domingo, 31 de janeiro de 2010


Luines (José Ames)

O PODER DOS INSTRUMENTOS



A luneta de Galileu


"Gostaria de pensar que com uma luneta maior eu seria mais sábio; todavia não é tão simples; à medida que um instrumento é mais poderoso, é preciso pensar mais para tirar alguma coisa dele. O microscópio confunde o ignorante, em nada o instrui."

"Vigiles de l'esprit" (Alain)


Diante de qualquer computador pessoal, somos menos instruídos do que confundidos. Para fazer com ele aquilo de que precisamos, não temos de pensar mais à medida em que eles se tornam mais potentes. É o contrário que acontece, com os ambientes amigáveis e os ícones que podemos tocar ou abrir com um clique, em vez de escrever a instrução como se fazia nos primeiros sistemas operativos.

É verdade que um grupo de pessoas tem de pensar esses maravilhosos instrumentos, pelo menos enquanto não inventarmos as máquinas que se desenvolvam a elas mesmas. Mas a imensa maioria serve-se dos computadores como se fossem obra de um Demiurgo.

Contudo, diferentemente dos que nos antecederam, não precisamos dum Darwin para nos explicar como evoluíram as espécies.

Sabemos muito bem que antes do computador apareceu a máquina de calcular e que os gigantes da informática podem nascer numa garagem.

sábado, 30 de janeiro de 2010


(José Ames)

A OBSESSÃO PELO DÉFICE


http://blog.lsinsight.org/uploaded_images/Obsession


Parece legítimo alguém se preocupar com o facto de dever dinheiro e das suas despesas ultrapassarem o seu rendimento. Mas se transpusermos a situação para um governo, tudo muda porque aí entramos na economia ou na economia política que, como se sabe, não são ciências exactas e, nesse domínio, os milagres passam a ser possíveis.

Claro que há uma grande diferença entre ter de responder por uma política e criticar essa política sem ter de responder por nada. No primeiro caso, a situação financeira e a economia são sempre um teste à capacidade de governar e por isso são algo de real. No segundo, apesar da crítica ser o oxigénio da democracia, são, na maior parte dos casos, palavras armadas que produzem tão-só o facto político.

É por isso que a preocupação pode dar lugar ao conceito de obsessão pelo défice. Note-se que a obsessão é do foro psiquiátrico e já não são precisas soluções alternativas porque o objecto da preocupação desapareceu e, em vez dele, como por milagre, temos apenas o sujeito doente.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010


Beja (José Ames)

A OBJECTIVIDADE DAS EMOÇÕES


Ludwig Van Beethoven (1770/1827)

"De acordo com a minha teoria objectivista (que não nega a auto-expressão mas acentua a sua completa trivialidade), a função realmente interessante das emoções do compositor não é que devam ser expressas, mas que podem ser usadas para testar o sucesso ou a adequação, ou o impacto da obra (objectivos). O compositor pode usar-se a si mesmo como uma espécie de corpo experimental, e pode modificar e reescrever a sua composição (como Beethoven muitas vezes fez) quando está insatisfeito com a sua própria reacção; ou pode descartá-la por completo."

"Unended Quest" (Karl Popper)


A questão parece-me tão óbvia que nem consigo imaginar alguém que escrevesse alguma coisa de jeito sem a "provar" no seu foro interior. Por maioria de razão, numa arte como a música, em que se trata menos de julgar do que sentir e "ver o efeito".

Mas alguém, como se diz que era Mozart, que fosse capaz de ter toda a música na cabeça poderia, além disso, apreciá-la visualmente, pela inteligência da sua construção.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010


(José Ames)

A PAPINHA ESCOLAR



"E a directora expõe-me um critério que me impressiona. A indolência nos estudos não vem da sua dificuldade, como crêem os demais, mas da razão contrária. Os meninos e os jovens deparam-se em vez disso com estudos demasiado fáceis e que eles superaram há muito tempo, pelo menos na matéria do seu agrado; daqui a atonia mental. É preciso dar maior crédito à precocidade e à capacidade do homem. Este princípio é tão justo e tão sufragado pela experiência que quero oferecê-lo por minha vez ao leitor."

"Viaggio in Italia" (Guido Piovene)


Este é um passo dos apontamentos da viagem por Itália de Piovene, no princípio dos anos cinquenta. Aqui trata-se da escola Montessori criada pela indústria Falck em Sesto S. Giovanni, na Lombardia.

O que vemos é que, mesmo antes da televisão e dos jogos electrónicos, o ensino "mastigado", com a alça baixa, já fazia os seus estragos.

