quinta-feira, 30 de março de 2017

(Porto)

O BARBEIRO PRODIGIOSO



"Woyzeck - Sim, meu capitão, a virtude! Eu ainda não sei o que é. Veja só, nós a pobre gente, não temos virtude, é a natureza que nos empurra, mas se eu fosse um senhor com um chapéu, um relógio, uma casaca, se tivesse aprendido a bem falar, então gostaria muito de ser virtuoso. Mas sou um pobre diabo."
"Woyzeck" (Georg Büchner)

Woyzec é um pobre diabo que acaba por assassinar a mulher movido pelo ciúme. Contudo, nesta fala, nesta confissão de humildade, percebemos toda a ironia e todo o orgulho do autor da peça. Büchner serve-se da simplicidade para confundir os orgulhosos. Mas o Woyzeck real não seria capaz de verbalizar aquela crítica indirecta.

O teatro não é a vida, verdade comezinha. Mas a realidade nunca nos levaria por si só a compreender a situação. Precisamos que a linguagem interceda e, com ela, o artifício e a complexidade das leituras.

quarta-feira, 29 de março de 2017

(José Ames)

SÃO JORGE














É por 'parti pris' que sabemos que o cinema não é a vida. E nenhuma vida se deixa contar, embora o  que sabemos  se limite, talvez, ao que podemos contar, e a apenas isso.

Assim, se entra de chofre na vida de Jorge, um dos muitos rostos da crise social (são os anos da Troika) que Marco Martins, o realizador, escolheu para guia de uma descida aos infernos. Os socos da vida e os do ringue de subúrbio mal nos deixam respirar. Todos os deuses parecem conjurados  contra este rapaz sensível que resiste à claustrofobia do meio familiar, em que um pai se recusa a ser 'freudianamente morto', e o quer separar  da  namorada negra,  a  única ligação a outro círculo 'exterior'.

Além do boxe,  a que não se entrega com a vontade ou o desespero suficientes, para pagar as dívidas, força-se a uma actividade semi-legal, florescente na época, a das 'cobranças difíceis'. O seu fracasso no novo 'emprego', por não conseguir abstrair-se da sua compaixão pelas vítimas, oferece-nos uma última imagem de incerteza e impasse, junto à linha férrea, em que a sua primeira tentativa de 'cobrança' levara o torcionado ao suicídio.

Uma legenda dá-nos conta  no final de que foram criadas nesse período quase duas mil empresas de cobrança que,  apesar das suas práticas abusivas e muitas vezes criminosas, foram toleradas pelo poder político. Perante a riqueza do drama, porém, esse contexto chega a ser irrelevante, tanto quanto qualquer reinvindicação de 'realismo'.

Há no filme 'S. Jorge' e no intérprete Nuno Lopes, a força suficiente para ser algo de memorável no cinema. Os temas que se entrelaçam (o dos conflitos de espaço entre pai e filho ou o de um submundo condenado pela crise e por um 'destino' já interiorizado pela cultura popular) são, na verdade, cifras de uma impotência que parece definitiva, face às forças subterrâneas que movem as personagens, forças das quais fazem parte - não é verdade? - os próprios sonhos e a própria 'liberdade'.

terça-feira, 28 de março de 2017

(Setúbal)


A ARA DA VONTADE




"O quarto dragão, uma besta um tanto misteriosa, é o do exemplo e da natureza dos actos de oração de Weil. Ficamos desapontados, diz Finch, com as suas súplicas de extinção, de "paralisia" perante Deus. Imputamos motivos psicologicamente suspeitos à sua tentativa de alcançar a obediência universal representada pela "matéria muda e inanimada"".
"Paixão intacta" (George Steiner)

No romance de Irvin Yalom "Quando Nietzsche chorou", a tentação do suicídio e as dores de cabeça levam o filósofo a consultar Joseph Breuer, o mentor de Freud. Mas é Breuer que sai transformado desse encontro, em que foi "psicanalisado" por Nietzsche, enquanto este, recuperado o equilíbrio, está pronto para escrever o "Zaratustra", antes de definitivamente perder a razão.

