pensamentos sobre andas", desligados, quase sempre, de qualquer utilidade prática, nunca abalaremos a desconfiança do homem mediano, "traumatizado" embora pelo sucesso tecnológico, filho natural da teoria e da abstracção.

E a razão é que o espírito prático funciona perfeitamente a um determinado nível dos problemas com que nos deparamos na vida quotidiana.

Mas essa inteligência ficará sempre aquém de qualquer descoberta.

domingo, 23 de abril de 2017

(Covilhã)

A LEITURA NÃO É DE COMPANHIA

structure of protein




"Mas no ocidente democrático-tecnológico, tanto quanto se pode dizer, os dados estão lançados. O in-fólio, a biblioteca particular, a familiaridade com os idiomas clássicos, as artes da memória pertencerão, cada vez mais, ao reduzido número dos especializados. O preço do silêncio e da solidão aumentará. (Parte da ubiquidade e do prestígio da música provém precisamente do facto de se poder escutá-la enquanto se está na companhia dos outros. A leitura séria exclui até os que nos são mais íntimos).
"Paixão intacta" (George Steiner)

É óbvio que o ideal do Homem da Renascença teve o seu tempo. Não é mais possível ao indivíduo dispensar a memória objectiva (a das enciclopédias e dos bancos de dados), nem conhecer o essencial das artes e das ciências.

Mas entre o especialista, confinado ao núcleo da sua proteína, e esse ideal, há espaço para um espírito "humano" que saiba relativizar a memória que cresce fora de si e o tipo de conhecimento que lhe está associado.

Como sempre, o problemas dos "muitos" é de outra natureza. E talvez esteja na sequência devida que a música, em tantos casos, tenha substituído a religião e o fanatismo. Podemos desfrutá-la, de facto, todos juntos.

Mas a leitura será cada vez mais para os que, como diz Pessoa, não são de companhia.

sábado, 22 de abril de 2017

(José Ames)

O ROMANCE DO ANTI-ROMÂNTICO


"O Bom Alemão" (2006-Steven Soderbergh)




"The Good German" termina numa atmosfera moral que é o oposto do final de "Casablanca", no que pretende ser, visivelmente, uma citação perversa.

Lena é conduzida por Geismer, o amigo americano, ao avião que a vai salvar de Berlim, mas não do seu passado. É nesse instante que lhe faz a revelação de ter a denúncia de vários judeus na consciência.

Não há nada de nobre na renúncia de Geismer, mas só a náusea e Lena não tem nada já de que abdicar. A célebre despedida de Bogart e Ingrid Bergman encontra aqui uma variação lúgubre e desesperada, de que o resto do filme não está à altura.

Salva-se a música herrmaniana (Thomas Newman) e a fotografia, digitalizada para preto e branco, de Peter Andrews.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Vila do Conde

O CANTO DAS SEREIAS


Le Polycratus a été traduit pour le roi Charles V
par le Franciscain Denis Foulechat.





"A música embaça o rito divino, porque perante o olhar de Deus, nos recintos sagrados do próprio santuário, os cantores, com o impudor das suas vozes lascivas e com uma afectação singular, tentam feminizar os seus apoiantes fascinados, interpretando as notas e terminando as frases com a sua voz de meninas. Se pudésseis só ouvir as exaustas emoções dos seus cantos e contracantos, sempre impróprias e pouco judiciosas, no princípio, no fim e no meio, creríeis que aquele era um conjunto de sereias, e não de homens."

"Policratus, 1159" (Jean de Salisbury, citado por William Dalglish e Anna Maria Busse-Berger em "les écritures du temps")

Assim, um sábio do século XII exprimia o sentimento que em si despertava a música ouvida na catedral de Notre-Dame. Parece que estamos a ver a ambiguidade sexual dos frades de Pasolini, na sua célebre trilogia.

A mulher, ausente desses grandes cenóbios, pela proibição do cânone, "persegue" com o seu corpo e a sua voz o espírito da comunidade. Através da estética e dos ideais da beleza, ela insinua-se nos corações.

Vemos aqui como a música servia à feminização, abortando a sublimação imposta pela doutrina.