Hoje, um outro inimigo dum ensino à medida do homem são as estatísticas. Podemos suportar o crescimento real da iliteracia, mas não uma opinião desfavorável quando, no estrangeiro, nos tiram um retrato de grupo.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010


Estremoz (José Ames)

COMPREENDER NA PELE


http://c4.img.v4.skyrock.net/

"Uma mulher de quem precisamos e que nos faz sofrer desperta em nós toda uma gama de sentimentos muito mais profundos e mais vitais que um homem genial que nos interessa."

"Como Proust Pode Mudar a Sua Vida" (Alain de Botton)


A lição proustiana é a de que só sabemos do que falamos se o corpo estiver implicado a um nível mais ou menos profundo. O autor diz que daí vem, talvez, a desconfiança de Proust em relação aos médicos: o seu conhecimento não deriva, em primeira instância, "de nenhuma dor no seu próprio corpo".

Uma ideia não se torna nossa através dum simples encontro ou de a termos puramente contemplado ( o que está nos antípodas do platonismo ). Se não passa pelos "trabalhos de parto", podemos esquecê-la a favor de qualquer outra.

Mas o que Albertine "ensina" ao narrador não decorre de nenhuma competência especial. O conhecimento de que ela é causa quase nada tem a ver com a pessoa de Albertine, mas antes com o fracasso e a ideia do amor.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010


(José Ames)

O ESTADO PÍTICO


A Sibila de Delfos (Miguel Ângelo)


"Da mesma maneira que um sonho transforma, de acordo com a sua natureza, os incidentes do sono, assim a alma converte em fenómenos psíquicos as mal definidas impressões do organismo. Uma atitude desconfortável torna-se um pesadelo; uma atmosfera carregada de tempestade muda-se em tormento moral. Não mecanicamente e por causalidade directa; mas a imaginação e a consciência engendram, consoante a sua própria natureza, efeitos análogos; elas traduzem na sua linguagem própria e formam no seu próprio molde o quer que as alcance do exterior."

"28/4/1861 – Journal" (Amiel)


É o que Alain chama de estado pítico do sono. Adormecidos, não estamos realmente separados do mundo, mas dele penetrados pelas "raízes". Quem soubesse interpretar essa comunicação sem palavras entre o corpo e o universo entraria, como diz Amiel, "no divino santuário da contemplação".

Comparada com isto, a ideia freudiana dum império dos símbolos é a representação máxima do exílio humanista, a profanação do teatro grego.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010


Santo Tirso

A ORIGEM DAS ESPÉCIES


Bernard Madoff

"As empresas costumavam ser dirigidas por executivos tradicionais que compreendiam o produto e como ele era produzido e vendido, quer fossem automóveis ou petróleo. Mas com o ascenso da 'cultura do dinheiro' ('money culture'), muitas empresas, especialmente as companhias petrolíferas, descobriram que podiam ganhar mais dinheiro investindo e comercializando os seus excedentes de capital do que fazendo o que as companhias tradicionalmente faziam – prospectar petróleo. Engenheiros e vendedores foram substituídos por analistas e contabilistas do mercado financeiro internacional. Esta nova gente começou a dirigir as empresas. O que, naturalmente, nos leva a interrogarmo-nos sobre quem é que se vai preocupar com o estaminé?"

"The Dreams of Reason" (Heinz Pagels)


Sendo o dinheiro essencialmente informação, o que se negoceia, a cada vez maior velocidade, não são bens e serviços, mas isso mesmo: informação. Ganha-se a cada nova transacção sobre uma expectativa: a de que o carrossel continue a girar. Mas "a uma dada altura, a confiança é abalada e muita gente sofre com isso." Foi assim quando rebentou a "bolha" de Outubro de 1987 e repetiu-se vinte e um anos depois.

Se há uma lição a tirar desta história, é que vinte anos de "regabofe" valem bem a pena, mesmo se um ou outro septuagenário, como Bernard Madoff, acaba por passar o resto do tempo atrás das grades. Mas, provavelmente, esses dirão, como a futura mulher de D. João IV, que mais vale ser rainha uma hora do que duquesa toda a vida. Mesmo os que acreditam que este é o melhor dos sistemas possíveis não têm razões para se preocuparem, porque as crises não só são expectáveis, como muito provavelmente fortalecem o sistema.

Além disso, a "cultura do dinheiro" tem a seu favor uma das principais facetas do espírito da época: ela justifica-se a si mesmo só porque funciona (pelo menos de vinte em vinte anos).