Parece que Simone, para quem as ideias de Nietzsche eram objecto de repugnância, conservou a posse das suas faculdades até ao fim do seu trilho de montanha. Mas, precisamente com este "quarto dragão" (H.L.Finch), dir-se-ia que estamos já em pleno abandono da razão. Por isso, o paralelo com o autor de "Assim falou Zaratustra" não se pode dizer que seja arbitrário. E tal como não podemos ler a obra de Nietzsche como uma antecipação da loucura, como se a contivesse já em si, nas suas palavras e o seu estilo apostrófico, temos, como diz Steiner, de distinguir "entre a singularidade da pessoa, com todos os seus marcadores patológicos, e o peso autónomo da obra."

Contudo, a patologia é por definição sofrida. E será que não podemos conceber a mística weiliana como acção, acção com que se termina a vida separada?

segunda-feira, 27 de março de 2017



(José Ames)

A VIÚVA




"A invenção do dr. Guillotin funcionou pela primeira vez em 25 de Abril de 1792. Ela substituía para todas as classes o machado ou a espada, reservados à aristocracia, a forca ou a roda para o povo."

(nota da tradução de "La mort de Danton" de Georg Büchner, por Michel Cadot)


O carrasco passava a ser um mero assistente da máquina, não lhe sendo exigida nenhuma força ou destreza especiais. A guilhotina não podia falhar. Podia-se controlar ao segundo o instante da morte. Nisso, parecia mais civilizada do que o machado ou a corda. Nada de obscenos estertores, nem de macabra pedagogia. Por isso o seu inventor foi considerado um filantropo.

Mas, sobretudo, a guilhotina era o símbolo da nova igualdade perante a Lei. Nenhum direito ou costume podiam subtrair o condenado à doutrina da Razão que investia o poder revolucionário. A sua silhueta, no que hoje é a praça da Concórdia, anunciava os novos tempos, em que a imagem dissuasora do Inferno se tinha tornado caduca.

O povo chamava-lhe a "Viúva", como se essa morte mecânica significasse ao mesmo tempo o casamento in extremis com a Lei, contra o sentido de qualquer expiação.

sexta-feira, 24 de março de 2017

(Barcelos)

POSSESSÃO


"Salle à manger de la Princèsse Mathilde" (Charles Girard)



"Eu acabava, com efeito, de me aperceber que havia vinte e cinco minutos que estava, que me tinham talvez esquecido, naquele salão, do qual, apesar desta longa espera, só poderia dizer, no máximo, que era imenso, esverdeado, com alguns retratos. A necessidade de falar não impede somente de escutar, mas de ver, e neste caso a ausência de toda a descrição do meio exterior era já uma descrição do estado interno."
"Le Côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Marcel está a ferver por encontrar um interlocutor a fim de poder exprimir as ideias que a conversação com a duquesa e os seus convidados vinha de despertar. Mas esse outro tão desejado não pode ser o barão de Charlus que assim o faz secar naquele vestíbulo e que o vai tratar com a maior das insolências.

São ideias, como ele diz, que não nasceram dentro de si, são ideias "sociais", contraídas numa reunião mundana, e que estão agora tão impacientes por sair, como ele próprio para encontrar-lhes um "hospedeiro".

Essa corrente externa, que já na carruagem o agitara, como a uma "pitonisa", impede-o, realmente de pensar. E é uma observação que nos ocorre fazer, esta de atribuir a essa impaciência viral o medo que algumas pessoas, com intensa vida social, têm de encontrar-se a sós com o vazio que há em si próprias.

Proust era um infiltrado no meio selecto que frequentava. E para que pudesse usar das suas prodigiosas capacidades de observação, teria de ter tido poucas vezes essa urgência de falar.

quinta-feira, 23 de março de 2017

(José Ames)

A PARÁBOLA MODERNA

(Franz Kafka)



"A tristitia, "a tristeza até à morte", presente nos escritos, nas cartas, nos diários e em observações registadas de Kafka parece infinita. Mas também há nele um sátiro da sociedade, um artífice do grotesco, um humorista com veia para a comédia inferior. Tem acesso ao humor sem expressão, às acrobacias de Buster Keaton. Ao ler perante um círculo de amigos aterrados o mais negro dos mitos modernos, A Metamorfose, Kafka dobrava-se de riso."

"Paixão intacta" (George Steiner)

Kafka, "traidor" ao nacionalismo checo e ao renascimento do hebraico, escreve em alemão.

