domingo, 28 de novembro de 2010

Elvas: Forte da Graça (José Ames)

TOMAR A PALAVRA

Gilles Deleuze


“A filosofia o que é? A filosofia é qualquer coisa que nos diz, em primeiro lugar: tu não te exprimirás. Tu não te exprimirás. No ano passado, eu falava desses apelos que eram o único lado mau de 1968: exprime-te, exprime-te, toma a palavra. Quando, mais uma vez, não nos damos conta que as forças mais demoníacas, as forças sociais mais diabólicas são as forças que solicitam, que solicitam que nos exprimamos. São essas as forças perigosas. Considerai a televisão, ela não nos diz: cala-te, ela diz todo o tempo: qual é a tua opinião, qual é a vossa opinião sobre isso, qual é a vossa opinião sobre a imortalidade da alma, sobre o génio de Pivot, sobre a popularidade de Maurois, etc. E depois é preciso que vos exprimais (…). Eu digo que é um perigo, um perigo imenso. É preciso conseguir resistir a estas forças que nos forçam a falar quando não se tem nada a dizer. (…) Em todo o caso, sabe-se que a filosofia não é o confronto de opiniões. Portanto, filosofar não é eu dizer por exemplo: quanto a mim, eis o que eu penso, e vocês dizem-me: bem, eu não penso assim. Na medida em que sois filósofos recusaríeis participar numa conversação deste tipo.”

“Les Cours de Gilles Deleuze”



A filosofia não é expressão (da pessoa, do que nos vai na alma ou, simplesmente, do que nos parece ser nosso mas é tão-só a “voz corrente”). É, segundo Deleuze, a criação de conceitos, daquilo que poderia merecer o acordo dum espírito universal.

Apesar das ideias aparentemente inconciliáveis dos filósofos, compreender os conceitos de cada um é o contrário de procurar opiniões divergentes. Assim como os diferentes mitos religiosos nos dão a mesma verdade sob diversas formas, em filosofia não há os que são “verdadeiros” dum lado e do outro os que o não são. Os grandes criam algo de novo, os outros apenas imitam. Mesmo um artista deve representar aquilo que é, em vez dos seus gostos, dos seus desejos ou dos seus humores.

As forças sociais que nos querem arrancar a palavra são “diabólicas” na medida em que exercem o seu controlo graças a um simulacro de participação.

sábado, 27 de novembro de 2010

A AUTARQUIA


1900: o dealbar do telefone público


“É preciso sem dúvida reagir fortemente contra a ideia clássica do valor eminente da autarkia, da suficiência de si para si mesmo. O perfeito não é o que se basta a si próprio, ou, pelo menos, essa perfeição é a dum sistema, não de um ser… Sob que condição a relação que liga um ser àquilo de que tem necessidade pode apresentar um valor espiritual? Parece que aí deve existir uma reciprocidade, um despertar. Só uma relação de ser a ser se pode dizer espiritual… O que conta, é o comércio espiritual entre seres e trata-se aqui não de respeito, mas de amor.”


“Journal Métaphysique” (Gabriel Marcel, citado por Emmanuel Levinas in “Entre Nous”)



Já Spinoza dizia que cada ser tem a sua perfeição que não é a perfeição de outro. Como poderia a auto-suficiência aproximar-se disso, quando na própria linguagem e no pensamento, que é tudo menos “autárquico”, temos flagrantes exemplos de que precisamos dos outros seres? Não apenas dos “outros”, nem a relação espiritual pode ser apenas com o humano, porque antes de homens já somos mais do que “pó das estrelas”.

Podemos, de facto, imaginar um sistema social perfeito na base do respeito mútuo. Mas essa não seria uma sociedade humana. Todas as saídas para a verdade estariam tapadas pelo betão ideológico. Essa sociedade poderia até ter a sua “conquista do espaço” e a sua teoria do “começo do mundo”, para glória da civilização e para resposta às questões mais óbvias.

Mas o acesso às fontes seria o segredo mais bem guardado.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Gaia (José Ames)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

(José Ames)

RESPONSABILIDADE




“A resolução de tomar a responsabilidade por algum pedaço do mundo na ausência de fundamento metafísico convincente é parte do que significa crescer nele.”

“Evil in modern thought” (Susan Neiman)



Responder pelo que conhecemos ou pelo que é nosso? Certamente que da parte do mundo em que crescemos conhecemos apenas uma história que mais ninguém reconheceria, porque é interior. Que revelações não nos esperam ainda na nossa cidade se quisermos abrir-nos a elas? E então se quisermos saber o que são as pessoas que nela vivem…

Por isso entendo aquela responsabilidade de que fala Neiman como se referindo menos a um pedaço do mundo, a um local ou a uma teia de relações, do que àquilo que somos para os outros que nos conhecem.