Por isso, já estamos a assistir ao regresso das boas e velhas práticas que levaram os "mais fracos" à ruína.

domingo, 24 de janeiro de 2010


(José Ames)

HISTERIA


"As duas Fridas" (Frida Kahlo)


"Compreender engendra profundidade, não engendra sentido."

Hannah Arendt


Profundidade, no sentido de complexidade, talvez. Complexidade que, nalguns casos, seria melhor traduzida por complicação. Porque logo que conseguimos imaginar como um sistema funciona (na microfísica, por exemplo), podemos dizer que compreendemos esse sistema.

Mas isso, evidentemente, pode não trazer nenhuma coerência à nossa "visão do mundo", o que é potencialmente revolucionário, se quisermos e pudermos fazer o esforço de adaptar a nossa visão do mundo ao novo sistema ou à nova interpretação dum sistema. Para além disso, é preciso sempre ter em conta que podemos "gerir" mundos paralelos, que fazem ou não sentido juntos.

A política pode ser caótica para um físico com uma teoria consistente na sua especialidade, sem que tenha de existir interferência entre os dois mundos.

Em certos casos, aproximamo-nos muito da dissociação histérica (os guardas dos campos de concentração que continuam a ser melómanos).

sábado, 23 de janeiro de 2010


Canas de Senhorim (José Ames)

FLEXICRACIA



"Se a flexibilidade e a rigidez designam duas variedades da formação de expectativas relativamente improváveis, o problema não se situa na escolha de uma contra a outra, mas na sua combinação. Ficamos impedidos de toda a compreensão do fenómeno das organizações se as considerarmos em primeiro lugar como nefastas sob o ângulo da 'burocracia'. A variedade e a redundância são igualmente necessárias, e nas circunstâncias actuais ainda mais do que antes."

"Politique et complexité" (Niklas Luhmann)


Mesmo fora da burocracia de Estado, a "redundância" pode ser uma arma de sobrevivência ou de hegemonia. É o que acontece com conceitos como o de "cultura de empresa", que é uma maneira de dizer: "nós somos o que somos, e é mesmo assim. É a sua própria rigidez que lhes garante o sucesso face a organizações elásticas e face aos media. Elas podem impor-se como o fazem pessoas rígidas em face de pessoas tolerantes no meio da discussão cortês, ao mesmo tempo que esta capacidade de imposição se funda na não-utilização de possibilidades alternativas."(ibidem).

É por isso que o actual favor de que goza a flexibilidade à outrance, na economia e nas empresas, tem todas as características duma ideologia.

É preciso dizer que como projecto metafísico (Popper), o darwinismo não tem qualquer credencial no que às ciências sociais diz respeito. De resto, aquela ideologia poderia até significar no domínio económico uma vantagem artificial concedida às organizações "elásticas", onde se imporia, eventualmente, maior burocracia ou "redundância".

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010


(José Ames)

O COMO E O PORQUÊ

Isaac Newton (1643/1727)


"Na ciência astronómica, procurai o objecto e não a prova; então compreendereis o que queria exprimir Newton quando dizia: 'eu não faço hipóteses'. O facto é que a sua famosa invenção é apenas uma melhor descrição disto, que a Lua gira à volta da Terra. Ele diz como ela gira, o que ninguém antes dele tinha sabido dizer tão bem. Diz como e do porquê ele troça."

"Vigiles de l'esprit" (Alain)


Cá está outro exemplo da "psicologia exterior". Não devíamos procurar a causa secreta do fenómeno ou a sua essência, mas descrever o melhor possível o que se apresenta.

Ocorre-nos logo dizer, contra Newton, que ele partiu duma hipótese, duma teoria, ou dum preconceito. E descartaríamos como positivista a ideia da descrição. Mas isto só é assim porque nos iludimos quanto à nossa capacidade de descrever. Julgamos que a perfeita descrição pode dispensar a compreensão.

Na verdade, a descrição exige mais e mais descrição e o porquê está por detrás dessa busca interminável. O como não chega.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010


Aveiro (José Ames)

MÓBILES


Antonin Artaud (1896/1948)


"Procurei, diz-nos ele, no argumento que segue, realizar esta ideia de cinema visual onde a própria psicologia é devorada pelos actos. Sem dúvida este argumento não realiza a imagem absoluta de tudo aquilo que pode ser feito neste sentido; mas pelo menos anuncia-o. Não que o cinema deva dispensar toda a psicologia humana; não é o seu princípio, bem pelo contrário, mas dar a esta psicologia uma forma mais viva e mais activa, e sem essas ligações que tentam fazer aparecer os móbiles dos nossos actos numa luz absolutamente estúpida em vez de no-los exporem na sua original e profunda barbárie."