"O vocabulário e a sintaxe de Kafka são extremamente sóbrios; como se todas as palavras alemãs e todos os recursos gramaticais tivessem sido arrancados a um prestamista impiedoso."(ibidem) É assim que forja as suas parábolas, marcadas pelo absurdo e pela culpa.

Se pensarmos na justificação de Cristo para as parábolas do Evangelho, teremos de procurar no homem moderno o equivalente desse entendimento fechado à linguagem de todos os dias tanto como à da ciência e da sabedoria mundanas.

Depois deste insigne antecedente, a parábola é virtualmente portadora de um sentido messiânico. Se a "opacidade dos tribunais" e a "lógica lunática da burocracia" que transparece nos romances inacabados de Kafka parecem reflectir, como num espelho que adivinha, a imagem dos regimes totalitários, "das nossas profissões, litígios, vistos e práticas fiscais", talvez que a originalidade e a precedência (que temos tendência a chamar de profética) de Kafka tenham alguma coisa a ver com isso.

As parábolas de Kafka já estavam à espera para dotar de sentido o nosso monstruoso. Se as adoptamos, é por falta de outras parábolas e, no fundo, por causa da sua eficácia, porque, como diz Steiner, Kafka é fiel a uma tradição duas vezes milenária.

quarta-feira, 22 de março de 2017


Alcafache 

A MASSAGEM DA COMUNICAÇÃO

Marshall McLuhan (1911/1980)

"Só que o ser humano já não é o sujeito da comunicação. A comunicação constituiu-se em sistema autónomo. Não são os homens que comunicam, segundo a teoria dos sistemas, mas a comunicação, enquanto sistema, que comunica consigo mesma. Enquanto sistema auto-referencial, a comunicação está fechada sobre si própria, mas tem necessidade da consciência como meio ambiente."

"(...) A comunicação comunica e não pensa; a consciência pensa e não comunica."
"Do prefácio de Lukas K. Sosoe a "La Confiance", de Niklas Luhmann"

Não vem esta ideia na directa descendência do célebre "O medium é a mensagem" de Marshall McLuhan? Também o teórico canadiano nos confrontava com o paradoxo de, no momento em que pensávamos que só os conteúdos, e só eles, podiam transmitir uma ideia, explicita ou implicitamente, eis que a ideia, na verdade alargada à percepção e ao comportamento, se encontra no que considerávamos um simples instrumento, uma técnica semioticamente neutra.

Se a comunicação é um sistema, não pode ter um sujeito que a pense. Em contrapartida, deve reger-se por uma lógica própria e distingue-se dos outros sistemas por o seu "conteúdo" ser precisamente a mensagem.

Sabemos que a consciência não pode transmitir-se directamente e que a linguagem, enquanto medium, nos impõe o seu próprio código. Mas é mais fácil conceber a comunicação como um sistema, com as suas regras de produção e o seu protocolo de difusão, do que fazê-lo em relação à linguagem.

Assim, qual é a "massagem" da mensagem, enquanto comunicação?

terça-feira, 21 de março de 2017

(José Ames)

FAMILIAR ABERRAÇÃO

Georg Büchner (1813/1837)


"- O Doutor: Woyzeck, tu constituis uma soberba aberratio mentalis partialis, segunda categoria, lindamente caracterizada. Woyzeck, vais ter um suplemento. Segunda categoria, ideia fixa, estado mental geralmente satisfatório.

Continuas a fazer tudo como habitualmente, fazes a barba ao teu capitão?
- Woyzeck: Sim, claro.
- O Doutor: Comes as tuas ervilhas?
- Woyzeck: Sempre como é preciso, senhor doutor. Dou o dinheiro à minha mulher para a casa.
- O Doutor: Fazes o teu serviço?
- Woyzeck: Sim.
- O Doutor: Um caso interessante. Sujeito Woyzeck, terás um suplemento. Conduz-te correctamente. Dá cá o teu pulso! Ora aí está."

"Woyzeck" (Georg Büchner)


A nota da tradução explica que "aberração mental parcial" designava, na época, o comportamento de indivíduos que perseguem fins quiméricos, usando meios aparentemente razoáveis (Michel Cadot).

A psiquiatria nos seus começos esgotava-se na classificação. O doutor da peça de Büchner compraz-se na definição latina, como o médico de Molière. As drogas de hoje, cada vez mais poderosas, podem de tal maneira modificar o comportamento que a doença original se torna um palimpsesto, passando o seu diagnóstico a uma espécie de língua morta.

