quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A IDEIA




“Camarada, tu és um dos quatro milhões que vieram juntar-se à nossa organização sindical. O mês de Junho de 1936 é uma data na tua vida. Lembras-te de como era dantes? Está já longe. Dói pensar nisso. Mas é preciso não esquecer. Lembras-te? Só se tinha o direito de estar calado. Algumas vezes, enquanto se trabalhava na máquina, a náusea, o esgotamento, a revolta, enchiam o coração; a um metro de nós, um camarada sofria as mesmas dores, sentia a mesma amargura; mas não ousávamos trocar as palavras que nos podiam trazer algum alívio, porque se tinha medo.”

“Lettre ouverte à un syndiqué” (Simone Weil)



A descrição podia aplicar-se a um escravo da Antiga Roma. O patrão não tinha, é certo, o direito de vida ou de morte, coisa que só a guerra hoje é capaz de ressuscitar, colocando esse poder nas mãos de um oficial, mas podia condenar um homem à miséria e à fome. Simone fala no alívio que as simples confidências podiam trazer a esse escravo e do medo que as paralisava. O escravo romano talvez nem concebesse essa espécie de alívio. Tinha outra estratégia contra a humilhação que, decerto, tinha muito a ver com o fatalismo. Depois, com Spartacus, foi a vez dos patrícios terem medo, e a revolta sofreu o castigo implacável reservado aos escravos para que não restasse qualquer esperança de igualdade. Mas o Cristianismo projectou essa igualdade no reino dos Céus e foi a revolução que se sabe, porque o platonismo é todo o espírito e só o espírito sabe dizer não.

O fim da Frente Popular, ao cabo de um ano, não significou o fim de uma certa ideia de justiça. O medo tem sempre que ser vencido nos tempos difíceis, e pode ser vencido por causa da ideia.


quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Bath (José Ames)

PASTORES E PESCADORES


 
O Antigo Testamento ama os pastores; o Novo, pelo contrário, prefere os pescadores. Jacob, Moisés, David, conduziram rebanhos; os apóstolos de Jesus lançam redes.”
  
“Caroço de azeitona”   (Erri De Luca)


Uns conservam os seus tesouros na terra como se durassem tanto como os do céu.  Toda a sua sabedoria está na simplicidade das formas que não se prestam a qualquer distância do espírito. Os intérpretes e os comentadores floresceram depois, quando se descobriu que o espírito podia ser diferente não mudando a letra. Nada a ver com uma casta sacerdotal como a dos Egípcios que, de facto, não interpretavam. Eram tradutores do sagrado em língua de gente. Os intercessores, necessários como a geometria das pirâmides.

Mas os pescadores de peixe que acompanharam o Nazareno tornaram-se pescadores de homens, e isto é muito actual. Qualquer associação que viva dos seus próprios recursos tem que lançar, regularmente, uma campanha de sócios. O melhor é a pesca à linha, pela palavra de pessoa a pessoa. A pesca de arrasto produz, em pouco tempo, a espécie dos vira-casaca que servem, aliás, para destacar a firmeza dos que não mudam.

A Igreja Católica, hoje, parece ter voltado a ser uma igreja de pastores, e os pescadores tornaram-se sectários, sem  desdenharem, no entanto, a tecnologia e as técnicas do marketing.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

(José Ames)

LUZ DE INVERNO

"Luz de Inverno" (1962, Ingmar Bergman)

 

O tempo sombrio e invernoso é como a alma do pastor Tomas (Gunnar Björnstrand) que cumpre os ritos com todo o zelo de que é capaz, mas que por dentro está morto, segundo as suas próprias palavras. Desde a morte da mulher, a liturgia e os deveres exteriores do sacerdote regulam a sua vida e dão-lhe a força mecânica para continuar. Märta (Ingrid Thulin) confessa-lhe um amor tão desesperado que Tomas o rejeita, considerando-o uma caricatura do seu primeiro e único amor. O amor de Märta é um acto da vontade de se salvar. Todos os personagens que gravitam à volta do pastor sofrem da mesma falta de fé. A celebração final para uma igreja vazia, excepto para os companheiros do naufrágio espiritual, transmite-nos a mais absoluta falta de esperança. 

Depois de “abrirem o livro”, um sobre o outro, Tomas, inesperadamente, convida Märta a acompanhá-lo a casa da viúva do homem cujo suicídio ele não foi capaz de evitar. Ela diz que, apesar de todo o seu orgulho, Tomas não pode viver sozinho. Precisa pelo menos dos outros como figurantes do serviço religioso, dos representantes dos crentes, mesmo se, de facto, discutem a ênfase do sofrimento de Cristo (foram só 4 horas, diz o doente crónico) ou tenham decidido dedicar-se a alguém que não a quer, como Märta.

Não há ilusões neste filme. Apesar do frio e do “silêncio de Deus”, não há ternura, nem esquecimento. A lucidez é a única moral. As personagens sofrem sem procurarem uma escapatória como faria qualquer animal saudável.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Wroclav (José Ames)

O ANEL DA INJUSTIÇA


Platão




Giges é o pastor da Lídia que encontrou um anel que lhe permitia tornar-se invisível e dessa forma obter tudo o que desejava. Assim se tornou rico e depois de seduzir a rainha, matou o rei para casar com ela e usurpar o poder.
Platão serve-se deste mito na “República” para mostrar que todos nos encontramos na situação de Giges e que se queremos ser justos, não podemos usar a magia.

Esta argumentação fará rir os modernos Cálicles que vêem na injustiça, com tal certeza de impunidade, a maior das vantagens.

Mas se as leis poderiam não punir Giges, os excessos da injustiça encarregariam a natureza de fazer a lei em nós mesmos. O domínio de si próprio é a própria justiça, no pensamento platónico.