"K, nº1-2, consagrada a Antonin Artaud"


O cinema é sobretudo movimento, como queria René Clair, invocando para isso as suas origens com as curtas metragens dos Lumière?

Artaud, é verdade, fala em actos para os quais não saberíamos encontrar um princípio racional. A psicologia deveria ser toda exterior, sem qualquer "transposição em palavras", como se este homem do teatro antecipasse os filmes de Antonioni, quase extáticos, eles. A propósito do realizador italiano, falava-se de incomunicabilidade. Mesmo a psicologia dos amantes era "devorada pelos actos", sendo o cinema a constatação do impasse no espaço da palavra.

Por estas e por outras, não sei se o cinema é movimento (apesar da etimologia) e acho ingénua a pretensão de podermos evitar a estupidez no que aos nossos motivos diz respeito.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010


(José Ames)

CÍNICOS NÃO



"Existe uma camada de fundo no ciclo de evaporação política; os cidadãos vaga e ambivalentemente dão-se conta ou fazem a experiência das questões políticas, mas não a traduzem toda em palavras: esta é uma experiência infinita e nua que pode, de facto, nunca ser reconhecível, falável, cultural. Esta camada do fundo é feita das conexões inevitáveis não reconhecidas que temos uns com os outros: dependência de outros desconhecidos em relação à água e aos alimentos, ao abrigo e à roupa, à linguagem e ao sentido."

"Avoiding politics" (Nina Eliasoph)


Muitos factores contribuem para que a experiência profunda da política nunca chegue à palavra. A verdade é que só podemos falar das questões sobre as quais podemos ser ouvidos, o que implica um formalismo mínimo, uma etiqueta social, como diz Eliasoph.

A cultura americana, segundo a socióloga, criou as condições para que apenas um certo envolvimento dos cidadãos seja possível (e este parece ser consensual), o de particulares lutando pelos seus interesses mais básicos. A política não encontra espaço fora do aparelho do poder.

Entre nós, podia-se dizer que não temos dificuldade em verbalizar – o que é o princípio da política -, mas esse impulso é imediatamente transviado nos caminhos da irrelevância e da descrença.

Não chegamos a ser cínicos, porque amamos o trocadilho em demasia e a boa consciência do espectador.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010


Sandcove (José Ames)

RENÚNCIA



"Hoje, eu tenho uma certeza: quando se começa a renunciar às suas exigências e aos seus desejos, pode-se também renunciar a tudo. Aprendi-o no espaço de alguns dias. Poderei talvez ficar aqui um mês ainda, antes que este entorse à regulamentação seja descoberto (o facto de viver em casa duma família não judaica)."

"Journal 1941-1943" (Etty Hillesum)


Hoje li em "O Público" a crónica dum médico psiquiatra que observa, como outros já o fizeram antes, uma certa infantilização na nossa sociedade, pelo facto de, nas últimas décadas, só ouvirmos falar em direitos e nunca da outra face dos direitos que são os deveres e as obrigações. "E, mesmo que sejam dadas todas as oportunidades, se porventura houver alguém que não alcança uma aspiração, isso raramente é atribuído a um fracasso pessoal, mas a uma discriminação, mesmo que muitas vezes nem sequer tenha havido qualquer esforço para se obter sucesso." O resultado é uma "baixa tolerância à frustração".

No entanto, como diz Etty, bastam alguns dias para aprendermos a renunciar a tudo, lição que trazida pela necessidade não só nos torna mais adultos como nos dá o verdadeiro sentimento da vida.

Ela prepara-se para partir para o Inferno (morreu em Auchswitz). "Vou pôr os meus papéis em ordem; cada dia digo adeus. O verdadeiro adeus não será mais do que uma pequena confirmação exterior daquilo que será cumprido em mim dia a dia."

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010


(José Ames)

O JESUÍTA


Execution of Mennonites


"O Dever Moral, disse-me ele, é menos claramente imperativo do que no-lo ensinam os nossos Éticos. Que os cafés teosóficos e as cervejarias kantianas fiquem com a sua, nós ignoramos deploravelmente a natureza do Bem."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


Assim falava Brichot, o catedrático, antes de se prestar à manobra da Patroa que precisava que ele entretivesse o barão, enquanto ela desferia o traiçoeiro golpe junto do protegido de Charlus. Brichot inclui este "serviço" na casuística mundana, ao mesmo tempo que desvaloriza o filósofo de Königsberg, por germânico e platonizante.