A explicação de Cadot deixa supor, com aquele advérbio, que os "meios e os métodos" se servem da razão como disfarce para de facto levar água ao moinho da loucura. Mas já sabemos, desde Platão e o "Tratado das Paixões" de Descartes, que, em todos nós, a razão continuamente encobre e justifica os nossos desejos e paixões.

Woyzeck seria, nos nossos dias, contemplado com uma percentagem, muito redonda, de esquizofrenia. E, com isso, não se chegaria menos a mão à faca do crime.

segunda-feira, 20 de março de 2017

(Almada)

O GIZ E A LOUSA



Poucos se dão conta de que, como diz Hannah Arendt, a essência da educação é a natalidade, "o facto de que os seres humanos nascem no mundo".

Os professores, as pessoas que trabalham no ensino, as escolas e os seus equipamentos, só se justificam pelo facto dos que chegam ao mundo trazerem a "ardósia" completamente limpa, como se nenhum cálculo e nenhuma frase tivessem sido ainda inventados.

Nessa passagem de testemunho, está toda a nossa esperança. Não importa que o passado nos contemple das platónicas alturas, se educarmos os novos como estranhos a esse passado. Durante séculos, vigoraram alguns preconceitos que garantiam o crescimento da árvore humana a partir das suas raízes.

O espírito crítico (que nasceu na Grécia Antiga), responsável pelos grandes avanços da ciência, torna-se criticista quando esquece que "o desaparecimento dos preconceitos significa muito simplesmente que perdemos as respostas sobre as quais normalmente nos apoiamos, sem nos darmos conta de que na origem elas eram respostas a questões." ("La crise de l'éducation" - Hannah Arendt)

sexta-feira, 17 de março de 2017

(José Ames)

A METÁFORA DOS DEUSES

Máscara de Agamnénon


"O sonho, determinado por Zeus numa forma precisa, atravessa o sono de Agamnénon e ressurge, inalterado, no discurso público.
(...) Como sabemos, o sonho é uma armadilha preparada por Zeus para vingar o ultrajado Aquiles. Atravessa as Portas de Marfim carreando falsidade."

"Paixão intacta" (George Steiner)


O rei deseja a vitória favorecida por Hera, à frente dos "Aqueus de cabelos longos", sem o concurso do detestado Aquiles. Steiner diz que é o estatuto de Agamnénon que dá a veracidade ao sonho. Mas a sorte adversa e o grande ímpeto dos Troianos forçam o rei a pedir o auxílio ao filho de Peleu.

A explicação psicológica deste sonho, de como o sonhador se ilude a si mesmo, tomando o desejo pela realidade (ou pela profecia), graças, certamente, à linguagem poética do entrecho sonhado, não esgota, porém, a "produtividade" deste "sonho sinistro".

É aí que entram Zeus e Hera e o mensageiro ( o Sonho). E esta personificação das "Forças" exprime fortemente o homem no seu ambiente, que é ao mesmo tempo natureza e sociedade.

Enquanto que a psicologia, não é verdade, faz supor que tudo começa e acaba na cabeça de Agamnénon.

quinta-feira, 16 de março de 2017

(Antas)

A MINHA ESTAÇÃO PREFERIDA

"A minha estação preferida" (1993-André Téchiné)


Os irmãos Emilie (Deneuve) e Antoine (Auteil), reconciliados, convidam a mãe para a festa de Natal, mas a noite acaba em discussão. A doença da mãe ocupa a frente da cena, mas na tumultuosa relação entre os irmãos paira o perigo do incesto.

Numa cena que surge sem qualquer naturalidade, mas que o progresso da história exigia, Emilie é abordada sexualmente por um enfermeiro no hospital quando vai visitar a mãe. E  se lhe cede, percebemos que é apenas para esclarecer, aos seus próprios olhos, o sentimento fraternal.

É o que significa a sua brusca mudança de atitude, logo a seguir, em relação a Antoine, levando a que este entre à força em sua casa, expondo ambos ao significado duma violação.
Depois da morte da mãe, é Emilie que indica o caminho da salvação para ambos no poema que lhe dedica diante de toda a família reunida.

quarta-feira, 15 de março de 2017

(José Ames)

ARTE E VERDADE


(The Rothko Room at the Phillips Collection, Washington D.C.)