Emmanuel Levinas diz que este mito é “o próprio mito do eu e da interioridade que existem não reconhecidos”. De facto, acreditamos que no nosso interior somos invisíveis e que por isso podemos servir-nos à vontade do anel. Mas isso só seria possível através da duplicidade que nos permitisse ter a fealdade na alma e uma aparência de bem no exterior.

Todos sabemos o que uma contradição tão violenta pode causar à saúde do corpo e à inteligência do espírito. O anel de Giges é uma evidência para todos e uma tentação que a maioria supera.

Porque o mito revela-nos que essa não é a situação real. Só pensamos acima de nós, como se só a humanidade pensasse, e a justiça não é uma coisa que possamos diferir porque dela depende o reconhecimento do outro e a própria consciência do que somos.

Como diz Alain, Platão convida-nos a lançar fora o anel.

domingo, 26 de setembro de 2010


(José Ames)

A VIRTUDE E O VÍCIO



“Estes caminhos da sorte são enigmas da Providência que não nos cabe desvelar, mas que não devem nunca seduzir-nos; a prosperidade do mau é apenas uma prova a que a providência nos submete, ela é como o raio cuja luz enganadora embeleza só por um instante a atmosfera para precipitar nos abismos da morte o infeliz que ela deslumbra…”

“Les Infortunes de la Virtu” (Marquês de Sade)


É Juliette, a irmã viciosa, reflectindo sobre o seu destino e que parece dar o “justo” valor à sorte que a tem favorecido, quando comparada com a espécie de perseguição de que é vítima Justine, apesar da sua virtude inflexível.

Nesta fase da obra de Sade, a teologia ainda vem salvar a justiça no sentido cristão, porque a condenação eterna espera a pecadora e a reparação e a glória a boa irmã que sofre pela própria inocência, como Job.

Juliette não tem a desculpa de se ter deixado seduzir pela luz da tempestade. Ela é o anjo caído que desafia o poder divino. Não é o prazer que lhe interessa (aliás cada vez mais sujeito à lei da apatia pela sua extensão), mas o Mal, isto é, o ressentimento infantil em relação a Deus que ditou a sua Queda.

sábado, 25 de setembro de 2010


Almada (José Ames)

O RESPEITO DAS FORMAS


A Conjura de Catilina

“Barère – Sim, vai, Saint-Just, tece os teus períodos, que cada vírgula seja um golpe de sabre, cada ponto uma cabeça cortada.

Saint-Just – É preciso que a Convenção decrete que o Tribunal deve continuar o processo sem interrupção, e que todo o acusado que faltar ao respeito do tribunal ou provocar distúrbios será excluído dos debates.

Barère – Tu tens o instinto revolucionário, isso soa muito moderado e, no entanto, produzirá o seu efeito. Eles não podem ficar calados, é preciso que Danton grite.

Saint-Just – Conto com o vosso apoio. Há gente na Convenção que está tão doente como Danton. E que receiam o mesmo tratamento. Vão recobrar coragem, vão clamar contra a violação de procedimento.

Barère – interrompendo-o: Vou-vos dizer: em Roma, o cônsul que descobriu a conjura de Catilina e puniu imediatamente de morte os culpados foi acusado de violar o procedimento. Quem eram os acusados?”


“La mort de Danton” (Georg Büchner)


A conspiração de Catilina ( o assassinato de Cícero ocorreria a 7 de Novembro AC) era real e punha em perigo o Estado romano. Os culpados foram denunciados e punidos pelo próprio Cícero, mas as “formas” não foram respeitadas.

Os advogados girondinos tinham muitos argumentos desse género contra o partido de Robespierre. A vontade de oposição serve-se de todos os apoios, como o alpinista de todos os acidentes da escarpa para alcançar o cume.

O respeito da forma pela forma parece estúpido (é como não atravessar com o sinal vermelho quando não há carros à vista). Se os girondinos estivessem dispostos a acompanhar a passada da Montanha, as formas teriam sido ignoradas.

Porque as boas formas existem para salvar a paz e assegurar a justiça, e estas estão sempre em causa quando não há acordo.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010


(José Ames)

VIAGENS




“O velho substantivo inglês ‘travel’ (no sentido de uma jornada) era originalmente a mesma palavra que ‘travail’ (significando ‘preocupação’, ‘trabalho’ ou ‘tormento’). E a palavra ‘travail’, por sua vez, parece ter derivado, através do Francês, da palavra do Latim Popular ou Românico Comum ‘tripalium’ que designava um instrumento de tortura de três estacas. Fazer uma jornada (‘to travail’), ou (mais tarde) viajar (travel) – era por isso qualquer coisa de laborioso ou de preocupante.”

“The Image” (Daniel Boorstin)


Por isso, as únicas viagens, segundo a etimologia, são as viagens cansativas e arriscadas, em que podemos comprometer a saúde e até a vida.

Antes de surgir o turismo constituíam, aliás, um fenómeno muito raro. Um inglês, como Arthur Young, viajando durante um dia numa estrada importante fora de Paris, admirava-se de não “encontrar uma única carruagem de ‘gentleman’, nem, na estrada, qualquer coisa que se parecesse com um ‘gentleman’.” (ibidem)

Evidentemente que hoje a aventura continua a ser um dos maiores atractivos de uma viagem, mesmo quando o programa está todo seguro e empacotado. A aventura não é mais do que um programa dentro do programa.

Não podemos, porém, ver nesta evolução a perda de uma qualquer “arte de viajar”, porque ela é, antes de mais, um sinal do progresso e da democratização. Não é justo esperar que o turismo de massa produza um Marco Polo ou um Livingston.

Mas haverá sempre uns poucos para quem viajar será algo como desafiar o destino e suportar em espírito de missão os rigores do “tripalium”.