É caso para dizer que o hábito faz o monge.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

(José Ames)

VISÃO DE ESPARGOS

"La botte d'asperges" (Eduard Manet)


"O que nisso se aprecia, é que está finamente observado, que é divertido, parisiense, e depois passa-se. Não é preciso ser um erudito para ver isso. Sei bem que são simples esboços, mas não acho que esteja suficientemente trabalhado. Swann tinha o desplante de nos querer fazer comprar "um molho de espargos". Que até ficou alguns dias. Só havia isso no quadro, um molho de espargos, como esses que o senhor está em vias de engolir. Mas eu, recusei-me a engolir os espargos do Sr. Elstir. Ele pedia por isso trezentos francos. Trezentos francos, por um molho de espargos!"

"Le Côté de Guermantes" (Marcel Proust)

A suficiência com que o duque fala da pintura impressionista baseia-se numa pretensa evidência: a de que não está "trabalhada", que ficou no estado de esboço. E nisso, apesar do lado Saint-Germain dos seus pergaminhos, exprime a sensibilidade e os estereótipos de qualquer burguês do seu tempo, que apreciava ainda a arte pelo seu "valor acrescentado" e, sobretudo, pela dificuldade da sua execução.

Mas esse modelo tinha sido completamente posto em questão pela técnica fotográfica. Nenhuma imitação da natureza, por mais minuciosa e elaborada, podia competir com o "pincel da luz".

A nova liberdade da pintura impôs-se, assim, à custa de todo o critério objectivo. Só o mercado e o gosto mais "irresponsável" pontificam agora.

terça-feira, 18 de abril de 2017

Madrid 

O OVO DA SERPENTE



William Blake: "The Book of Job"




"Não creio que seja possível que a cultura europeia recupere as suas energias interiores, o respeito por si própria, enquanto a Cristandade não for responsabilizada pelo seu papel seminal na preparação da Shoah (o Holocausto); enquanto não se reconhecer como responsável pela sua hipocrisia e impotência quando a história europeia se encontrou envolta em trevas."
"Paixão Intacta" (George Steiner)

Não me parece que se possa dizer que a cultura europeia contivesse dentro de si "o ovo da serpente". Não temos qualquer ideia sobre o que pode ter contribuído para a sua fecundação e para o seu desenvolvimento. A ideia de causalidade não é uma ideia da história, mas da física.

Mas tem sentido perguntar por que a Shoah não obrigou à revisão da ideia de Deus e a um novo começo, a partir do crime dos crimes. Está por explicar tudo aquilo que continua como se nada tivesse acontecido.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

(Lisboa)

LIÇÕES E PRECONCEITOS

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"É pelo menos possível construir uma argumentação racional a favor da nacionalização de todo o capital industrial (se bem que eu creia que pode ser demonstrado - e a experiência confirma-o - que as consequências duma tal política seriam desastrosas). Mas nem sequer é possível construir uma argumentação racional para sustentar que os operários empregados num momento dado numa empresa ou numa indústria deveriam deter colectivamente os equipamentos desta indústria. Toda a tentativa para imaginar as consequências duma tal medida mostra rapidamente que ela é absolutamente incompatível com um qualquer uso racional dos recursos da sociedade, e que conduziria a uma completa desorganização do sistema económico."

"Essais" (Friedrich Hayek)

Quem conheceu a voga que no nosso país tiveram ideias como a da autogestão e a do controle operário sabe que são ideias não só plausíveis, mas que facilmente ganham os espíritos, se o contexto político for favorável, como era o caso nos anos setenta.

A experiência demonstrou, porém, que essa facilidade e esse aparente bom-senso escondiam problemas de organização e de viabilidade económica insuspeitados, pelo menos para os mais ingénuos.

O resultado é que em nenhum lado vingaram essas ideias. E aqueles que gostariam de responder com o argumento de que seria preciso mudar todo o sistema para essas experiências terem sucesso, têm na ex-URSS a prova de que nem aí elas eram economicamente racionais.

Esse passivo histórico, contudo, não bastou para acabar com ilusões como essas, e a prática dos sindicatos reflecte isso mesmo, ainda hoje.

Continua-se a pensar que a sinceridade, a honestidade, a boa-vontade e, sendo a nossa cultura o que é, o mais apreciado ainda "espírito de pobreza", designam, naturalmente, alguns para certas posições, donde se espera que ajam segundo a justiça e aquelas boas disposições.

Esquece-se, uma e outra vez, que a organização e a função modificam as pessoas e que um operário à frente duma administração já não é um operário, nem pensa como tal, mas pensa como um gestor ou um burocrata. Por esse motivo aquela espécie de moralismo automático, em função duma categoria social, só nos pode extraviar.