"A arte e nada mais do que a arte; temos a arte a fim de não morrermos da verdade."

(Friedrich Nietzsche)


Este aforismo ainda diz muito ao nosso tempo. Mas não saberíamos que valor atribuir à arte se não fosse o mercado a dizê-lo. É a sua prova de contrastaria. Nesse sentido, a arte ter-se-ia tornado o principal adereço da câmara funerária, para nos acompanhar na vida eterna em outro Vale dos Reis. Seria o significado de tantas fundações de 'mundanos' convertidos em artigo de morte (se nos conseguirmos libertar da explicação mais cínica, a de dourar/ branquear o nome e ganhar nos impostos dinásticos).

Mas o filósofo das grandes blasfémias descarta essas minudências. A velha dicotomia entre o corpo e o espírito não  estorva a sua imaginação. Ele, que nos últimos anos de vida, 'somatizou' para grande escândalo do 'espírito', tornando-se o símbolo do desvario sem perdão. O génio humilhado apontado  aos caminhantes nas encruzilhadas, como lição de pensar segundo as normas consagradas, as academias ou o simples 'bom senso'.

Diz Carlos Vidal ('Invisualidade da pintura') que "a verdade é uma irrupção de uma novidade fortuita que se subtrai ao conhecimento (...), à comunicação, à opinião e, sobretudo à experiência."

Desde que nos tornemos incapazes  de acreditar na Ideia platónica ou cristã e no emprendimento salvífico da revelação, a verdade perde a perspectiva das perspectivas; tem de abandonar a sua plataforma no espaço exterior ou interior; tornar-se irrupção da novidade 'fortuita', tornar-se acontecimento.

Em que é que Nietzsche foi o profeta deste 'estado da arte'?  E que ameaça viu ele na verdade e arte separadas? Será a arte a 'prótese' por excelência que nos permite ver sem realmente ver? Dar sentido a um mundo que não pode ser 'lógico', nem 'material'? Sentido que se aprende à margem das evidências do corpo-espírito?

terça-feira, 14 de março de 2017

(Pula)

PROMESSAS PERIGOSAS




Perante um filme como "Eastern Promises" (2007-David Cronenberg), eficaz a todos os títulos, perguntamo-nos o que significa, na sua economia, o voyeurisme de algumas cenas de violência.

E a verdade é que a história funcionaria sem isso, com um pouco mais de bom gosto e de bom senso, recorrendo à elipse ou ao fora de cena. Mas Cronenberg pretende mais do que uma compreensão intelectual da tragédia destas personagens. E aqui é a ética do cinema como espectáculo que é posta em causa.

Uma violência tão explícita como que nos mete na pele de Nikolai (Viggo Mortensen), o infiltrado da polícia na mafia russa, no juramento iniciático, quando tem de convencer o seu júri de "padrinhos", tal como na religião, de que abandonou pai e mãe e de que a morte se lhe tornou indiferente, desde os 15 anos de idade.

Londres é irreconhecível neste huis-clos, sem exteriores, nem paisagem, nem monumentos. O bebé da escrava de 14 anos que morre no parto é salvo no último momento, e o seu ADN fornecerá a prova que vai permitir prender Semyon (Mueller-Stahl), o patrão da mafia londrina.

Desesperada é a despedida de Nikolai, promovido ao lugar do chefe, de tudo quanto pode prender à vida uma pessoa normal, como esse amor nascente pela jovem enfermeira (Naomi Watts). Neste mundo subterrâneo, os deuses infernais conduzem o destino dos homens.

Podemos ver o filme de Cronenberg como uma fábula que encena essas forças secretas que espiam uma oportunidade para deixarem as furnas da clandestinidade e se tornarem a lei, fazendo soçobrar as maiorias saudáveis e entregues à felicidade do desperdício numa normalidade de pesadelo.

A história do século XX é o fantasma que habita esse sonho mau.

segunda-feira, 13 de março de 2017

(José Ames)

TRISTES TATUAGENS


(Viggo Mortensen em "Promessas Perigosas"

de David Cronenberg



O "var", que vai receber as novas insígnias, encontra-se nu diante do júri, como um livro aberto.