Mas é verdade que até a arquitectura duma cidade e os seus pontos de vista fazem parte daquilo que nos faz fiéis a nós mesmos e, do mesmo passo, responsáveis.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Furadouro (José Ames)

O ELOGIO DA PREGUIÇA





“Num reino do Antigo Regime, um pobre não tem dignidade cívica; se a razão de Estado o exige e se a autoridade do rei ou o estado das técnicas o permitem, não se hesitará em forçá-lo a trabalhar, a moral reinante permitindo considerar que, ao arrancar o pobre à preguiça, se está a fazer com que se esforce pela sua salvação; mais tarde uma moral do trabalho já não dirá que a obrigação que se comete aos pobres de trabalhar é um dever, mas antes que a necessidade em que toda a gente se encontra de trabalhar é uma dignidade.”

“Le pain et le cirque” (Paul Veyne)



A moral cristã, “retomando a moral popular, contra a moral cívica e oligárquica, fará trabalhar a pobre gente servindo-se da sua própria linguagem.” (ibidem)

A dignidade do trabalho era desconhecida no paganismo, quando muito aconselhavam-se os patrícios a ter uma actividade qualquer, para não “amolecerem”.

A origem da palavra trabalho, tripalium, um instrumento de tortura (embora também tinha sido uma ferramenta agrícola), evoca até um certo dolorismo de natureza religiosa. Com estes antecedentes, a tese de Max Weber que relaciona o período de acumulação primitiva do capital com o protestantismo parece fazer todo o sentido. Não se pode dizer, contudo, se esta moral está na origem do desenvolvimento do capitalismo ou se é a consequência dele…

O certo é que a ideia da dignidade do trabalho se encontra fortemente posta em causa num tempo, como o nosso, em que grassa o desemprego de longa duração ou sem qualquer esperança, e em que existe toda uma cultura justificando a acédia, essa preguiça condenada por S. Tomás e Dante, tão necessária ao espírito do consumismo.

Por outro lado, já não se faz sentir a influência da religião nesse debate a favor da dignidade do trabalho.

Não tem qualquer sentido hoje dizer-se que a necessidade de trabalhar nos dignifica a todos, porque isso reduziria à indignidade uma multidão, onde os que a merecem se misturam com a maioria que não a merece.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

(José Ames)

UM AI QUE ATÉ QUE SOA



Um amigo meu dizia que quando nos batem, e não podemos retorquir, ao menos podemos dizer ai.

Eu tenho lido o que se diz sobre a greve de amanhã e não vejo que a defendam de outro modo. Porque uns dizem que não serve de nada, mas mostra que estamos vivos, outros que se espera criar com ela uma dinâmica, como se o movimento pelo movimento fosse alguma saída, e até já ouvi um dirigente sindical admitir, por outras palavras, que a greve nos evitará uma explosão social, ao canalizar o descontentamento e a revolta, o que me parece mais próximo da verdade do que a esperança numa dinâmica cega.

Porque todos sabemos que o problema não é só do governo que temos, mas do leito de Procusta em que os credores e os maus parceiros da União Europeia querem que nos deitemos. E de como chegamos a este aperto é uma pergunta que, infelizmente, não devemos só dirigir aos governos e aos predadores estrangeiros e nacionais, como os do BPN e do BPP. Tem algo a ver connosco, mas, claro, não com os pobres dos pobres.

Tal como os países da UE que não sabem fazer a união e deixam que mande o mais forte, assim ou pior estão as forças sociais da Europa. Aquilo que poderia criar uma verdadeira dinâmica de mudança no sentido da integração e duma verdadeira estratégia económica e social está desarticulado e sem qualquer préstimo.

É por isso que a greve geral será sobretudo força de expressão, que nos deixará frustrados e prontos para o que vier a seguir, porque tudo ficou na mesma e vai ser preciso pagar ainda o país parado.

Vamos, quero crer, soltar um grande ai batendo em nós próprios, talvez com a remota esperança de que, como diz o secretário-geral da CES, que a greve  seja um sinal para a Europa dos trabalhadores…

Mas ninguém disse que a política era racional.


segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Guincho (José Ames)

CÓPIA CONFORME





Surpreendente este “Copie conforme” de Kiarostami! A meio da história damos por nós a sorrir com a mudança do jogo entre o inglês James Miller (William Shimell), que acaba de apresentar um livro com o título do filme, e “ela” (Juliette Binoche), uma francesa com uma loja de antiguidades em Arezzo. Eles deixam o flirt turístico para simularem um reencontro de antigos amantes que nunca existiu, no próprio local (Lucignano) da sua “lua-de-mel”, como se, para ilustrar a tese de Miller, copiassem a realidade e no fim  não se soubesse qual era mais valiosa, se a vida ou a imitação dela.

Ela está realmente enamorada ou representa apenas um amor que sobreviveu à separação? A docilidade com que o seu parceiro segue esse jogo até ao ridículo só se pode explicar pelo seu desejo de acreditar na ficção e, talvez, por uma espécie de coerência intelectual por aquele ser o tema do seu ensaio.

Não sabemos, no último plano, se Miller vai tentar apanhar o comboio das nove, como disse, ou refazer o original da sua vida.

Mas ao contrário do miúdo diante da cópia, na Piazza della Signoria, a quem a mãe não achou necessário dizer que o original do David estava na Accademia, Miller sabe-o. Poderá continuar a fazer de conta, ou isso de facto não importa? A vida a dois começaria por um jogo de adultos, como se a felicidade não fosse interrompida por começar no teatro.