Zangar-se com Mme Verdurin estava fora de questão, dada a necessidade que, nos dias da velhice, sentia por esse ersatz duma família que era o salão. É apenas retórica a sua ponderação ética. Por muito que simpatize com o pobre Charlus, tão enamorado pelo violinista, os seus próprios afectos estão primeiro. Mas, ao contrário duma pessoa mais simples que teria sentido o remorso e seguido em frente, o velho professor teoriza como um jesuíta.

domingo, 17 de janeiro de 2010


Viseu (José Ames)

QUE OBJECTO?


http://www.edharriss.com


"O que faz a força do matemático não é esta prova imitada do pretório e que cala a boca dum suposto contraditor; é um objecto simplificado, bem determinado e perfeitamente conhecido. Nada está nele escondido, nada fica nele para adivinhar; eis por que o ignorante se sente algumas vezes inquieto diante da verdade nua: ele gostaria de acreditar que lhe escondem qualquer coisa; é por isso que sopesa a prova em vez de considerar o objecto. É preciso já saber bastante para compreender que a prova é a companheira da ignorância."

"Vigiles de l'esprit" (Alain)


Estamos aqui a falar da matemática que é a única disciplina que nos dá objectos "puros". Para quê, de facto, examinar as provas se podemos ver a coisa sem mistério algum?

Mas esse não é o mundo em que vivemos (e nem sequer é aquele em que pensamos), onde a prova é tudo o que temos para persuadir os outros pela razão.

Dêem-me, por exemplo, um objecto social. As dificuldades não têm fim, pois onde começa e acaba, qual é o seu contorno e o seu limite? É por isso que em vez de objectos temos ideias "apenas".

Mas enquanto os objectos reais não formam em nenhum caso sistema, as ideias adaptam-se maravilhosamente a eles. Eis por que cada homem é um mundo ideal e só se conhece , realmente, a si mesmo.

sábado, 16 de janeiro de 2010


(José Ames)

A PRECIPITAÇÃO RAZOÁVEL



"O tempo que sobra ao mundo humano é cada vez mais escasso na idade da globalização; seria cada vez mais urgente um estudo de formas de vida para o interior e o exterior no complexo planetário. O que dá que pensar hoje não é uma ominosa pulsão de morte que seria ingénita à própria vida; o que nos alarma é a urgente gravidade da aventura da inteligência através da espécie no seu conjunto."

"O Estranhamento do Mundo" (Peter Sloterdijk)


A inteligência joga um papel cada vez mais importante no mundo globalizado, porque começamos a mover-nos como um corpo planetário, em que tudo se repercute imediatamente em tudo. A intensidade local não é nada comparada com o gigante que desperta e que não pode fazer movimentos bruscos sem consequências catastróficas.

Sloterdijk diz noutro passo:"A função das religiões de revelação, em grandes sociedades meio esclarecidas pode interpretar-se, sobretudo, como a de um meio de aceleração; a fé em verdades de revelação foi, nos últimos milénios, o órgão de uma precipitação razoável, que devia ajudar as almas instigadoras a orientarem-se na fé naquilo que ainda não possuíam como própria inteligência." (ibidem)

Mas será que hoje nos poderíamos permitir um movimento religioso que suprisse a nossa deficiente inteligência para acelerar o "processo histórico"? A aceleração é talvez desejável no corpo dividido, regional. Hoje só podemos contar com a inteligência e tentar adequar a velocidade da mudança à nossa capacidade para a compreender.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010


Veneza (José Ames)

AS MÃOS DE HITLER


Karl Jaspers (1883/1969)


"Peço-lhe que me perdoe se lhe digo que por vezes pensei o seguinte: que V. parecia ver os nazis como um rapaz que sonha, que não sabe o que está a fazer […] e que depressa se vê desamparado diante de um monte de entulho e se deixa arrastar cada vez mais fundo."

Carta de Karl Jaspers a Martin Heidegger (citado por Elzbieta Ettinger in "Hannah Arendt e Martin Heidegger")


Heidegger mentiu aos seus amigos mais próximos sobre o seu anti-semitismo e, segundo Arendt, não sabia, "nem estava em posição de descobrir que espécie de demónio o possuiu" quando se sentiu atraído pelo Nazismo, se filiou no partido e, durante o ano em que foi reitor, aplicou com um zelo convicto as leis raciais contra homens como o seu mestre Husserl. É verdade que depois disso se demitiu e que na altura ainda não se falava na "solução final". O seu fascínio pelo führer exprime-se nesta outra citação. Jasper pergunta-lhe se um homem tão grosseiro como Hitler pode governar a Alemanha. Resposta de Heidegger: "A cultura não tem importância. Olhe bem para as mãos maravilhosas que ele tem."