A sua carreira na sociedade secreta está inscrita nas tatuagens do corpo, e ele é literalmente decifrado. As suas respostas não podem afastar-se do texto-pele.

Uma vez passada a prova iniciática, e no lugar do "boss" encarcerado pela polícia, a quem deve ele lealdade: aos sucessores do KGB que o mandaram em missão para os covis da máfia londrina, ou ao Mal de que se tornou o símbolo e a letra?

A imagem final do filme de Cronenberg sugere-nos o lugar-comum da solidão do poder. Mas o poder da solidão vem-lhe dessa "tristeza até à morte" (a tristitia).

domingo, 12 de março de 2017

(Alcácer do Sal))

COMER A HISTÓRIA

Roland Barthes (1915/1980)


"Michelet caminheiro: (...) essa viagem conhece dois momentos em que todo o corpo do homem se envolve: ou o mal-estar da marcha, ou a euforia do panorama. (...) esta dupla captura é toda a História de Michelet. Evidentemente, os momentos mais numerosos são o incómodo, a fadiga duma marcha cega, toda pegajosa duma substância histórica ingrata, de causas miúdas e incolores, e, para dizer tudo, próxima do historiador-viajante. É o que Michelet chama: "remar" (Remo em Luís XI. Remo em Luís XIV. Nado penosamente. Remo vigorosamente em Richelieu e na Fronda). Ora o mergulho implica uma assimilação incompleta da História, uma nutrição falhada, como se o corpo, afundado num elemento em que não consegue respirar, se encontrasse obstruído pela proximidade mesma do espaço."

"Michelet" (Roland Barthes)

Esta forma de "conceber" a História, de a "comer", de com ela alimentar o corpo doente, sujeito a oscilações de ritmo e de humor que se convertem na matéria narrada, patinhando no assunto com as botas do Grande Exército em retirada, ou sobrevoando a cena como a águia da Campanha de Itália, é uma operação mediúnica que transforma a prolixidade dos factos em vozes que falam através do corpo do historiador.

A "euforia do quadro" de que fala Barthes não é, evidentemente, a da verdade (como os factos realmente ocorreram - mas de que ponto de vista?), é antes a do sentido que permite filiar esse quadro no tempo. As suas personagens param aí um momento nas suas diversas atitudes, antes de mergulharem no torvelinho da acção, mas onde, graças àquela pausa, é possível identificá-las e seguir o seu percurso como ao peixe em que se implantou um pequeno transmissor.

sexta-feira, 10 de março de 2017

(José Ames)

A VERDADE COMO PAIXÃO

("La Verité", Henri-Georges Clouzot)

"A verdade não é uma virtude, mas uma paixão. Daí que não seja nunca caridosa."
(Albert Camus)

O médico que quer poupar o  doente susceptível não lhe diz a verdade, ou a verdade toda. Isso é humano e, sem dúvida, virtuoso (afinal, a sua missão é 'salvar' e não apressar a morte). Mas se insiste em que o seu dever é não esconder a realidade ao doente e proclamar a verdade nua (a diplomacia já é, na verdade, uma concessão), então, não é como médico que age, mas como um apóstolo da religião da verdade.

E será mesmo a verdade que motiva esta paixão? Alguém a possui fora de si mesmo? Ou é uma opinião apoiada em factos que podem igualmente justificar outras opiniões?

A ideia de Camus contém todo o 'existencialismo' que, entretanto, passou de moda, mas que continua  a influenciar a filosofia moderna (Badiou, por exemplo). A verdade pertence à subjectividade, não há 'essência' pré-existente, nenhuma Ideia que a pré-condicione. Não está entre as coisas do mundo, como um objecto, seja um tratado de geometria ou a arte incorporada  numa catedral. É da ordem do acontecimento e não do inventário.

Contudo, não deveria a verdade ter algo a ver com a realidade? É natural que o apaixonado pela ideia da verdade confunda as duas coisas. Mas a realidade 'real', e não a que corresponde ao étimo (as coisas), é o que tem de ser coberto/encoberto pela linguagem sob pena de nos perdermos.

quinta-feira, 9 de março de 2017

(Porto)

MISÉRIAS E ESPLENDORES




"O horror coexiste sempre com a beleza, com o amor. A história, que tenho contado, da mulher daquele bombeiro que morreu. Não queriam deixar, mas ela foi ver o seu corpo ao hospital, e o médico disse: ‘Isto que está aqui não é a pessoa que amas, mas um objecto, que tem de ser destruído’. É uma história de morte, mas também de amor. Porque esse lado também existe sempre, na vida. E eu procuro evidenciá-lo, nos meus livros. Não quero apavorar os leitores com tanto horror. Procuro sempre algo de bom que sobrevive. Algo que nos faça acreditar no futuro. Que nos mostre que há salvação. Como escritora, gostaria de percorrer esse caminho de purificação."