Apetecia dizer que quando os sindicatos, em vez dessa moral fácil, tiverem em conta e souberem explicar as consequências das suas propostas, algo de novo se veria. O problema é que a organização sindical não está em posição de ver tão longe, em primeiro lugar, porque não lhe cabe gerir.
Ora, parece que essa demonstração seria imprescindível numa verdadeira negociação.

quinta-feira, 13 de abril de 2017


(José Ames)

O COMPROMISSO

"The Arrangement" (1969-Elia Kazan)



"O Compromisso", de Elia Kazan, envelheceu um tanto, mais pelas suas incursões fora do classicismo, como algumas ideias de teatro ou o recurso à banda desenhada.

Eddie (Kirk Douglas), o homem que vende o cigarro limpo, com um nome eólico, acorda um dia para a mentira do seu sucesso e o falhanço do seu casamento e enfia o carro desportivo debaixo de um camião.

Depois é a psicanálise duma história familiar que explica por que é que vivera sempre em função dos preconceitos dos outros e, sobretudo, dos de um pai prepotente. Gwen (Faye Dunaway) é a amante que expõe todo esse fracasso, em nome do que ele poderia ser: escritor? vagabundo? Não sabemos.

Mas Deborah Kerr tem o papel mais antipático da sua carreira. Ela é Florence, a esposa mecânica dos anos de falsa glória, cúmplice da mentira universal. E em todas as tentativas para o reconquistar, depois de saber tudo o que havia a saber, só consegue extrair do seu próprio deserto a planta sufocante de um instinto maternal e de um falso apagamento que não resistem a nenhum sacrifício de vida artificial.

Como o patrão e os colegas avidamente aguardando o seu regresso à "razão" que os justifique a todos e ao negócio lucrativo, que a cavalo de um nome grego abre os odres da morte, Florence é uma extensão hospitalar e psiquiátrica deste complot de interesses, na sua função de vencer a crise e voltar a pôr de pé a personagem.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

(José Ames)

A MEDICINA SEM PALAVRAS

(Galeno e Hipócrates)




"A diferença existente entre o médico dos escravos e o médico, formado cientificamente, que curava os homens livres revela-se, segundo a divertida exposição que Platão faz nas "Leis", na maneira como cada um dos médicos procede para com os seus doentes. Os médicos dos escravos correm de um paciente para outro e dão as suas instruções sem falar (aneu logon), isto é, sem se demorarem a fundamentar os seus actos, com base na simples rotina e na experiência. Esse médico é um tirano brutal. "Se um deles ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos muito aproximados das conferências científicas (...), explicando como concebe o regime da doença e elevando-se à natureza de todos os corpos, morreria certamente de riso e diria o que a maioria das pessoas chamadas médicos replicam prontamente em tais casos: o que fazes, néscio, não é curar o teu paciente, mas ensiná-lo, como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas fazer dele médico."

"Paideia" (Werner Jaeger)

Da pressão do número de doentes pode resultar algo de muito parecido com a tirania sem palavras de que fala Platão.

O "médico dos escravos" quase sempre não tem tempo senão para ouvir e passar a receita. E quando, por milagre, se encontra um clínico mais livre para explicações que procuram menos transmitir um conhecimento do que tranquilizar o doente, a fila de espera sofre na fatalidade das suas correntes.

Hoje ninguém riria ao ver um médico tentar fundamentar os seus actos, porque devolver a saúde ao doente implica que este compreenda como chegou ao estado em que se encontra e que, pela razão, possa voltar ao caminho da saúde.

Os médicos que se vêem obrigados "a correr de um paciente para outro", de facto, abdicam da principal força de regeneração, que é a vontade esclarecida do doente e o seu tranquilo realismo.

A simples prescrição do medicamento é, na verdade, uma violência (ou a continuação do sagrado por outros meios), com todos os seus efeitos colaterais, que nos reduz à simples credulidade. 

terça-feira, 11 de abril de 2017

(Lisboa)

A SEPARAÇÃO DAS ÁGUAS


René Descartes (1596/1650)



"Mas é seguro que a tematização convenha ao Infinito, a visão seja a suprema excelência do espírito e que, através do egoísmo e da egologia do ser, ele aceda ao modo original do pensamento?"
"Entre nous" (Emmanuel Lévinas)

Na ideia do Infinito, "o pensamento pensa mais do que pode conter" (Descartes). Como podemos pensá-lo então?