Perante esta evidente duplicidade e esta astúcia somítica, podemos separar o homem do filósofo? De que maneira as suas ideias mais abstractas foram influenciadas pelos seus sentimentos políticos?

Para sermos justos, em termos históricos, temos de fazer essa distinção. Se "Ser e Tempo" fosse a única coisa que soubéssemos de Martin Heidegger poderíamos julgar a obra por outro critério que não fosse aquele que aplicámos ao fragmentos de Heráclito ou ao testemunho de tantos autores da antiguidade de que realmente nada ou quase nada sabemos?

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010


(José Ames)

O MÉTODO DA ACÇÃO



"O método da acção política aqui esboçado ultrapassa as possibilidades da inteligência humana, pelo menos enquanto essas possibilidades são conhecidas. Mas é isso precisamente que lhe dá o valor. Não se deve perguntar se se é ou não capaz de o aplicar. A resposta será sempre não. É preciso concebê-lo duma maneira perfeitamente clara; contemplá-lo por muito tempo e muitas vezes; afundá-lo para sempre no lugar da alma onde os pensamentos ganham as suas raízes: e que ele esteja presente em todas as decisões. Há talvez então uma probabilidade de que as decisões, embora imperfeitas, sejam boas."

"L'Enracinement" (Simone Weil)


Não restam dúvidas que o método de acção preconizado por Simone não se aprende, nem é um conhecimento que se possa adquirir com a experiência. Trata-se mais duma espécie de inspiração como aquela de que é pertinente falar-se em relação aos artistas.

Isto é assim porque, a exemplo de outros antes dela, a filósofa entende a política como uma arte (uma "arte de composição em planos múltiplos"). Nenhuma ideologia, por mais universal que seja, está à altura de inspirar este método. Porque é o caso, não de aplicar fórmulas ou princípios, mas, verdadeiramente, de criar algo de novo com o imprevisível de que é feita a política.

Quantos homens teriam a coragem de abandonar os seus esquemas, as suas rotinas, os seus truques, para absorver a ideia inspiradora no mais fundo se si mesmos de modo a que todas as suas decisões dela estivessem sempre misteriosamente imbuídas?

Quando Simone Weil diz que o método não pode ser alcançado pela inteligência humana só quer dizer que não se trata aqui de lógica, mas de algo que transcende o próprio indivíduo e logra exprimir o génio dum povo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010


Porto (José Ames)

A LIBERDADE DA IRONIA


Proudhon e seus filhos, por Gustave Courbet (1865).


"Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das ciências, da admiração das grandes personagens, das mistificações da política, do fanatismo dos reformadores, da superstição deste grande universo, e da admiração de mim mesmo."

P.J.Proudhon, citado em "As Farpas" (Ramalho Ortigão e Eça de Queirós)


Eliasoph fala numa "solidariedade cínica" entre os jornalistas que amplifica a sua suspeita e a sua distância em relação ao activismo político. É este um dos efeitos da defesa "à outrance" do conceito de objectividade e da abstenção política a que supostamente obriga.

Ora esse cinismo reforçado (por deformação profissional, poderíamos dizer) está muito longe da ironia tão louvada pelo autor da "Filosofia da miséria", embora ambas possam ser politicamente estéreis. Não é por acaso que Marx (que inverteu o título da obra de Proudhon) é sarcástico em relação ao espírito de independência que sustenta a ironia. O que nos alerta para outro tipo de fanatismo (o dos "reformadores"?) que é o duma sociedade em que a política fosse uma obrigação absoluta, como se se pudesse prescindir do pensamento autónomo, da sua liberdade, das suas dúvidas e dos seus impasses.

Se precisamos de individualidades como Proudhon e de jornalistas que se recusam a ir além da objectividade é porque não podemos viver sem o espírito crítico, mesmo quando parece fora da política.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010


(José Ames)

OBJECTIVIDADE



"Muitos repórteres pensam que não é ético envolverem-se, porque pensam que isso compromete a objectividade jornalística. Por isso mantêm-se voluntariamente na ignorância de movimentos quer da direita, quer da esquerda. Ouve-se constantemente falar na famosa 'tendência liberal da imprensa'. Muitos repórteres são liberais: zombam da intolerância, são pela igualdade dos sexos e fazem reciclagem. Mas não são politicamente activos, e suspeitam das pessoas que o são."

"Francis, jornalista, citado em "Avoiding politics" de Nina Eliasoph)


O problema da acção está aqui bem formulado. Porque agir é interromper a "objectividade" e decidir-se por uma das opções, entrando, naturalmente, numa dinâmica de afectos potenciadora da própria acção.