(Svetlana Alexievich, em entrevista ao 'Público', 27/4/16)

Como pano de fundo desta confissão, a guerra, tragédia de sempre, mesmo quando é motivada por uma grande ideia (e já se disse que a pior das guerras é a de religião) e Chernobyl, tragédia moderna, como a anunciada em 'Metrópolis' de Fritz Lang, a da ordem paranóica e da técnica cega, mágica, e, apesar de tudo, necessária porque não há regresso possível, nem a sabedoria de um novo Platão teria respostas para lá da utopia e de um 'novo começo'.

Svetlana acredita que há salvação e que o escritor tem uma missão. Nada disso, porém, encontra qualquer justificação no presente ou no futuro que ninguém sabe o que será. É já precisa uma boa dose de imaginação para pensar que as ideias de continuidade, evolução ou 'progresso' se impõem por si mesmas.

A 'salvação', ou a fonte de inspiração para alguém como Simone Weil, por exemplo, só pode estar no passado, nos monumentos da humanidade, nas 'vidas ilustres' e comuns que nos trouxeram até aqui. Ninguém pode inspirar-se no vazio, ou numa utopia que se descarte das nossas misérias e dos nossos esplendores.

Mesmo quando diz que o comunismo pode não ter morrido e talvez ressurja num 'país rico', a escritora não faz mais do que reiterar a grandeza da ideia contra os horrores da sua realidade ou da sua usurpação pelos tiranos de sempre.


quarta-feira, 8 de março de 2017



(José Ames)

COMBUSTÃO




"Somos atraídos por toda a vida que nos representa alguma coisa de desconhecido, por uma última ilusão a destruir."

"Le Côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Quanta "ammarezza" nestas palavras!

O autor aqui toma a palavra ao narrador e fala como um homem que já encontrou o tempo, que percorreu a estrada da vida apenas para voltar ao mesmo lugar, enquanto aos seus olhos medusantes, como no final heraclitiano do "2001", as personagens desaparecem numa combustão vertiginosa.

Por outro lado, a ilusão a destruir talvez não seja senão a chama da vida, que ao mesmo tempo que se consome ilumina.

terça-feira, 7 de março de 2017

(José Ames)

IMPERFEIÇÃO



Albert Einstein, cuja religiosidade podia abranger o espírito de todas as religiões,  terá dito uma vez que  Deus era 'subtil',  mas  não 'malicioso'. E Descartes disse, três séculos antes, algo de semelhante, que só um Génio malicioso (malin) podia enganar-nos de tal maneira que aquilo que parece evidente à nossa razão fosse afinal um embuste, uma armadilha do próprio Criador, para nos salvar de nós mesmos, por inveja da nossa audácia prometeica, ou por qualquer outro insondável 'motivo'. Isso, todavia, chegava-lhe para afirmar, sem sombra de dúvida, a nossa própria existência.

Claro que a hipótese mais simples é a de um Deus que não sabotasse a sua própria criação. Mas a subtileza tampouco se adequa ao caso. Por que haveria Deus de ser subtil, a subtileza sendo uma qualidade ambígua que tanto pode significar uma vontade de pôr à prova, como de embaraçar, criar dificuldades, exibir uma penetração fora do comum ou a mais sofisticada arte da diplomacia, tudo, enfim, demasiado humano?

O mais certo é que o cientista se tenha  servido de uma metáfora para significar o que é de facto uma impossibilidade que é a de caracterizar o 'Ser supremo'. Mesmo o cristianismo que encontrou no mediador a sua 'quadratura do círculo' se confronta com o 'silêncio' de Deus, como o recente filme de Scorcese tão exemplarmente o explica.

No fundo, a metáfora obrigatória só fala de nós e da grande imperfeição que tanto a razão como o sentimento não podem deixar de assacar-nos.