Sabemos que a série dos números não tem fim, não porque tenhamos tentado chegar a um limite, mas porque a razão assim o determina. Quer dizer, a experiência nunca poderá desmentir essa ideia, porque é através da razão que julgamos a experiência.

É claro que quando se diz que "Deus criou o homem à sua imagem e semelhança", o Infinito de Deus ganha uma espécie de visibilidade. A visão, no Ocidente, está no centro do espírito.

À última pergunta, Descartes respondeu como Alexandre cortando o nó górdio, isto é, pela decisão.

Não podemos conceder ao inconsciente freudiano, ou aos estados intermédios entre o sono e a vigília, a dignidade do pensamento. Res extensa tudo, porque sim.

segunda-feira, 10 de abril de 2017


(José Ames)

O CONFESSOR E A CHOUANNE


Paula Rego (Série do "Crime do Padre Amaro")


"Se o casamento é a união das almas, o verdadeiro marido era o confessor. Este casamento espiritual era muito forte, sobretudo quando era puro. O padre era muitas vezes amado com paixão, com um abandono, um entusiasmo, um ciúme pouco dissimulados. Estes sentimentos eclodiram com extrema força, em Junho de 91, quando, sendo o rei traduzido de Varennes, se pensou na existência duma grande conspiração no Oeste, e vários directórios dos departamentos resolveram encarcerar os padres."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)

Sobretudo quando era puro. Isto é, nada que se parecesse com o idílio de Amaro e da sua Ameliazinha. Essa paixão nunca poderia abandonar a penumbra da sacristia e a alcova clandestina e declarar-se abertamente como piedade e revolta do coração.

Não há nada que se possa comparar, hoje, a essa influência do confessor, em que a sublimação sexual redobrava as energias da convicção.

Ciúmes de facto, amor de facto, mas na situação de extra-territorialidade e de dupla linguagem.

Só podemos encontrar um paralelo naquilo que agora se chama de mundo virtual, em que a vida se vive sem todas as consequências.

domingo, 9 de abril de 2017

(Baleal)

A OUTRA VIRILIDADE

"Maurice" (1987-James Ivory)

"A saga homérica de guerra e de intimidades masculinas com a sua grande ênfase nos desportos de competição, parece estar próxima, como nenhum outro texto o está, da escola de rapazes, dos internatos masculinos, do regimento e do clube (configurações essenciais para a sociedade inglesa, não para o Continente)."
"(...) O tópico é simultaneamente insistente e ilusório. Como tantas vezes sucede na fenomenologia dos sentimentos ingleses, o homoerotismo é, digamos, orgânico e organizante".
"Paixão intacta" (George Steiner)

Num filme como "Maurice" (James Ivory), vemos como essa função organizante do homerotismo se perverteu em má-consciência e desejo de "dessublimação".

O estado de graça dos heróis homéricos de que os vitorianos sofreram a nostalgia não é possível com a educação mista e a doutrinação sexual.

Mas quem não percebe que essa função "orgânica e organizante" é tanto mais eficaz quanto menos consciente, como no mundo desportivo ou no mundo militar?

sábado, 8 de abril de 2017

(José Ames)

CONFIANÇA E CONTROLE

(http://code.gnu-designs.com/Lots-o-Gadgets.jpg)



"É sensato adiar as decisões até que o curso do tempo tenha produzido acontecimentos e reduzido mais a complexidade. O dinheiro, o poder e a verdade constituem (...) mecanismos sociais que permitem adiar decisões ao mesmo tempo que as garantem e, portanto, viver com um futuro duma complexidade indeterminada e mais elevada."

"La confiance" (Niklas Luhmann)

Ao mesmo tempo que propõe que se distinga a confiança do domínio dos acontecimentos, Luhmann alerta para o facto do progresso da civilização tecno-científica não nos permitir um domínio das coisas que possa substituir a confiança.

"Será mais de contar com a necessidade de se apelar cada vez mais à confiança, a fim de se poder suportar a complexidade do futuro engendrado pela técnica."

Podemos verificar no nosso dia a dia o fenómeno de substituição do controle pela confiança. Os nossos aparelhos, cada vez mais sofisticados, seriam uma fonte de grande insegurança se não pudéssemos confiar em toda a panóplia de serviços que asseguram a sua manutenção e reparação, e se o mercado não nos oferecesse a possibilidade de os substituir pelo mesmo ou outro modelo, mais longe ainda do nosso controle.