Nesse sentido, a ética jornalística está de facto em causa. Por muito que pretenda ser objectivo, o jornalista "engagé" reflectirá, a maior parte das vezes inconscientemente, os ídolos da sua tribo e uma perspectiva particular.

Mas, por outro lado (e o exemplo americano é elucidativo), a objectividade não pode procurar uma equidistância, moralmente neutra, sem que o jornalismo perca o seu sentido cívico. Então, neste, como em outros casos, o que decide é a facilidade. Obrigados a pensar ( e a decidir) sobre as questões éticas e, por isso, devendo recusar a espécie de pensamento que é a opinião colectiva e a ideologia das organizações (a sua semântica, diria Luhmann), ficam-se pela apresentação de factos, muitas vezes irrelevantes, mas que lhes permite absterem-se de adoptar opiniões "enviesadas", mesmo quando se sentem atraídos por elas.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010


Foz (José Ames)

CHAPÉUS



"Stepan Arkadyevitch pegou e leu um jornal liberal, não extremista, mas advogando o ponto de vista da maioria. E apesar do facto de a ciência, a arte e a política não terem para si um interesse especial, ele sustentava firmemente esse ponto de vista sobre todos os assuntos adoptado pela maioria e pelo seu jornal, e só mudava de opinião quando a maioria mudasse – ou, falando com mais rigor, ele não mudava de opinião, era ela que mudava imperceptivelmente dentro de si."

"Anna Karenina" (Leo Tolstoy)


O irmão de Anna adoptava as opiniões prevalecentes dentro do seu círculo, sem pensar nisso mais do que se tivesse de escolher um chapéu. As suas ideias eram, de facto, um capítulo da etiqueta social. Não era nenhum Pascal, dando o devido valor às convenções, mas guardando um pensamento próprio debaixo do chapéu.

Como não era o caso, Stepan, sendo uma personagem encantadora, fazia infeliz os seus por não ser capaz de resistir a uma tentação.

O "vira-casaquismo", ou a mudança brusca de opinião, em política, não é normal. É muito mais natural fazer-se 180º com todo o seu "círculo" mais a comunicação social. Porque há duas translações a ter em conta, coisa que não acontecia no tempo de Tolstoi. A televisão é o centro do relativismo por não poder tomar partido. Ao adoptar as opiniões da maioria recebe esse relativismo que ela própria difundiu. Mas para além deste movimento, existe, com velocidades diferentes e porventura sentidos diferentes, a rotação dos grupos e dos sub-grupos.

Nisto, estamos ainda à espera de Copérnico.

domingo, 10 de janeiro de 2010


(José Ames)

A PERFEIÇÃO DA LÓGICA



"O termo 'sociedade' engloba, evidentemente, todas as relações sociais, incluindo todas as relações pessoais – as relações entre uma mãe e o seu filho, assim como as que existem entre um funcionário da segurança social e qualquer um dos dois. Por muitas razões, é totalmente impossível controlar todas, ou 'quase' todas estas relações; quanto mais não seja porque, com cada controlo das relações sociais criamos toda uma série de novas relações que é necessário controlar. Em suma, a impossibilidade é uma impossibilidade lógica."

"A Pobreza do Historicismo" (Karl Popper)


O conceito de totalidade (da sociedade, do universo, etc.) impõe-se ao nosso espírito, mas frequentemente utilizamos as palavras que se lhe referem como se soubéssemos do que estamos a falar. Porque quando falo dum baralho de cartas, posso dizer que as conheço como parte desse conjunto (se me abstrair de considerar todos os outros aspectos que são a estrutura daquilo a que chamamos um baralho de cartas). Se falo, porém, em sistema sócio-político sirvo-me de uma abstracção diferente, porque realmente não o posso conhecer enquanto tal. Limito-me a utilizar esse conceito dentro duma frase ou duma teoria que não pode ser testada e que, portanto, vale tanto como outra. Não se pode dizer sequer que ela é uma melhor aproximação da verdade, porque estamos apenas dentro da lógica.

É por isso que as ideologias podem viver mil anos na sua perfeição fechada ao mundo.


sábado, 9 de janeiro de 2010


Foz (José Ames)

O FIO PERDIDO



"Assim o desaparecimento inegável da tradição no mundo moderno não implica de maneira nenhuma um esquecimento do passado, porque a tradição e o passado não são a mesma coisa, contrariamente ao que nos quereriam fazer crer aqueles que crêem na tradição dum lado, e aqueles que crêem no progresso do outro – e o facto que os primeiros deplorem esta desaparição, enquanto que os últimos se felicitam com ela, não muda em nada a questão."

