segunda-feira, 15 de novembro de 2010

DO DIÁRIO DE ETTY

Etty Hillesum (1914/1943)


É neste ponto preciso que se introduz o vago e a generalização. Eu julgo provavelmente abaixo da minha dignidade intelectual falar do meu ventre (apelação grosseira e crua, é verdade, para uma parte do corpo tão importante). Se eu quisesse dizer alguma coisa sobre os meus humores de ontem à noite, deveria  fazer notar antes de tudo com toda a franqueza: era a véspera do meu período, e nesses dias eu só sou meio-responsável. (…) tudo em mim está em revolução e em movimento. Impaciência, dispersão, intrepidez por vezes, são as marcas deste fenómeno feminino que se repete em mim, infelizmente, todas as três semanas.”

“Journal 1941/1943” (Etty Hillesum)


Ao ler estas linhas do diário de uma das mulheres mais generosas que conheço, choca-me aquele infelizmente. Porque todas as  nossas necessidades naturais poderiam cair sob o mesmo juízo e ser vistas como uma maldição.

A referência à responsabilidade ajuda-nos , porém, a compreender o seu espírito. O sentimento de Etty é o de alguém que quer estar sempre “com as luzes acesas”, para aprender e estar disponível para o seu semelhante. É verdade que quando dormimos não somos responsáveis, mas também não agimos (mesmo os “actos” dos sonâmbulos não são imputáveis).

Etty acrescenta a essa extra-territorialidade do humano, embora só em parte, um fenómeno especificamente feminino.

A liberdade que tanto prezamos ocupa, de facto, toda a cena. Mas basta um olhar atrás da cortina para nos apercebermos da estranha maquinaria de que ela depende.

1 comentários:

Anónimo disse...

O "infelizmente" será a pensar na cascata de sentimentos e emoções que nos inunda com uma periodicidade regular; não tanto a "necessidade" biológica que está subjacente a essa torrente e que, naturalmente, é uma dádiva.
Maria Helena