Também não conhecemos e muito menos dominamos o funcionamento do nosso corpo ao nível celular, sem deixarmos de reivindicar o autocontrole.

É a confiança nos automatismos biológicos que nos permite a liberdade de movimentos.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

(Alcácer do Sal)

A RAZÃO DO ACORDO



(http://dlibrary.acu.edu.au/research/theology)

Causa estranheza esta ideia da verdade como mecanismo social que nos permite adiar decisões (Niklas Luhmann).

Vejo isso assim: uma teoria é sempre uma tentativa de prever o futuro, tenta dizer-nos como será o estado seguinte do universo, se forem observadas determinadas premissas.

Na medida em que nos liberta da acção urgente (é o instinto que responde à urgência) permite-nos, de facto, adiar até "a poeira assentar" ou que o próprio tempo resolva. Mas claro que este conceito de verdade está longe de coincidir com a verdade tradicional ou filosófica. É uma ideia da sociologia dos sistemas.

Podíamos considerar nesse sentido o consenso como uma definição da verdade (se estiver errado, permite-nos adiar, nem que seja pela última vez), o que nos levaria à negação de tudo o que nos faz ser o que somos.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

(José Ames)

A PORTA ABERTA



("Êxodo" de Marc Chagall)



"Em Êxodo 32,14, por outro lado, a Versão Autorizada consegue tê-la (a tradução) absolutamente, o que é o mesmo que dizer escandalosamente, correcta: "E o Senhor arrependeu-se do mal que pensara fazer ao seu povo." Um Deus arrependido! O que significa que a porta para o diálogo, para a persuasão, permanece aberta mesmo quando, como na parábola de Kafka sobre a Lei, nós somos incapazes de compreender que assim é."
"Paixão intacta" (George Steiner)

Em Kafka, o homem que espera diante do guarda uma vida inteira para entrar no palácio descobre, na hora da morte, que a porta esteve sempre aberta.

Mas, como diz Steiner, o escândalo é absoluto. Que o temor do sagrado (ou de um simples guarda) nos impeça de ter acesso à justiça (ou à paz connosco mesmos).

Os Gregos habituaram-nos à flexibilidade dos deuses (mas não da Necessidade). Foram os Hebreus que nos deram um Jeová inacessível.

Mas esta passagem do Êxodo revela-nos uma fraqueza insuspeitada, quase a prova da imanência (um deus apenas humano). E descobrimos com isso um outro valor da liberdade, que já não tem origem na política.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

(Alcobaça)

AS VOZES NA REDE

(Cerco de Paris por Henrique IV)


"(...) pela entoação, pela escolha das palavras, a duquesa diferia profundamente do seu sobrinho Saint-Loup, invadido por tantas ideias e expressões novas; é difícil, quando se está perturbado pelas ideias de Kant e a nostalgia de Baudelaire, escrever o francês requintado de Henrique IV, de tal maneira que a pureza mesma da linguagem da duquesa era um sinal de limitação, e de que nela a inteligência e a sensibilidade tinham ficado fechadas a todas as novidades."

"Le Côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Que raiz camponesa e ancestral hoje resistiria ao dilúvio mediático, em que naufragam as vozes e os sotaques, e onde se "pegam" expressões como o "é assim:", de transversal utilização, com a velocidade de uma epidemia e a aderência de um autocolante?

Mas a Torre de Babel da televisão não será castigada com a confusão das línguas e sim pela caótica imprevisibilidade da tecnologia.

Na rede, cada um é a aldeia global.

terça-feira, 4 de abril de 2017

(José Ames)

O DIMINUTIVO



(Vassilij Grossmann)


"Vassilij Grossmann, em Vie et Destin - livro tão impressionante no dia seguinte às crises maiores do nosso século - vai mais longe ainda. Ele pensa que a "bondadezinha" que vai de um homem ao seu próximo, se perde e se deforma a partir do momento em que procura organização e universalidade e sistema, desde que se pretende doutrina, tratado de política e de teologia, Partido, Estado e mesmo Igreja. Ela permaneceria no entanto o único refúgio do Bem no Ser. Invicta, ela sofre a violência do Mal que, bondadezinha, não poderia vencer, nem expulsar."

"Entre nous" (Emmanuel Lévinas)


Somos mestres na arte do diminutivo, como se sabe. Traduzo "petite bonté" por bondadezinha e logo a canção revolucionária me vem à cabeça, que cataloga essa bondade entre as ilusões demasiado caras ou a hipocrisia social.