"La crise de la culture" (Hannah Arendt)


O passado independente da tradição tem talvez "uma frescura inesperada e diz-nos coisas para que ninguém teve ainda ouvidos.", mas deixou de estar ligado a nós como uma raiz. Tornou-se um depósito ou uma mina de símbolos, com que podemos "fundar" uma pré-história à medida dos nossos interesses.

Quando um autocrata inventa uma genealogia ou apaga das fotografias os seus adversários, por razões de Estado ou para a mitificação da sua figura é assim que se relaciona com o passado.

Este "novo" poder sobre o passado é, de facto, um corte das raízes e significa privarmo-nos da "dimensão da profundidade da existência humana." Coisas impensáveis ainda há um século, como a dominação totalitária ou o emprego da bomba atómica para "salvar vidas" (dos americanos e dos nipónicos se o Japão fosse invadido) só são possíveis sem o fio condutor da tradição e porque nos tornámos "livres" para experimentar tudo.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010


(José Ames)

A FÉ DESESPERADA



Hermann Göring (1893/1946)


"A derrocada dos Alemães toca-nos mais de perto do que confessamos a nós próprios. O que não deixa ninguém em sossego, é a enormidade do simulacro em que eles viveram, o carácter gigantesco da sua ilusão, a força cega da sua fé desesperada. Certamente que sempre execrámos aqueles que confeccionaram a mistura infecta e repugnante desta fé, os verdadeiros responsáveis que foram pouco numerosos e que tiveram a inteligência bastante para o fazerem; mas os outros, todos aqueles que não fizeram mais do que crer, aqueles que em alguns anos reuniram e condensaram tanta força na sua fé quanto os judeus ao longo de milénios, aqueles que tiveram vitalidade e apetite suficientes para realmente querer o seu paraíso terrestre, querendo e desejando a dominação do mundo, prontos antes de tudo e acima de tudo a matar por isso, prontos a morrerem eles mesmos por isso, e tudo no mais curto prazo – essas inumeráveis cobaias sãs e florescentes, esses meros animais treinados e levados a crer como nunca o foi nenhum muçulmano -, que são eles, então, realmente, que são eles agora que a sua fé se desmorona?"

"Le Térritoire de l'homme" (Elias Canetti)


Não está aqui, para responder à pergunta lamentosa de Canetti, a estupidez infinita da espécie de que falava Einstein? Ele que dizia poder ter dúvidas sobre o outro infinito, o do universo, mas não sobre este, que nos leva à auto-destruição?

A massa é a mesma em todas as latitudes e não é uma especialidade germânica. Nenhum dos condenados em Nuremberga esteve à altura de reconhecer as consequências dos seus actos. Göring foi ao ponto de argumentar que os soviéticos tinham vestido os uniformes nazis e forjado o filme das atrocidades nos campos que foi presente ao tribunal. Os Americanos, na sua recente conversão à psicanálise, tinham mandado um psicólogo judeu, Leon Goldensohn, para perceberem se havia algum motivo de ordem familiar ou sexual na vida desses tubarões do regime que pudesse invalidar a categoria de monstruoso, a única que dava conta do sucedido aos olhos de quem desconhecia o horror burocrático e que não ouvira ainda falar da "banalidade do mal".

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010


Roma (José Ames)

HIROHITO



"Além disso, o inimigo agora possui uma nova e terrível arma com o poder de destruir muitas vidas inocentes e de provocar danos incalculáveis. Se continuássemos a combater, não só isso resultaria no ulterior colapso e obliteração da nação japonesa, mas levaria à extinção total da civilização humana.

Sendo este o caso, como salvaremos Nós milhões dos Nossos súbditos e expiaremos perante os sagrados espíritos dos Nossos Antepassados Imperiais? Esta é a razão por que ordenámos fossem aceites as disposições da Declaração Conjunta das Potências."

Declaração de Hirohito, imperador do Japão (em 14/8/1945)


De facto, os EUA estavam a preparar mais bombas além das que destruíram Hiroshima e Nagasaki, caso o Japão não capitulasse.

Depois da primeira e atroz decisão, motivada, segundo os apoiantes de Truman, pela preocupação de salvar milhões de americanos e de nipónicos na prevista invasão do arquipélago, era de esperar que o limite moral já não se impusesse com a mesma força.

Hirohito, como se vê, não pensava, como Hitler, que a nação devia afundar-se com ele. E a ideia duma responsabilidade para com os Antepassados coloca-o num nível incomparável com o do pequeno führer. Por outro lado, o seu prognóstico duma extinção da humanidade deve entender-se como retórica adequada ao momento de humilhação suprema.