Lévinas refere-se à impotência de uma ideia imanente do Bem, de homem a homem, sem ponte para a Utopia e a transcendência. Quando essa ponte é um segredo para nós mesmos, a bondade pode "atravessar os lugares e os espaços em que se desencadeiam acontecimentos e forças".

Mas dar-lhe forma e corpo é transformá-la em objecto entre os objectos e roubar-lhe a inspiração e o ímpeto.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

(Barcelos)

ERÓTICAS





http://www.jonathans.me.uk/pod/not_eros.jpg


Diz Chartier que o homem vulgar é filósofo, mas muito pouco físico, o que é o contrário da opinião do século. E sem dúvida que é assim, porque podemos enganar-nos sobre a força das ideias e o peso das paixões, mas sabemos que somos seres de entendimento e prezamos acima de tudo o acordo com o semelhante, o que é geralmente pensar mal: mal ou bem, isso é pensar ontologicamente e não segundo a experiência.

É que não se entra no mundo de mãos nuas. Passo na rua a cada passo pelo sofista da política, e esta paixão de provar pelo raciocínio faz-me calçar a sandália grega e todo o pé ocioso. Que admira pois que a filosofia desonrada, ao mesmo tempo que nos livrou das escolas, faça de nós criaturas supersticiosas? Nada é mais comum que o culto de Eros. Porque o instinto e a natureza são divinizados e separados das ideias.

A beleza do 'obscuro objecto' é de imaginação. Ao contrário do que pensa o apaixonado, o desejo não persegue nada de real. E todos nós somos falsos sociólogos ao julgar o amor. E é quando no corpo do outro melhor sentimos o mundo que mais traímos a física. É preciso abrir portas e janelas e arejar. Cada belo objecto nos faz tristes como o garoto sem dinheiro diante da montra dos pastéis. A juventude é um fetiche que nos arma ciladas consentidas e mesmo procuradas. Assim o jovem se submete ao moderno culto do 'smart' e da publicidade total, e se perde para si próprio. Quando precisa dum ideal adulto, a sociedade devolve-lhe a infância dos homens. Fazemos estátua do homem que cresce e ele torna-se anão em espírito.

A beleza é um reflexo do sol na água, e não a podemos conhecer. As formas 'eternas' que alegrem e passem. 

domingo, 2 de abril de 2017

(José Ames)

AS MÃOS DE DANTON

(Wiesław Wałkuski: Danton, 1982.)

"Ele dava sem regatear, cumulava os homens e afogava-os em ouro; mas esta era ainda a menor das suas seduções, pois prodigalizava sobretudo a sua eloquência invencível, a sua palavra magnânima, dizendo a um: "Salva a França!", e a outro:"Abrevia a luta, corta o nó da guerra civil." E aos mais rebeldes ao ouro, às palavras, colocava-lhes a mão na mão deles, e não resistiam mais; uma força desconhecida os arrancava a si mesmos; o seu passado, o seu futuro, a sua honra e os seus escrúpulos, tudo desaparecia ante a amizade de Danton."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)

Para Michelet, o grande tribuno encarnava a própria Revolução, no que ela tinha de mais generoso e de mais desconforme. Basta olhar para aquele rosto sanguíneo, duma fealdade quase bestial, para perceber quanto as virtudes republicanas e a moral estóica do modelo romano não lhe eram naturais e tinham de ser objecto de permanente reconquista.

Wadja, no seu filme (1982-"Danton"), confronta o seu temperamento com o do Incorruptível, diante de uma lauta refeição que aquele, ingenuamente, tinha preparado para descontrair Robespierre, numa negociação difícil. Mas o homem do eterno fato verde, gasto, mas impecavelmente escovado, desdenhou com um gesto o assalto de Gargântua.
Foi, porém, do fogo dessa convivência interior com os seus próprios extremos que alimentou o seu grande instinto político, de homem de acção que nenhum princípio abstracto podia confundir.

Foi ele, e não o dogmático Robespierre que com a sua diplomacia secreta, a corrupção e a sedução do inimigo conseguiu desarticular a força vendeana e levar os prussianos a retirar.

Mas esta última pincelada no tão vivo retrato pintado pelo historiador, que é a "imposição das mãos", comunica-nos todo o magnetismo da personagem e evoca o apaixonante mistério que é, como neste caso, o aparecimento de um indivíduo que a determinado momento da sua vida se transcende na encarnação da gesta colectiva.